segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Opinião do dia - Luiz Werneck Vianna*

 

A catástrofe da pandemia que nos assola pôs a nu o caráter patológico da modelagem de sociedades sob hegemonias da ideologia neoliberal, e não por acaso EUA e Brasil lideram o ranking macabro de óbitos, ocupando os dois primeiros lugares. Obviamente que as candidaturas em suas campanhas eleitorais devem estar centradas nos temas que digam respeito às concepções de sociedade e de justiça, traduzidas no plano concreto por enunciados por políticas distributivas e de promoção social. Essa hora tem a cara da esquerda democrática a ressurgir nas ruas e no voto.

 *Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, Puc-Rio. "Hora e vez da esquerda democrática", 9/8/2020.

Marcus André Melo* - O Estado brasileiro é fascista?

- Folha de S. Paulo

A redução da expressão fascismo a autoritarismo é pobre analiticamente

 “Is Brazil a fascist state?” Este é o título do último capítulo de “Brazil Under Vargas” (1942), de Karl Loewenstein. A pergunta não poderia vir de alguém mais qualificado: o ex-pupilo de Max Weber havia publicado “Hitler’s Germany” (1939) e trabalhos pioneiros sobre movimentos autoritários na década de 30. O autor não falava apenas de cátedra: ele próprio fugira de Hitler para tornar-se acadêmico nos EUA e influenciou ativamente a elaboração da Constituição alemã de 1949.

Loewenstein concluiu que os rótulos comuns para o regime de Vargas não eram apropriados: “o regime não é nem democrático nem ‘democracia disciplinada’; nem totalitário nem fascista; é uma ditadura autoritária para o que os franceses cunharam um termo adequado: ‘régime personnel’, mas que exerce poderes teoricamente ilimitados com moderação dado o habitat liberal-democrático brasileiro”.

O Brasil não era totalitário, e a mobilização política oficial era cosmética: “não há a mística de Estado como na Alemanha nem nos primeiros anos do fascismo na Itália”. Mas importante é sua conclusão que, enquanto esses dois países são casos de Estados de partido único, o Brasil representava uma situação peculiar de Estado sem partido: os partidos políticos não existiam nem no papel nem na prática.

Com base em ampla base empírica, Loewenstein analisou o funcionamento das instituições brasileiras (sistema de justiça, mídia etc.) —em comparação com a Alemanha nazista e outros países—, concluindo que no Brasil o arbítrio aplicava-se de forma muito mais restrita. Especulava que “a persistência da regra da lei no Brasil de hoje, mesmo sob pressão de um regime autoritário, o qual em termos constitucionais é materialmente ilimitado, pode ser creditada à tradição enraizada e forjada no marco da monarquia constitucional no Império”.

Revisitar Loewenstein é urgente porque o Estado Novo na nossa experiência histórica foi o regime político que mais se pareceu com o fascismo. E ele próprio é a um só tempo testemunha e pesquisador pioneiro do assunto. Sua análise deixa claro que a redução da expressão fascismo a autoritarismo é pobre analiticamente.

No debate público americano atual, Jason Stanley e Timothy Snyder têm insistido que sob Trump os EUA teria se tornado fascista. Samuel Moyn retruca, como escrevi neste espaço, que é irônico que a maior oportunidade para implementar o fascismo (a pandemia) produziu inação, e não um ditador.

E adverte que mostrar o que situações tem em comum é banal; há similaridades em quaisquer fenômenos: “a comparação sem o reconhecimento de diferenças é puro partidarismo”. Como amplamente demonstrado por Loewenstein!

*Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). 

Celso Rocha de Barros* - Bolsonaro merece ser preso

- Folha de S. Paulo

Durante a pandemia, presidente tentou autogolpe e aparelhar a Polícia Federal

A edição da revista piauí deste mês traz uma matéria, assinada por Monica Gugliano, com o título “Vou Intervir!”. Ela conta a história de uma reunião de 22 de maio, no Palácio do Planalto, em que Bolsonaro teria decidido mandar tropas para fechar o STF.

O plano seria substituir os 11 ministros por 11 puxa-sacos de Bolsonaro, por tempo indeterminado. Uma quartelada vagabunda raiz, nada dessas sutilezas de lenta corrosão democrática “Steven Levitsky” de que eu vivo falando aqui. O presidente teria sido dissuadido pelo general Heleno, que, para apaziguá-lo, soltou uma nota ameaçando o STF.

A princípio, o governo poderia ter desmentido a matéria, que é baseada em depoimentos concedidos off the record. Nessa situação, cabe ao leitor decidir se confia na reputação da revista —que, no caso da piauí, é impecável.

Entretanto, entre os bolsonaristas a desconfiança com relação à imprensa é generalizada. Se o governo quisesse desmentir a matéria, poderia tê-lo feito e considerado o assunto encerrado dentro da bolha que o elegeu.

Não desmentiu.

Houve quem interpretasse que o conteúdo da reunião vazou por interesse do governo, para avisar que o golpismo ainda está vivo. Se for, foi desnecessário: era só mandar o pessoal ler minha coluna, sempre digo isso.

Houve quem suspeitasse que o general Heleno vazou para parecer moderado. Houve ainda uma suspeita de que o governo teria vazado o conteúdo da reunião de propósito, para depois desmoralizar a imprensa com um desmentido (uma gravação, por exemplo). É triste viver em um país em que essa suspeita não é absurda.

