sexta-feira, 19 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Em defesa da plena liberdade de expressão – Opinião / O Globo

A liberdade de expressão parecia questão pacificada na democracia brasileira. A Constituição de 1988 protege o discurso em termos quase absolutos, com exceções mínimas. O Supremo Tribunal Federal (STF), quando instado a se manifestar sobre o tema, vinha garantindo tal liberdade várias vezes: sepultou a Lei de Imprensa da ditadura, assegurou o direito à publicação de biografias não autorizadas, à livre manifestação política nas universidades, à exibição de um especial natalino ofensivo a grupos religiosos — e sempre vetou tentativas de censura judicial.

Em tempos recentes, a questão voltou a irromper do pântano dos conflitos institucionais. No inquérito das fake news, o próprio STF censurou uma reportagem da revista “Crusoé”. O Executivo vem exercendo vigilância cerrada sobre vozes contrárias ao presidente Jair Bolsonaro. No arsenal usado pelo governo federal para intimidar os críticos, ressurgiu a infame Lei de Segurança Nacional (LSN), que caíra em desuso. A PF abriu 26 inquéritos com base nela em 2019 e 51 em 2020 (nos anos anteriores, a média era de 11).

Os alvos da intimidação são variados. Pode ser um cartaz em Palmas comparando Bolsonaro a um “pequi roído” (algo de pouco valor, na gíria local). Ou os professores da Universidade Federal de Pelotas, obrigados a assinar um termo de ajustamento de conduta depois de criticar Bolsonaro numa transmissão digital. O humorista Danilo Gentili. O colunista da “Folha de S.Paulo” Hélio Schwartsman. O youtuber Felipe Neto, intimado pela PF a depor por ter chamado Bolsonaro de “genocida”. Os manifestantes que estenderam faixa com os mesmos dizeres em Brasília.

Fernando Gabeira - Sombrio panorama na terra do sol

- O Estado de S. Paulo

São os preconceitos e o obscurantismo de um obtuso que definem a política contra a covid

Quando desistiu do cargo de ministro da Saúde, a dra. Ludhmila Hajjar afirmou que o panorama no Brasil é sombrio. Diria que é singularmente sombrio, por algumas razões. O Brasil é o único país que teve quatro ministro diferentes durante a pandemia. E desponta como o segundo colocado no mundo em número de mortos, que deve chegar próximo dos 300 mil neste fim de semana.

Para completar o quadro, uma nova variante do coronavírus não só tem contribuído para expandir o vírus, esgotando os leitos de hospital, mas também vai devastando uma parte da juventude, setor da população que estava mais protegido na primeira onda da pandemia.

Apesar de toda a gravidade do momento, a dra. Ludhmila tinha esperanças. Afinal, fora chamada para conversar sobre o cargo pelo presidente Bolsonaro. Isso significava, aparentemente, que o próprio governo queria mudar. Convocava uma especialista para quem a política do governo contra a covid-19 é um conjunto de erros.

A dra. Ludhmila foi massacrada pelos hostes bolsonaristas e o presidente recuou. Ela falava uma linguagem muito próxima do que dizem os médicos e a maioria esmagadora dos políticos. E, consequentemente, muito distante da família Bolsonaro e de seus dogmas diante da pandemia.

Embora não tenha sido escolhida para o ministério, a dra. Ludhmila, em curtas e fragmentadas declarações, acabou reafirmando uma série de pontos vitais no combate ao coronavírus, uma espécie de consenso nacional do qual só não participam a família Bolsonaro e seus seguidores.

Vera Magalhães - E pur si muove!

- O Globo

Não se sabe se Galileu Galilei de fato proferiu a famosa frase depois de ter renegado a teoria heliocêntrica e se retratado perante a Inquisição, mas ela é, até hoje, um libelo em favor da razão e da Ciência — e contra a censura e a perseguição político-religiosa.

Sim, a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário. (Além de se mover, ela é redonda, como recentemente atestou até Jair Bolsonaro, ao aparecer com um globo terrestre movido a pilha numa das suas infernais lives semanais.)

A frase imputada a Galileu me voltou à mente diante da resistência cívico-jurídica organizada pelo influenciador Felipe Neto, que, diante da tentativa de intimidação judicial que sofreu por parte de Carlos Bolsonaro, filho e guarda-costas do presidente da República, montou uma rede com alguns dos melhores advogados criminalistas do Brasil, para defender gratuitamente aqueles que vierem a ser perseguidos por se manifestar contra o governo e o capitão.

Bernardo Mello Franco - Estado de intimidação

- O Globo

A PM de Brasília prendeu cinco manifestantes que abriram uma faixa contra o presidente na Praça dos Três Poderes. A notícia remete aos anos de chumbo, quando os militares perseguiam quem ousasse contestar a ditadura. Aconteceu ontem, sob o governo de Jair Bolsonaro.

A escalada autoritária é liderada pelo Planalto. O ministro da Justiça, André Mendonça, ressuscitou a Lei de Segurança Nacional para enquadrar os críticos do chefe. Já mandou a Polícia Federal instaurar inquéritos contra jornalistas, advogados e até cartunistas.

Agora o exemplo do pastor inspira bolsonaristas nas polícias civis e militares. Num país governado por um fã do AI-5, há sempre um guarda da esquina disposto a rasgar a Constituição.

O professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da USP, considera que o Brasil já vive sob um “estado de intimidação”. “O objetivo das investidas policialescas é gerar um clima de medo e autocensura. É uma forma de repressão preventiva”, define.

Pedro Doria - O método Bolsonaro de intimidar

- O Globo

A violência contínua que existe no discurso do presidente Jair Bolsonaro nos anestesia, aos poucos vai deixando de chocar. O objetivo é este mesmo: anestesiar. É um método, estudado por cientistas políticos em vários cantos do mundo, numa disciplina batizada decadência democrática. Anestesiados, nos distraímos. E, distraídos, não percebemos que a guerra do presidente contra a democracia está ganhando escala. Foi mostra desse ganho de escala o dia em que a Polícia Civil do Rio bateu à porta do youtuber Felipe Neto para informá-lo de que era investigado por chamar o presidente de “genocida”. Com base na Lei de Segurança Nacional.

No caso de Felipe, o problema já passou — a juíza Gisele Guida de Faria, da 38ª Vara Criminal do Rio, viu “flagrante ilegalidade” na investigação e lembrou que a Polícia Civil nem sequer tem competência para investigar “crime contra a honra” do presidente. Além do quê, não é um vereador ou um membro da família do presidente quem tem autoridade de pedir a abertura desse tipo de inquérito. Mas, se Felipe está livre do problema, outros não estão, e ações assim vêm ficando mais comuns.

Michel Temer* - Fora da Constituição não há solução

- O Estado de S. Paulo

Tendência a ignorar a Carta Magna causou todas as distorções de que hoje somos vítimas

Que bom seria se todos cumprissem a Constituição da República. Não teríamos os atropelos que hoje se verificam no Brasil. Se cada um, especialmente as autoridades constituídas, se mantivessem no exercício das tarefas determinadas pela Lei Magna, o mundo seria outro.

Tornou-se inafastável registrar o óbvio. Primeiro, é que a Constituição é o documento que organiza um povo num determinado território. São regras imperativas, cogentes, das quais ninguém, especialmente os que dirigem os negócios públicos, podem afastar-se. Até porque a única autoridade existente é o povo. Só tem autoridade quem tem poder. Os cidadãos comuns são súditos do Estado. As autoridades públicas são as que dirigem o País. São os que exercem o poder orgânico (Legislativo, Executivo e Judiciário) e espacial (União, Estados, municípios e Distrito Federal). São autoridades constituídas. Não são primárias, são secundárias, derivadas. Tanto ou mais do que os súditos, devem prestar obediência rigorosa ao que determina a Lei Maior. Essas autoridades têm dever mais acentuado do que os súditos porque seus gestos governativos podem causar prejuízo à coletividade. Não é sem razão que o particular pode fazer tudo o que não é proibido, ao passo que a autoridade pública só pode fazer o que é permitido pelo Direito.