De qualquer forma, a revelação da piauí não teve repercussão política nenhuma. E a explicação é simples: em geral, só se admite em voz alta aquilo de cujas consequências práticas se está disposto a arcar.

Muito antes da matéria da piauí, todo mundo já tinha visto Bolsonaro tentar o autogolpe em 2020. Mas, se você disser em voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe, a solução é impeachment e cadeia. Se você não puder e/ou não quiser fazer impeachment e cadeia, é mais fácil não dizer em voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe.

Ainda não parece haver correlação de forças para impeachment e cadeia: o centrão está no bolso do governo, o auxílio emergencial ainda deve durar alguns meses. Enquanto for assim, a turma vai fingir que não viu o golpe, os 100 mil mortos, o aparelhamento na Polícia Federal.

Talvez essa correlação de forças não mude nunca. Nesse caso, a fraqueza natural humana fará com que muita gente racionalize que não foi tão ruim assim, “olha só como ele era democrata, até comprou o Roberto Jefferson, todos nós aqui sempre dissemos que isso era a marca do democrata, ninguém aqui nunca reclamou de quem comprava o Roberto Jefferson”.

Eu, aqui, não vou racionalizar isso, não.

O dia de trabalho de Bolsonaro durante a pandemia de 2020 se dividiu entre organizar um golpe de manhã, aparelhar a Polícia Federal de tarde e demitir o ministro da Saúde no telejornal da noite.

Se esses crimes ficarem impunes, prefiro viver com o incômodo dessa injustiça e esperar a maré virar. Se não virar, levo o incômodo comigo até o fim. Não tenho como fazer acontecer, mas deixo registrado para os leitores do futuro: em 2020, nós sabíamos que Bolsonaro merecia ser preso. Todos nós sabíamos.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)

Leandro Colon - Bolsonaro pode tocar a vida

 - Folha de S. Paulo

Parlamento não reage ao descalabro do governo na pandemia e ao caso Queiroz

O Brasil atinge a desoladora marca de 100 mil mortos pelo Covid-19 ao mesmo tempo em que novos elementos surgem sobre as ligações entre Fabrício Queiroz e Jair Bolsonaro.

Dois temas distintos que dividiram casualmente o noticiário da semana que findou. Eles coincidem em um ponto: o silêncio do presidente da República.

Bolsonaro se cala sobre a montanha de dinheiro que pingou várias vezes na conta de Michelle e tergiversa em relação à responsabilidade na catástrofe do coronavírus.

Não há explicação plausível para os 27 depósitos feitos por Queiroz e sua mulher entre 2011 e 2016. Um total de R$ 89 mil repassados por meio de cheques para a primeira-dama.

Não fica em pé a versão inicial dada pelo presidente de que parte disso, R$ 40 mil, era pagamento de empréstimo que fez a Queiroz. Empréstimo jamais declarado no Imposto de Renda.

A defesa capenga e a falta de esclarecimentos sobre os novos fatos reforçam as suspeitas de que Michelle foi elo do esquema das "rachadinhas" da Assembleia do Rio. É muito grave.

Em um país um pouco mais sério, o Congresso cobraria resposta de Bolsonaro e investigaria o caso. Em um país que tem o centrão dando as cartas, isso não vai acontecer.

Da mesma maneira o Parlamento se omite no comportamento doloso do governo na pandemia.

Ignora a narrativa criminosa do presidente em defesa da hidroxicloroquina e assiste silenciosamente ao naufrágio da gestão militar no Ministério da Saúde.

São 100 mil mortos. Sobram notas oficiais de lideranças e repúdios de opositores em redes sociais, além de outros gestos inúteis que não fazem cócegas no morador do Palácio do Alvorada.

"Vamos tocar a vida", disse Bolsonaro na véspera de o país atingir a marca dos 100 mil.

O presidente não precisa se preocupar muito. ​Pode continuar omisso e tocando sua própria vida enquanto não houver uma reação decente por parte de quem deveria fazê-lo.

Ricardo Noblat - O plano para reeleger Bolsonaro passa por Lula candidato

- Blog do Noblat | Veja

De volta ao passado

Cresce o número de vozes nas cercanias do presidente Jair Bolsonaro que não achariam nada mal que seu principal adversário nas eleições de 2022 fosse Lula. Para isso, o Supremo Tribunal Federal teria de concluir que o ex-juiz Sergio Moro foi parcial ao condenar Lula no processo do tríplex do Guarujá.

Talvez ainda este ano, a Segunda Turma do tribunal julgue um pedido de habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente que levanta a suspeição de Moro. Se concedê-lo, a segunda condenação de Lula, no caso do sítio de Atibaia, poderá cair, uma vez que Moro participou de algumas fases do processo.

Com o eventual desmanche das duas condenações, Lula recuperaria seus direitos políticos e estaria livre para ser outra vez candidato a presidente. O medo de Lula se eleger e a falta de outros nomes capazes de derrotá-lo fortaleceria Bolsonaro e inflaria suas chances de conseguir o segundo mandato.

Recentemente, Lula obteve duas importantes vitórias na Segundo Turma do Supremo. A primeira: finalmente, sua defesa vai poder acessar todos os documentos usados no acordo de leniência fechado pela Odebrecht com o Ministério Público Federal, inclusive os que se encontram nos Estados Unidos e na Suíça.