Eliane Cantanhêde – Fundo do poço

- O Estado de S. Paulo

Causa e efeito: Brasil afunda na pandemia, Bolsonaro cai nas pesquisas e no Centrão

Quem planta vento colhe tempestade e presidente que trata a covid-19 com sarcasmo paga com impopularidade. Numa profunda e drástica relação de causa e efeito, o Brasil vive uma catástrofe sem precedentes com a pandemia e o presidente Jair Bolsonaro passa por seu pior momento, uma ilha cercada de desastres e más notícias por todos os lados.

O melhor índice do Ministério da Saúde no combate à pandemia, de 76%, foi quando o então ministro Luiz Henrique Mandetta traçava estratégias, tomava providências efetivas e mantinha a população rigorosamente informada. Segundo o Datafolha, esse índice esfarelou para 28% desde Mandetta até o general Eduardo Pazuello.

Ricardo Noblat - Os colapsos que ameaçam o Brasil: o hospitalar e o democrático

- Blog do Noblat / Veja

Bolsonaro controla a situação

Jair Bolsonaro dispensa intermediários. Ele, em pessoa, como presidente da República, arrasta o Brasil na direção de dois tipos de colapso: o sanitário hospitalar, o maior da história, e o democrático – esse, certamente difícil de superar os pavorosos 21 anos da ditadura militar de 64. Os tempos são outros. O autoritarismo tem várias faces e diferentes meios de se impor.

O Brasil tem 2,7% da população mundial. Nas últimas 24 horas, o número de mortos pela Covid representou 27,9% de todas as mortes ocorridas no mundo. Foram mais 2.724 mortes, o segundo maior número em toda a pandemia. O aumento só foi menor que o registrado na última terça-feira – 2.841.  É o terceiro dia consecutivo em que os óbitos ficam acima de 2.600.

Foram registrados mais 86.982 casos, totalizando 11.780.820. Dezesseis estados e o Distrito Federal estão com ocupação de leitos de UTI acima de 90%. Dos 27 estados, 18 adotam toque de recolher. O estoque de remédios para atendimento de doentes graves está perto do fim. Quem toma decisões – o ministro da Saúde demitido ou seu sucessor ainda não empossado?

Luiz Carlos Azedo - Covid-19 traumatiza o Congresso

- Correio Braziliense

Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para reduzir a propagação do vírus com medidas mais rígidas de isolamento social

A morte do senador Major Olimpio (PSL-SP) traumatizou o Congresso, principalmente o Senado, cujo presidente, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), decretou luto oficial de 24 horas no Legislativo. Na Câmara, o presidente Arthur Lira (PP-AL) restringiu ao máximo o funcionamento da Casa: proibiu reuniões presenciais das comissões e ampliou o trabalho em home office dos funcionários. Com a morte do terceiro senador por covid-19, a pressão sobre o presidente Jair Bolsonaro para uma mudança na política sanitária aumentou muito. Mesmo na base do governo, a insatisfação é generalizada.

José de Souza Martins* - O poder político de um vírus

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Se a Constituição não manda em Bolsonaro, é sinal de que a cadeira está vazia: hoje, o verdadeiro presidente é o vírus da pandemia

A pandemia tem parecido o cúmplice sorrateiro do desgoverno eleito na alucinação eleitoral de 2018. Todos os atos impróprios e descabidos do governante desinteressado por suas obrigações ocultam-se na invisibilidade do vírus. Um vírus governa a República, no lugar do eleito e empossado.

O vírus não tem como reconhecer-se na humanidade dos que aniquila. Não tem medo. Atravessa grades, frestas, orifícios. Viaja gratuitamente em lágrimas, espirros, cuspidas, suor e xingamentos.

Há uma concepção sociológica que o vírus desconhece, mas que a ele também se aplica. A de personificação de algo, e é por aí que ele pode ser agarrado. Se o vírus ataca pelas vias respiratórias, ataca também por meio dos que o personificam, dos que lhe emprestam o corpo e a mente para que possa induzir à transgressão e multiplicar-se.