A segunda vitória: a delação do ex-ministro Antonio Palocci não pode ser utilizada nesta ação em que Lula é acusado de ter supostamente recebido R$ 12 milhões da Odebrecht. Moro passou recibo dos dois sérios reveses que colheu. Em silêncio, o governo celebrou as decisões da Segunda Turma do Supremo.

No momento, são convergentes os interesses do governo Bolsonaro e do PT de Lula. Com vantagem para Bolsonaro que terá dois anos pela frente para penetrar mais fundo na principal base eleitoral de Lula, o Nordeste. O que ele tinha a perder com o fracasso do combate ao coronavírus, já perdeu. Jogo jogado.

O que pode vir a ganhar com o pagamento do auxílio emergencial e com a substituição do programa Bolsa Família pelo mais generoso programa Renda Brasil ainda está por ser calculado, mas não será pouca coisa. Cuide-se Paulo Guedes, ministro da Economia, que será obrigado a arranjar dinheiro para obras de infraestrutura.

Ministro nega dossiê, mas confirma relatório sobre servidores antifascista

Que diferença faz? Nenhuma

Está em qualquer dicionário da língua portuguesa que “dossiê é uma coleção de documentos relativos a um processo, a um indivíduo ou a qualquer assunto”. E que relatório “é uma exposição escrita, minuciosa e circunstanciada relativa a um assunto ou fato ocorrido. O objetivo de um relatório é comunicar uma atividade desenvolvida ou ainda em desenvolvimento durante uma missão.”

Como o jornalista Rubens Valente, no seu blog do portal UOL, chamou de dossiê a coleção de documentos produzidos por uma secretaria do Ministério da Justiça sobre quase 600 servidores federais que se declararam antifascistas nas redes sociais, o ministro André Mendonça negou a existência do tal dossiê. Negou até em comunicado enviado ao Supremo Tribunal Federal.

Mas apertado por deputados federais e senadores em sessão secreta na última sexta-feira, ele confirmou que a secretaria produziu, sim, um relatório sobre os servidores monitorados. Por monitorados, entenda-se: espionados. Porque é disso que se trata. Não faz diferença se foi dossiê ou relatório. O que se discute é se a secretaria poderia fazer o que de fato fez, e por que.

A bola – ou melhor: o comunicado despachado por Mendonça ao Supremo – está nas mãos da ministra Carmen Lúcia, autora de um pedido de explicações. Dossiê ou relatório, à ministra caberá dizer se o Ministério da Justiça pode espionar um grupo de pessoas por pensaram de um jeito ou de outro. Ou porque o governo simplesmente não gosta do jeito que elas pensam.

Sergio Lamucci - O teto e as armadilhas das contas públicas

- Valor Econômico

Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, mas uma atitude rígida demais pode paralisar serviços públicos, sem enfrentar a expansão dos gastos obrigatórios

O cenário para as contas públicas em 2021 está marcado por incertezas. Há pressão para mudanças no teto de gastos, o mecanismo que limita o crescimento de despesas não financeiras da União. O movimento vem tanto de fora quanto de dentro do governo, como lembra Ricardo Ribeiro, analista político da MCM Consultores. Para ele, “a flexibilização do teto não é certa, embora a probabilidade seja crescente”.

O desejo de políticos e ministros fora da equipe econômica de destinar mais recursos para obras públicas e para programas sociais alimenta a pressão. Além disso, há também os problemas causados pelo desenho do teto e por uma correção muito baixa do limite de despesas para 2021.

A situação fiscal é delicada. Com o aumento de despesas para combater os efeitos da pandemia e a perda de receitas devido ao tombo da atividade, a dívida bruta subirá neste ano para a casa de 95% do PIB, tendo partido de 75,8% do PIB em 2019, um nível que já era muito mais elevado do que o da média dos emergentes.

Para grande parte dos especialistas em contas públicas, é preciso começar um processo de ajuste fiscal mais forte já em 2021. Sem isso, argumentam, os juros baixos não vão se sustentar. O risco país pode subir, o câmbio pode se desvalorizar muito e os juros futuros podem aumentar, tornando inviável manter baixa a Selic. Cumprir o teto seria decisivo para reforçar o compromisso fiscal.

No meio político, porém, crescem as pressões pela flexibilização. Em entrevista para “O Globo”, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, defendeu mais investimentos em infraestrutura básica, principalmente no Norte e no Nordeste. Para Ribeiro, da MCM, “levar água, saneamento e moradia ao Nordeste e engordar o Bolsa Família, transformando-o no Renda Brasil, são argumentos poderosos a favor dos apelos” destinados ao ministro da Economia, Paulo Guedes, por Marinho e pelo senador Flavio Bolsonaro - em entrevista a “O Globo”, o filho do presidente disse “Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações [obras paradas] que têm impacto social e na infraestrutura

Para Ribeiro, “a pressão pelo ‘dinheirinho’ adicional é crescente e tende a ficar mais volumosa quando, ao fim de agosto, o projeto de lei orçamentária da União for enviado ao Congresso”. O envio da proposta “provocará, muito provavelmente, uma chiadeira generalizada no Congresso e dentro do governo, pois o aperto orçamentário de 2021 ficará escancarado”, diz ele. “Há evidente apoio político à ideia, dentro e fora do governo. E se Jair Bolsonaro fosse totalmente avesso à ideia já teria enquadrado Rogério Marinho”, escreve Ribeiro, observando, porém, que “Paulo Guedes, Rodrigo Maia [o presidente da Câmara dos Deputados] e o receio da reação negativa do mercado ainda são barreiras poderosas à flexibilização”.