Cristian Klein - Polarização entre Biden e Magufuli

- Valor Econômico

“Se Lula montar um ‘shadow cabinet’ acaba com Bolsonaro”

O resultado da pesquisa Datafolha desta semana mostrou a popularidade de Jair Bolsonaro em queda, ainda que o presidente mantenha os 30% que consideram seu governo ótimo ou bom, a despeito de tudo. A questão é por quanto tempo o ocupante do Planalto vai resistir às pressões para que este piso não seja quebrado. O eleitorado de Bolsonaro mostra uma resiliência que a racionalidade da ciência política tem dificuldades de explicar. Não passa somente pela economia, que vai mal, muito menos pela estupidez da gestão da crise sanitária. Pertence também à ordem das paixões e da maneira como Bolsonaro desperta, na sua base social, uma identidade de sentimentos com o cidadão comum, conservador, orgulhoso com a grosseria e a sabedoria de WhatsApp. Com um presidente assim, estão todos livres para errar. E vida - ou morte - que segue.

No Brasil, Bolsonaro é o líder, sem concorrência, do politicamente incorreto e do negacionismo. Pelo mundo, um de seus raros congêneres na condução da pandemia é, ou era, o presidente da Tanzânia, John Magufuli. O líder africano negou a existência da covid-19, debochou dos testes para detectar o coronavírus, apontou as vacinas como parte de uma “conspiração internacional” e foi contra o uso de máscaras e o distanciamento social. Seu discurso era o de que Deus, acima de tudo, protegeria a população, e que o recomendável seria fazer, no máximo, uma simples inalação. Magufuli estava havia quase 20 dias sem ser visto em público e morreu nessa quarta-feira, aos 61 anos. Oficialmente, por problemas cardíacos. A oposição afirma ter sido vítima da covid. No Turcomenistão, na Ásia Central, o presidente Gurbanguly Berdimuhammedow proibiu o uso da palavra coronavírus na mídia e até em conversas privadas.

Fernando Abrucio* - Bolsonaro é o adversário do centro

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O cenário mais provável para 2022 é de um peso enorme para o antibolsonarismo

A volta de Lula para a ribalta da política fez as peças do tabuleiro de 2022 se mexerem. O primeiro a sentir essa mudança foi o presidente Bolsonaro, que colocou até máscara e teve de trocar o ministro da Saúde, mais pelo discurso de São Bernardo do que pelas mais de 270 mil mortes causadas pela covid-19. Já a oposição de Centro ficou muito abalada pela decisão do STF e reagiu na linha do antipetismo. É natural que a maioria dos contrários ao PT reagisse negativamente, inclusive Ciro Gomes, que terá de conquistar boa parte da centro-esquerda. Passado o choque inicial, deveria vir o diagnóstico eleitoral. Neste ponto, uma coisa é clara: o principal adversário do Centro é Bolsonaro.

Entender quem é seu oponente central e descobrir como enfrentá-lo são os dois passos estratégicos para quem quer entrar na disputa política. O posicionamento de Bolsonaro e do lulismo no jogo político está bem claro. Ainda há dúvidas sobre como Ciro Gomes vai se reposicionar. Mas a maior incógnita está no Centro oposicionista (em contraposição ao Centrão), que congrega vários partidos e candidatos com pretensões presidenciais, tem importantes governos estaduais e capitais em suas mãos, além de ter um suporte de importantes grupos sociais. É um cabedal político muito forte, mas que por ora está fragmentado e não consegue produzir um projeto eleitoral nítido.

Vinicius Torres Freire – País vai quieto para o matadouro

- Folha de S. Paulo

Em um país sob risco de ficar sem remédio e UTI, lideranças não reagem a Bolsonaro

No dia mais sombrio da epidemia no Reino Unido, soube-se da morte de 1.253 pessoas. Quer dizer, mais de 18 britânicos mortos por milhão de habitantes do país. No Brasil, seria o equivalente a 3.913 mortes, considerada apenas a diferença de tamanho da população, sem outros ajustes estatísticos. O Reino Unido levou mais de 20 dias para reduzir o número de mortes diário à metade.

No Brasil de agora, anotamos nas nossas lápides mais de 2 mil mortos por dia. Isto é, mais de 9 mortos por milhão de habitantes (na média móvel de sete dias). Algo menos que os picos da Alemanha em janeiro, da Espanha em fevereiro ou da França em novembro. Esses países levaram mais de um mês para reduzir o morticínio à metade. Isso porque, mal ou bem, têm governo. E aqui?