A pressão, como se vê, não é pequena. Além disso, problemas do teto colaboram para o questionamento do mecanismo. A regra tem méritos, tendo sido fundamental para melhorar as expectativas quanto à trajetória das contas públicas de longo prazo. Ele permitiu um ajuste gradual, sem que fosse necessário uma consolidação fiscal abrupta. Mas o teto também tem defeitos. O principal problema fiscal do país é a rigidez do Orçamento, marcado pelo crescimento contínuo de despesas obrigatórias, como aposentadorias e gastos de pessoal. O governo tem liberdade para manejar menos de 10% dos gastos. A reforma da Previdência reduz o ritmo de expansão dos gastos com aposentadorias, mas não o interrompe. Também é crucial enfrentar a elevação das despesas de pessoal.

Na emenda do teto, estão previstos gatilhos a serem acionados em caso de descumprimento do mecanismo, com medidas que impedem reajuste dos salários dos servidores e restringem a criação de cargos, por exemplo. A questão é que, por um erro de redação, não se consegue acioná-los. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) não pode conter despesas que ultrapassem os limites do teto, como lembra Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI). Os gatilhos não podem entrar em vigor pelo envio de um projeto que preveja o estouro do teto, ainda que isso leve à elaboração de um orçamento irrealista, com um corte muito expressivo de despesas discricionárias (como custeio da máquina e investimentos).

Para 2021, o teto aumentará apenas 2,13%, porque essa foi a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) nos 12 meses até junho de 2020. Para cumpri-lo, será necessário espremer mais os gastos discricionários. O problema é que essas despesas poderão ficar abaixo do limite que compromete o funcionamento da máquina pública, estimado em R$ 89,9 bilhões pela IFI. Com isso, pode haver uma paralisação de atividades do setor público, além de um corte ainda mais drástico dos investimentos, sem a adoção de medidas verdadeiramente necessárias para controlar a expansão de despesas obrigatórias, como os gastos com pessoal.

Para Salto, é preciso encontrar uma saída para descumprir o teto e fazer com que os gatilhos sejam acionados, preservando a regra. Há dois anos, o governo Michel Temer, em conversas com o Tribunal de Contas da União (TCU), chegou a uma saída para o descumprimento da “regra de ouro”, que impede a emissão de dívida para pagar despesas correntes. “Esse precedente permite imaginar uma saída similar para o teto que possibilite não jogar no lixo os gatilhos ali previstos”, diz ele. Salto estima que acionar os gatilhos previstos na emenda do teto garantiria um ajuste de algo como 0,5 ponto percentual do PIB em dois anos, “dando tempo e fôlego para o Executivo e o Congresso encontrarem uma solução definitiva”. Para ele, “o essencial é ter claro que o problema do crescimento da despesa continua posto e precisará ser sanado”.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial do governo contempla o disparo dos gatilhos no caso de descumprimento da “regra de ouro”, mas a aprovação demandaria tempo e capital político, num momento em que as discussões tendem a se concentrar na reforma tributária.

Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, colocando em xeque os juros baixos. Uma atitude rígida demais, porém, pode paralisar serviços públicos essenciais e jogar o investimento para níveis ainda mais baixos, sem que o crescimento das despesas obrigatórias seja de fato enfrentado. Escapar dessas armadilhas será crucial para garantir a sustentabilidade fiscal e permitir a recuperação da atividade, num país que registra desde 2014 um desempenho econômico horroroso.

Carlos Pereira - Quem está falhando? Governo ou instituições?

 

- O Estado de S.Paulo

Com um governo melhor, o Brasil enfrentaria também melhor o desastre sanitário

Nesse final de semana o noticiário dá conta de que o Brasil ultrapassou a trágica marca de cem mil mortes pelo novo coronavírus. O maior impacto dessa tragédia humanitária tem sido os mais vulneráveis, tanto do ponto de vista das condições de saúde, como socioeconômicas. São pessoas idosas, de classes sociais mais baixas, negros e pardos e portadoras de doenças pré-existentes. A covid-19 expôs de forma cristalina e seletiva a enorme desigualdade social e de renda do país.

Para muitos essa hecatombe sanitária seria evidência de que as instituições brasileiras não apenas não estariam funcionando, mas também de que estariam completamente falidas. Esse diagnóstico, entretanto, peca por atribuir às instituições o que seria consequência das políticas governamentais escolhidas.

Daren Acemoglu e James Robinson argumentam em seu último livro Narrow Corridor: State, Societies, and the Fate of Liberty que desenvolvimento com preservação de liberdades requer equilíbrio entre Estado e a sociedade. O Estado precisa ser forte e poderoso para proteger as pessoas, garantir direitos e proporcionar serviços para seus cidadãos. Mas a sociedade também precisa ser forte, vigilante e atuante, para impedir que o Estado faça mal uso de seus poderes. Para os autores, o “corredor estreito”, gerado pelo equilíbrio dinâmico entre sociedade e Estado, proporcionaria as condições para a emergência virtuosa de uma espécie de “Leviatã algemado”.

O desenho institucional brasileiro que emergiu na Constituição de 1988 criou um Estado forte, dotado de um executivo poderoso, com uma burocracia profissionalizada e meritocrática e organizações de controle (i.e., judiciário, ministério público etc.) independentes. Ao mesmo tempo, preservou um sistema político inclusivo e representativo, capaz de acomodar praticamente todos os interesses da sociedade. Ninguém fica de fora do jogo político no Brasil. Ainda por cima, estimulou o desenvolvimento de uma sociedade livre, complexa e, acima de tudo, vigilante para conter potenciais desvios ou arroubos iliberais de governos de plantão.

O resultante dessa combinação tem sido o desenvolvimento de instituições nitidamente inclusivas, mas não necessariamente eficientes. No livro Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change eu e meus coautores argumentamos que o perfil de inclusão, na realidade, tem sido dissipativo, em que a estabilidade democrática seguida de redistribuição e inclusão social são efetivamente alcançadas, mas também esse processo é acompanhado por distorções e ineficiências. É importante lembrar que esse perfil é o comum em países em desenvolvimento, e não apenas no Brasil.

Mas a existência de dissipação não cancela a natureza transformadora das mudanças que o Brasil tem vivido com o desenho institucional atual. Ou seja, dissipação não significa necessariamente ausência de funcionalidade institucional. Como esse processo ainda está em curso, é muito difícil identificar a parcela que é inclusão efetiva daquela que é dissipação. Depende, essencialmente, do viés da lente do observador. Se favorável ao governo de plantão, enfatizará aspectos que confirmem a inclusão. Já observadores de oposição tenderão a encontrar mais dissipação.

O arcabouço institucional não é uma “camisa de força” que aprisiona os atores políticos. Mas dá os limites. Existe espaço para escolhas de como governar e das políticas que serão implementadas. As dissipações podem ser minoradas ou maximizadas a partir dessas escolhas.

Dizer que as instituições não funcionam é tão ingênuo quanto o seu oposto, ou seja, que as instituições funcionam perfeitamente. As mazelas que o Brasil tem vivido são decorrências de falhas de governo, mas não necessariamente evidenciam uma falha institucional.

Fernando Gabeira - Fúnebre marcha dos 100 mil

- O Globo

Resposta à pandemia nos convida a repensar o país

Desde o início da quarentena escrevo um diário. Nele, apesar da pressa, incorreções e algumas bobagens, analiso os fatos desses meses de coronavírus.

Não sinto tanta necessidade de escrever sobre isto, mais do que faço diariamente. Mas, no momento em que alcançamos a marca de 100 mil mortos, é importante dizer algo fora dos limites. O número redondo lembra-me dos anos 60, quando marchávamos orgulhosamente contra o governo militar.

Os 100 mil de hoje representam também um protesto, só que desta vez contra o descaso e retumbante fracasso de nossa política nacional contra a Covid-19.

O ideal seria sairmos às ruas, os sobreviventes, para protestar por eles. A natureza da pandemia nos obrigou a uma quarentena. Escrevi no diário algumas vezes como isso não apenas entorpeceu nossos músculos, mas mudou a maneira como nos vemos.

O país se transformou num imenso centro espírita, e nós baixamos nos computadores para sessões de conversa que chamamos de lives, mas poderiam também ser chamadas de deads.

Parece que muitos de nós vivem numa parte mal iluminada da eternidade, aparecemos para a conversa, desligamos o aparelho e evaporamos. Não se acaba mais em pizza como antigamente, quer dizer, num descontraído jantar após a reunião, o debate ou conferência.

Leio no livro de Churchill que os piores momentos de nossa vida são aqueles que não aconteceram, aqueles que nos mantiveram preocupados, levaram nosso sono e nunca se apresentaram de fato em nossas vidas.

Isso corresponde ao que diz um personagem de Borges diante da morte: é menos duro enfrentar um perigo do que imaginá-lo e aguardá-lo durante muito tempo.

A Covid-19, nesse sentido, é a pior doença que nunca tive. Certamente há outras mais graves e devastadoras, mas nunca perdi um minuto preocupado com elas.

Os índios no Amapá a consideram uma espécie de doença espiritual, por causa da invisibilidade do vírus. Mas nem por isso deixam de temê-la.

Desde o princípio, luta-se contra a negação do governo. Era apenas uma gripezinha e afirmávamos que, ao contrário, era uma perigosa pandemia. Surgiram os mortos, e o governo achou que seu número estava superdimensionado, diante de todas as evidências de que havia subnotificacão.

Um dos luminares do governo calculou que morreram apenas 800 pessoas e continuou duvidando dos fatos, mesmo quando os mortos já eram 80 mil.

Duvidaram dos caixões, que para eles estavam vazios ou cheios de pedras. Duvidaram do número de covas, vetaram uma dezena de artigos na lei de proteção aos povos indígenas.

Seguimos fazendo lives como ectoplasmas que reaparecem no território virtual para puxar a perna dos vivos que, sem máscara, montados a cavalo, celebravam seu escandaloso idílio com a morte. E daí?

Os tribunais de dentro e de fora do Brasil terão material por muito tempo. A suposição de que essas coisas acontecem e são esquecidas é falsa. Uma política de negação que produziu milhares de mortos, índios, grávidas, é algo que ficará na história e acabará desabando sobre seus autores, por mais velhos e combalidos que estejam no momento em que forem alcançados.

Vivemos num país de curandeiros. Bolsonaro passa seus dias mostrando a cloroquina para todos os seres humanos e animais que encontra pela frente. O ministro da Ciência e Tecnologia gasta 8 milhões para pesquisar um vermífugo chamado Annita, e até audiências foram anunciadas para discutir o poder do alho cru.