Por sabotagem de Jair Bolsonaro, pela pobreza, pela desigualdade ou por diferenças na interação social, as medidas de restrição tendem a funcionar menos. Mesmo se a onda de mortes diminuísse como nos grandes países europeus, ainda teríamos mil mortes por dia em meados de abril. Mas o Brasil nem sabe se chegou ao pico do monte diário de cadáveres. No presente ritmo da epidemia e pelo número de leitos por ora disponível, não haverá mais UTIs em uns dez dias, antes do fim de março.

Bruno Boghossian – Aparato de perseguição

- Folha de S. Paulo

Ministério persegue críticos do presidente e estimula polícias a seguir diretriz

O governo criou um aparato para perseguir críticos de Jair Bolsonaro. O Ministério da Justiça, a Polícia Federal, o Ministério da Educação, a Controladoria-Geral da União e polícias locais já foram atrás de gente que chamou o presidente de genocida ou de "pequi roído". Não é coincidência, é doutrina.

A política oficial desceu dos gabinetes de Brasília para os quartéis. Nesta quinta (18), um grupo foi detido pela Polícia Militar da capital por estender um cartaz que criticava Bolsonaro e o associava a uma suástica. Os agentes viram uma ameaça à segurança nacional e levaram os manifestantes para a Polícia Federal. Eles foram liberados porque o delegado viu o óbvio: não havia crime.

Reinaldo Azevedo - Sem juízo morreremos todos sufocados

- Folha de S. Paulo

Que os políticos e os magistrados se lembrem de que a destruição do devido processo legal nos legou a Terra dos Mortos

Na minha contabilidade, Jair Bolsonaro cometeu 26 crimes de responsabilidade, alguns deles também crimes comuns. Por qualquer caminho, não entrarei em minudências, seriam necessários dois terços da Câmara para retirar das suas mãos os instrumentos de Estado que servem, por ação e omissão, ao morticínio em massa. Os etimologistas do caos contestam a palavra "genocídio". Mesmo diante do genocídio. Se operadores da política e da Justiça cometerem erros importantes agora, morreremos todos. Sem estrondo nem respiradores.

O país já enfrenta a falta de anestésicos e de neurobloqueadores para intubar pacientes. Entes públicos e privados precisam da autorização imediata para tentar comprá-los onde quer que estejam disponíveis no mundo. O colapso chegou. O caos se avizinha. Não temos mais UTIs. Não temos mais respiradores. Não temos mais mão de obra disponível. E agora o pior: há o risco de a infraestrutura existente se tornar inútil porque faltam as drogas necessárias.

Ruy Castro - 'Presidente, por que o senhor...?'

- Folha de S. Paulo

Se a pergunta for curta, direta e objetiva, a resposta de Bolsonaro pode consagrar o repórter

Em novembro de 1979, na campanha por sua indicação à disputa da Presidência dos EUA pelo Partido Democrata, o senador Ted Kennedy foi entrevistado pelo repórter da CBS Roger Mudd. O qual só precisou lhe fazer a primeira pergunta: "Senador, por que o senhor quer ser presidente dos EUA?". Kennedy vacilou, engoliu e gaguejou: "Bem, eu--- se eu for--- eu acho--- se disser que--- concorrer--- uma das razões---", para terminar num clichê de quinta categoria: "É que--- eu acredito neste país".

Sepultava ali sua chance de enfrentar o republicano Ronald Reagan. Os americanos não perdoam hesitação e despreparo num político, e, se Kennedy não conseguia responder a algo tão simples, o que seria quando voltassem a cobrá-lo sobre a morte por afogamento de sua secretária num acidente de carro dirigido por ele, em Chappaquiddick, Massachussetts, em 1969, e que ele nunca explicara direito?

Claudia Safatle - Sob o risco de estagflação

- Valor Econômico

Quadro desafiador combina inflação alta e baixo crescimento

A inflação preocupa, mas não se trata de um processo de estagflação (estagnação econômica com inflação), pois há crescimento, avalia o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida. O fato de ter um carregamento estatístico de 3,6% da atividade do ano passado para este ano e diante da perspectiva de um PIB de apenas 3,2% não caracteriza “nem estagnação nem recessão”, diz. Ele alerta: a reedição do auxílio emergencial, embora em menor valor, e o desequilíbrio fiscal pressionarão mais os preços. O que fazer?