E se você perde a paciência, elegância, e pergunta: e naquele lugar, não vai nada? Eles responderão com tranquilidade:

— Algumas doses de ozônio e um cateter bem fino.

Aos poucos vamos saindo da toca, meio ressabiados, contentes em ver quem sobreviveu. Mas a maneira como tratamos a pandemia, as condições de desigualdade em que a vivemos, uns com água e esgoto, outros não, uns com casa confortável, outros espremidos nos barracos, tudo isso coloca em questão o próprio sentido da sobrevivência.

Apesar da solidariedade, do desprendimento dos trabalhadores em saúde, a resposta brasileira à pandemia nos convida a repensar o país.

E responder em conjunto a essa fúnebre marcha dos 100 mil.

Demétrio Magnoli - O único consenso nacional

- O Globo

A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária

 ‘Já enfrentávamos uma crise de ensino anterior à pandemia. Agora, estamos diante de uma catástrofe de toda uma geração que pode desperdiçar potencial humano e levar a décadas de atraso, exacerbando a desigualdade.’  António Guterres, secretário-geral da ONU, concluiu dizendo que a educação merece o qualificativo de atividade essencial: “Colocar os alunos de volta às escolas da forma mais segura possível precisa ser a maior prioridade”. No Brasil, porém, o debate sobre o tema foi virtualmente interditado.

As escolas particulares de Manaus reabriram há 35 dias, colocando 60 mil alunos em aulas presenciais. A cidade vive nítido declínio da transmissão do vírus, mas está longe de erradicar o contágio. A maioria dos modelos epidemiológicos e dos estudos em países que retomaram aulas revelam riscos muito baixos. Nada, porém, parece capaz de evitar que as redes públicas de ensino brasileiras sigam fechadas indefinidamente.

Um fator relevante é psicossocial: os pais temem por seus filhos. Quando adotados padrões sanitários e de testagem apropriados, é muito reduzida a probabilidade estatística de contágio entre professores e funcionários e, especialmente, de complicações sérias em crianças. Obviamente, o risco não é nulo — como, aliás, no caso de outras doenças contagiosas. E se meu filho for o ponto fora da curva?

O medo tem um contexto. A polarização política contaminou as discussões sobre a crise sanitária. O negacionismo bolsonarista provocou uma reação dogmática, que domina a imprensa e a parcela mais esclarecida da opinião pública: “Se Bolsonaro fala em abrir, exigimos fechar”. No lugar do debate racional de custos e benefícios de cada restrição sanitária específica, as vozes indignadas com a criminosa negligência do governo federal refugiam-se no clamor genérico por lockdowns. Nesse passo, o pensamento supostamente progressista limita-se a reproduzir a cartilha bolsonarista — apenas virando-a pelo avesso.

Na prática, como quarentenas prolongadas são insustentáveis, o clamor só contribui para moldar o ritmo e as formas da reabertura inevitável. Os governos autorizam a retomada dos setores politicamente organizados, capazes de exercer pressão eficiente, como templos, escritórios, indústrias e shoppings. Escolas? As crianças não têm associações de classe — e não votam. A política, não a epidemiologia, decide a sorte de “toda uma geração” de brasileiros sem voz.

Fora do Brasil, há negacionistas de direita, como Trump, e de esquerda, como o sandinista nicaraguense Daniel Ortega e o nacionalista mexicano López Obrador. No Brasil, porém, a esquerda cavou sua trincheira no quadrante mais extremo do fundamentalismo epidemiológico. O medo elege: a bandeira da irredutível “defesa da vida” descortina caminhos oportunos para a denúncia geral de governadores e prefeitos que, ao longo do tempo, flexibilizam quarentenas. É nessa moldura que se inscreve a exigência da manutenção de escolas fechadas “até a vacina”, já explicitada pelo candidato do PT à prefeitura de São Paulo.

Os alunos não têm voz, mas os sindicatos de professores têm — e utilizam poderosos megafones para sabotar o mero debate sobre reabertura escolar. Manaus é mais um indício de que é possível reabrir escolas com segurança nas cidades que descem a ladeira da curva pandêmica. Daí surge a palavra de ordem “Não antes da vacina!” — que, nas condições atuais, equivale a aguardar a descoberta do genuíno Santo Graal ou do mapa da Serra das Esmeraldas. Escolas, só depois da Segunda Vinda de Cristo, diriam os chefões sindicais, se empregassem a linguagem dos bispos.

Guterres não tem chance no Brasil. Bolsonaro, que fingiu decretar a reabertura de quase tudo, nunca falou em abrir escolas. Aqui, a elite segregou seus filhos em colégios-butique, cujas anuidades são mais bem expressas em dólar, os governos de esquerda jamais se importaram com a tragédia educacional retratada nas comparações internacionais do Pisa, e o governo da extrema direita entregou o MEC a um analfabeto funcional malcriado.

Educação pública é bem supérfluo — eis o único consenso nacional.

Cacá Diegues - Gente é para brilhar

- O Globo

Caetano é uma hipótese de Brasil que gostaríamos que fosse a verdadeira

Para muitos brasileiros, o sol se levanta no fim da tarde. Mas não por preguiça ou enfado da vida, mas porque é essa a hora em que ferve a panela de uma cabeça privilegiada que só pensa em nós. Não por caridade, mas por saber que a solidariedade é a única forma de amor que não implica em propriedade do outro. E assim amamos e somos livres. Tudo o que ele faz, escreve, diz e canta está sempre assinalado por essa ideia, à qual ele parece dedicar vida e obra. Caetano Veloso é uma hipótese de Brasil que todos nós gostaríamos que fosse a verdadeira.

Caetano é um homem de muitos amigos, sem nenhum confidente especial. Não por falta de confiança, mas porque seus segredos estão por aí, a boca larga e pequena, nas letras de suas canções, no que ele diz e escreve. A poesia de Caetano não é nunca molenga, elegias ao que não importa. Ela é sempre o resultado de uma mente em chamas, amorosa e combativa, que não se deixa iludir pelo lugar-comum, mesmo que unanimemente vitorioso. Ele quer sempre saber se o contrário não é melhor. Ou não.

Às vezes, quando penso em Caetano, penso em conversas que já tive com Renata Magalhães (uma das produtoras de seu filme), Antonio Cicero (grande poeta, amigo do peito) ou Susana de Moraes (ela faria 80 anos, no último dia 5, vizinha leonina de Caetano), seus amigos e eventuais colaboradores. Os três adoram a hipótese de que o Brasil seja um ser cultural de caminhos contraditórios e radicais.

Quando é moderno, o Brasil pode ser a vanguarda experimental do mundo. Como foi com Tiradentes, um herói barroco do iluminismo que acordava a humanidade; ou Santos Dumont, que se recusou a registrar a invenção do avião, pois devia pertencer a todo mundo; ou Oscar Niemeyer, para quem Brasília era a concretização em concreto de um modo de viver, em que todos somos iguais. Mas, quando fica para trás, o Brasil é capaz de recuar à mais selvagem Idade da Pedra, produzindo os mais nefastos e bárbaros costumes, além de líderes equivalentes. Caetano foi sempre um dos primeiros, sem nunca resistir a tentar convencer os segundos, já que tudo pode mudar um dia.

Com todo o respeito aos outros admiráveis artistas e intelectuais do movimento, Caetano é seu líder ilustrado, o generoso criador maior do Tropicalismo, praticando-o radicalmente e promovendo-o em que missão estiver. Foi sua obra que o tornou o último estágio do nosso Modernismo, a conclusão de uma operação nacional de criação tão bem-sucedida, a melhor em nossa história, indo de Castro Alves a Roberto Carlos, dos Andrades de 22 aos irmãos Campos do concretismo, de Sousândrade a Leminski, de Villa a Tom.

Tudo isso com extrema consciência (e, às vezes, um certo pesar), como fica claro nesse trecho de seu livro de memórias “Verdade tropical”, de 1997, sobre a canção “Tropicália”, batizada pelo produtor do Cinema Novo, Luiz Carlos Barreto: “Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao nosso ridículo”.

Conheci Caetano Veloso no início de 1966, às vésperas do carnaval, no Mercado Modelo de Salvador. Éramos um grupo de cinema que estava na Bahia para participar de um festival, numa época em que os festivais ainda eram raros.

Lá para as tantas, já de madrugada, chegou ao restaurante um menino com um violão embaixo do braço, parecendo muito mais moço do que sua verdadeira idade. Alguém na mesa o conhecia, ele acabou sentando conosco. Mas só se manifestou quando a conversa girou em torno da eterna disputa, então na moda, sobre raízes culturais. Alguns dos nossos nacionalistas do cinema arrasavam com a Jovem Guarda, quando Caetano pegou seu violão e cantou “Quero que vá tudo pro inferno”, num andamento mais lento, mais rebuscado, cheio de descobertas inesperadas. O silêncio se impôs na mesa e ele repetiu a canção muitas vezes. Quando terminou, eu estava aos prantos.

Caetano Veloso nunca mais saiu de minha vida, mesmo quando parecia não estarmos de acordo. Sexta-feira passada, ele fez 78 anos de idade e espero que, para nosso bem, ainda viva o dobro disso. Que nos lembre sempre de que gente é pra brilhar e não pra morrer de fome.

Caberá ao Supremo arbitrar a disputa entre procuradores – Editorial | O Globo

Decisão sobre conflito entre Aras e Lava-Jato deve ser um julgamento balizador, definidor de limites

O fim do recesso do Judiciário acelera o conflito travado no Ministério Público Federal em que, de um lado, está o procurador-geral da República, Augusto Aras, e, do outro, a força-tarefa da Operação Lava-Jato. Nesse confronto, o Supremo terá um papel decisivo. Logo no primeiro dia de trabalho depois do recesso, o ministro Edson Fachin, relator da operação no STF, revogou uma decisão do próprio presidente da Corte, Dias Toffoli, tomada no plantão do Judiciário, que determinara que os procuradores de Curitiba compartilhassem com a Procuradoria-Geral da República todas as informações colhidas em suas operações.

Os procuradores alegam ser necessária autorização judicial para fornecer as informações, que consideram protegidas por sigilo legal. Aras despachara para Curitiba a subprocuradora Lindôra Araújo, na tentativa de conseguir os dados. Sem sucesso, obteve a liminar no plantão Toffoli, sob o argumento de que o Ministério Público se baseia no “princípio da unidade”, segundo o qual os arquivos de todas as forças-tarefas são também da PGR. Alegou ainda outro desvio das forças-tarefas: o acesso a informações de pessoas com foro privilegiado. Fachin discordou.