O Comitê de Política Monetária (Copom) aumentou os juros de 2% para 2,75%, com a taxa Selic deixando para trás quase seis anos de queda. E, na pasta da Economia, “tivemos a super quarta”, um dia de boas notícias vindas do Congresso, que aprovou a nova lei do gás e manteve os vetos ao marco legal do saneamento, além de o governo imprimir uma nova rodada de redução tarifária, com um corte de 10% no imposto de importação de quase 1.500 itens fora do acordo do Mercosul. Para ele, “esse é o caminho” - reformas pró-mercado, abertura da economia e consolidação fiscal - e “cada um no seu quadrado”, evitando, assim, comentários sobre a decisão do Copom, que elevou a meta da taxa Selic em 75 pontos-base e já indicou mais um aumento de igual magnitude para a próxima reunião do comitê, em maio.

Flávia Oliveira - Dá de comer, recado ao governo

- O Globo

O Brasil chega ao momento mais grave, dramático, letal da pandemia da Covid-19 sem ter conseguido nem sequer padronizar os sinais de orientação à população. Na falta da articulação do Ministério da Saúde — nunca é demais repetir quanto a liderança positiva da União salvaria vidas —, governadores e prefeitos trilham caminhos próprios. E muito confundem, infelizmente. No Rio Grande Sul, bandeira preta indica a gravidade; em Minas Gerais, a cor é roxa; em São Paulo, vermelha, assim como no Rio de Janeiro e na Bahia. São indicadores de importância secundária, em princípio. Mas a profusão de cores evidencia a Babel de avaliações e a dificuldade do país em ter um norte no enfrentamento à pandemia. E caminhar na direção dele.

A responsabilidade maior pelo infortúnio é do presidente da República, que, com prepostos na pasta da Saúde, orienta os descaminhos no combate ao coronavírus: da sabotagem às medidas de isolamento e distanciamento social à resistência ao uso de máscaras, da indicação de medicamentos ineficazes à desqualificação de vacinas. Um ano de pandemia ensinou ao planeta que políticos responsáveis são capazes de aliviar a dor dos compatriotas, evitar mortes, preservar atividade econômica e empregos. Portugal é o exemplo recente mais festejado. Era o pior da Europa em número de casos, em um mês de lockdown, passou a terceiro melhor. O total de óbitos diários caiu de 303 no fim de janeiro para 15 anteontem. Sem o negacionismo de Donald Trump, o cenário também vem melhorando nos EUA. O plano de imunização do democrata Joe Biden bateu a meta de cem milhões de americanos vacinados em 50 dias, metade do prazo prometido na posse.

Nelson Motta - O amor nos tempos do ódio

- O Globo

Não quero falar daquela pessoa maligna onipresente no pesadelo brasileiro, porque todos falam dele, parece não haver outro assunto, pior que tudo acaba sendo ligado a ele “na ponta da linha”. Já tentei o humor algumas vezes, o deboche, a ironia, a indignação, a fúria, não sei mais o que fazer para divertir o leitor e livrá-lo por alguns momentos deste circo dos horrores diário. Tentemos a poesia:

Meu passado me condena

não à culpa, à vergonha ou ao arrependimento,

nem ao remorso, à mentira ou ao esquecimento,

mas a ser quem sou agora,

feito dos erros e acertos das palavras e dos gestos,

dos ganhos e perdas, sentimentos e razões,

de encontros e desencontros, de tantas ilusões.

Melhor disse Octavio Paz, o poeta,

“Pureza é aquilo que fica

depois de todas somas e restos”.

Ruth de Aquino - A cartilha de um genocida

- O Globo

Chamar Bolsonaro de genocida parece provocação. Genocídio é o extermínio deliberado de uma coletividade indefesa, por diferenças étnicas, nacionais, religiosas ou sociopolíticas. O massacre de milhões de judeus por Hitler cunhou a expressão. Esse crime contra a Humanidade é julgado em tribunais internacionais, com pena de até 30 anos de prisão. Não prescreve. Raramente os crimes de gestão pública chegam a Haia, na Holanda.

Por que então esse aprendiz de ditador que bajula as Forças Armadas, ameaça outros poderes, despreza minorias e persegue a imprensa é acusado de genocida? Em julho de 2020, quando os mortos por Covid eram 85 mil no Brasil, já havia em Haia três denúncias contra Bolsonaro por incitar mortes, asfixiar indígenas e propagar o vírus. No Supremo Tribunal Federal, há na pauta uma notícia-crime de genocídio. Um líder pode construir ou destruir consciência cívica. No início da pandemia, a população era mais comedida. Depois, imitou os negacionistas.

Dora Kramer - Batata no forno

- Revista Veja

Bolsonaro ainda não deu sinais claros de que compreende o tamanho do buraco no qual entra cada vez mais fundo

A pergunta óbvia feita em toda parte e por toda gente diante da troca de guarda (não de comando) no Ministério da Saúde é se isso corresponderá a uma mudança de atitude do presidente da República no trato da crise sanitária que levou o Brasil a um lugar degradante na cena global. Pelo conjunto da obra, Jair Bolsonaro já havia conduzido o país à situação de pária. No particular da pandemia, nos transformamos em ameaça mundial.

A devastação de vidas, valores, procedimentos e imagem não sensibiliza o chefe da nação. Ou melhor, não parece sensibilizar a ponto de ele perceber a relação direta entre o terreno daninho que cultiva em torno de si e a possibilidade de realizar seu prioritário plano de se reeleger para mais um mandato. Portanto, a depender dele na essência não se modifica.

A questão é que as coisas independem, as circunstâncias não necessariamente obedecem à vontade do rei, do presidente e às vezes nem se curvam às ordens dos ditadores. Por mais que as recentes pesquisas mostrem um aumento significativo de sua reprovação como governante, Bolsonaro ainda não deu sinais claros de que compreende o tamanho do buraco no qual entra cada vez mais fundo e segue achando que a resistência de 30% de adoradores basta para lhe assegurar vaga no segundo turno das eleições de 2022.

Murillo de Aragão - Um novo presidencialismo

- Revista Veja

O Judiciário ganha força e, com a pandemia, o federalismo também

O governo Bolsonaro, por suas características, reforçou uma tendência iniciada no segundo mandato de Dilma Rousseff: a transformação do chamado “presidencialismo de coalizão”. Esse processo continua, embora ainda não seja claramente percebido.

Até 2015 todas as emendas orçamentárias parlamentares possuíam caráter discricionário, ou seja, dependiam de autorização do governo federal para liberação. Tal sistemática estimulava as negociações com o Executivo em troca de apoio.

Em 2019, já no governo Bolsonaro, o Legislativo estabeleceu, com a Emenda Constitucional nº 100/19, que as emendas de bancadas estaduais também deveriam ser obrigatoriamente pagas. No mesmo ano, a Emenda Constitucional nº 105/19 autorizou repasses diretos a estados, municípios e ao Distrito Federal de recursos de emendas individuais impositivas, sem a necessidade de convênios com o governo federal.

Augusto de Franco* - A janela que temos para tirar Bolsonaro

1 – Os populismos são hoje, no Brasil e no mundo, os principais adversários da democracia. Estudos empíricos têm mostrado que governos populistas – sejam da direita ou da esquerda – têm um efeito altamente negativo sobre os sistemas políticos e levam a um risco significativo de erosão democrática. Eis algumas conclusões de uma avaliação recente:

a) Os populistas duram mais no cargo. Em média, os líderes populistas permanecem no cargo duas vezes mais do que os líderes democraticamente eleitos que não são populistas. Os populistas também são quase cinco vezes mais propensos do que os não-populistas a sobreviver no cargo por mais de dez anos.

b) Os populistas geralmente deixam o cargo em circunstâncias dramáticas. Apenas 34% dos líderes populistas deixam o cargo após eleições livres e justas ou porque respeitam os limites dos mandatos. Um número muito maior é forçado a renunciar ou é impedido, ou não deixa o cargo.

c) Os populistas são muito mais propensos a prejudicar a democracia. No geral, 23% dos populistas causam um retrocesso democrático significativo, comparado com 6% dos líderes democraticamente eleitos não populistas. Em outras palavras, os governos populistas são cerca de quatro vezes mais propensos do que os não-populistas a prejudicar as instituições democráticas.

Paulo César Nascimento* - Frente ampla ou centro-esquerda? O imbróglio político brasileiro

Vozes políticas têm defendido, já há algum tempo, a ideia da formação de uma frente ampla para concorrer às eleições presidenciais de 2022. Esta parece, à primeira vista, uma proposta razoável e promissora: aglutinar, em torno de um candidato, uma miríade de forças políticas para fazer frente aos adversários considerados mais importantes: Bolsonaro e o PT. Tal frente ampla, de matriz centrista, evitaria uma polarização entre radicais à direita e esquerda, garantindo, dessa forma, a continuidade da democracia brasileira. A estratégia de frente ampla foi uma fórmula política exitosa no contexto da luta contra a ditadura militar, quando várias correntes políticas se uniram pela redemocratização do país, desde setores dissidentes das forças armadas e do partido da situação, a ARENA, até o MDB e outras forças progressistas e de esquerda.

No entanto, uma vez que examinamos a ideia de frente ampla na realidade brasileira atual, podemos constatar que ela sofre de incoerência lógica e dificuldades políticas intransponíveis. Uma frente ampla geralmente elege um único adversário – um governante autoritário, um grupo ditatorial militar, ou uma elite reacionária. A própria lógica dos regimes ditatoriais, que exclui da política toda e qualquer força que lhes faça oposição, ajuda a amalgamar tal aliança. Contudo, a frente que desejam construir atualmente se propõe a combater tanto Bolsonaro e seus aliados – Centrão ou parte dele, liberais de direita cooptados, etc. – como, ainda, o candidato do PT, o PDT de Ciro Gomes e a possível candidatura mais à esquerda de Guilherme Boulos. Estamos, dessa forma, diante de uma nova jabuticaba política brasileira: uma “frente ampla” que, ao invés de tentar isolar um adversário, pretende lutar contra praticamente todo mundo...

Hamilton Garcia de Lima* - A viagem redonda: de volta à política de vetos

Nossas instituições democráticas são frágeis, ao contrário da retórica corrente: os partidos mal representam os setores sociais afins, as eleições não refletem satisfatoriamente as inclinações populares – sobretudo no Legislativo – e não propiciam a formação de governos minimamente coesos, a Justiça é seletiva e tendente à proteção de casta, e, como resultado, o sistema político padece cronicamente de legitimidade, fragilizando-se nas crises: não precisa ser um especialista para perceber.

Todavia, nosso problema genético central (verticalismo/insolidarismo) está fora do alcance das ideologias em voga (nacional-populismo x liberalismo), se constituindo em um desafio para além de qualquer 

 

 
ortodoxia, da qual, infelizmente, nossa intelligentsia também se encontra prisioneira, como no mito da caverna (Platão).

A principal causa dessa fragilidade reside numa cultura política, social e institucional, que aparta Estado e sociedade de tal modo que, sob os auspícios das regras institucionais, o voto popular reitera o  afastamento, ao invés de superá-lo, por efeito de um alargamento democrático que não enseja aprofundamento, ou seja, não propicia ao eleitor canais de exercício de sua autonomia face ao poder econômico e burocrático, impelindo os agentes político-partidários à busca do bem comum em meio às inexoráveis diferenças político-ideológicas.

As razões estruturais/normativas de tal dificuldade foram abordadas/indicadas em artigos anteriores (vide Clientelismo, Cargos e Voto – a erosão oligárquica da democracia). Cabe agora apenas delinear o retrocesso precipitado pelo baluartismo das lideranças civis, de todos os quadrantes, diante dos inequívocos sinais emitidos pelas massas desde 2013, ao cabo capturados/interpelados pelo bolsonarismo.

Música | Feitio de paixão - Jorge Aragão

 

Poesia | José Saramago - Intimidade

No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.