Aras mobilizou a corregedoria do MP e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para abrir o que chama de “caixa de segredos” das forças-tarefas. Não esconde sua intenção de criar um órgão para coordenar todas investigações, a Unidade Anticorrupção (Unac). Seria uma forma de o procurador-geral controlar as forças-tarefas, em desafio à autonomia que sempre rege o trabalho dos procuradores. No objetivo, tem o apoio expresso do presidente da República, como deixou claro o senador Flávio Bolsonaro em entrevista ao GLOBO.

O conflito deverá ser decidido no plenário do Supremo. Espera-se que seja um desses julgamentos balizadores, para definir espaços e limites da Procuradoria-Geral, de procuradores e forças-tarefas.

Não se deve ser maniqueista. Reconhecer excessos eventuais na Operação Lava-Jato não significa levar à condenação um método de trabalho eficaz no combate ao crime organizado. Em várias situações, forças-tarefas compartilharam suas informações quando instadas. Tampouco é aceitável desconsiderar a Lei de Organizações Criminosas, que consolidou a “colaboração premiada”, essencial às investigações de corrupção.

Os choques em torno da Lava-Jato encontrarão em setembro o ministro Luiz Fux na presidência da Corte, no lugar de Toffoli. O trânsito de Aras com Fux, que comandará a pauta da Corte, não deverá ser tão desenvolto. Fux é tido como um defensor intransigente da Lava-Jato. Está, de todo modo, garantido um período de embates intensos.

A imprescindível educação cívica – Editorial | O Estado de S. Paulo

Na falta de uma liderança política capaz de unir em vez de separar, os brasileiros se viram na pandemia em meio a um bate-boca estéril

A macabra contabilidade dos mortos pelo coronavírus e o noticiário cotidiano sobre a míngua de milhões de cidadãos como consequência da pandemia e da atuação errática do governo deveriam bastar para que o País refletisse seriamente sobre como chegamos a essa triste e vergonhosa situação. 

É claro que a dimensão da crise pegou todos de surpresa, aqui e no resto do mundo, mas é fato também que o Brasil foi um dos poucos países que menosprezaram a pandemia até que esta se tornasse o pesadelo que é hoje. O próprio presidente Jair Bolsonaro, como se sabe, continua a fazer pouco da doença, ainda que ele mesmo seja uma de suas vítimas. O fato de que o Brasil não tem ainda um ministro da Saúde efetivo e de que o governo trocou duas vezes o titular da pasta durante a pandemia, por mero capricho do presidente, é reflexo desse comportamento irresponsável. Restou aos Estados e municípios agirem por conta própria, sem a necessária coordenação federal, gerando confusão e em muitos casos agravando a crise.

Mas essa trajetória calamitosa foi construída também, ou talvez principalmente, por uma crise bem mais ampla e longeva do que a da pandemia: a da ignorância cívica.

O Brasil dispõe de todos os instrumentos para o bom funcionamento da democracia. A Constituição estabelece a separação de Poderes e um sistema de freios e contrapesos. Há eleições regulares e liberdade de imprensa, e as instituições são apetrechadas para funcionar conforme o ordenamento constitucional. Contudo, todo esse aparato não tem serventia se os cidadãos dele não participam.

Essa participação obviamente não se esgota com o depósito do voto nas urnas durante as eleições. Muito além disso, é preciso, em meio à natural confusão de interesses, ter a capacidade de encontrar propósitos comuns, objetivo capital da política. É isso o que gera o senso de solidariedade que induz os cidadãos a aceitarem decisões difíceis – como, por exemplo, ficar em casa para enfrentar a pandemia – sem que seja necessário recorrer a medidas autoritárias.

Embora sempre seja eleito por apenas uma parte da população, um governo terá muito mais chances de ser bem-sucedido se liderar esse processo com disposição para ouvir as mais diversas opiniões e se os cidadãos se organizarem para fazer chegar suas demandas ao governante. 

A responsabilidade de governar, portanto, vai muito além da capacidade de administrar os problemas do dia a dia: um bom governante não é aquele que, agindo como um messias iluminado, dita o que acredita ser o melhor para o País, e sim aquele que lidera seus concidadãos na discussão sobre as melhores soluções para as crises e também sobre o futuro. Somente assim as decisões governamentais terão o necessário verniz de legitimidade para serem aceitas pela maioria.

Como parece claro a esta altura, Bolsonaro renunciou a esse papel, crucial numa democracia. Deliberadamente negou-se a buscar o propósito comum, agindo como se governasse apenas para seus eleitores.

Bolsonaro, contudo, é apenas uma consequência da incapacidade de muitos brasileiros de compreender como funciona um governo e o que se deve esperar de um presidente. Aqui prevalece a ideia de que o vencedor leva tudo. Mesmo quem não votou em Bolsonaro parece não saber como explorar os mecanismos da democracia, no seu nível mais básico, para superar esta crise de múltiplas dimensões.

Na falta de uma liderança política capaz de unir em vez de separar, os brasileiros se viram em meio a um bate-boca estéril sobre o que deveria ser prioritário em meio à pandemia – salvar vidas ou preservar empregos. Não há argumentação, apenas gritaria e intransigência, como se fossem pontos de vista inconciliáveis.

Bolsonaro, portanto, é o sintoma de um mal muito maior. Há no País uma enorme carência de educação cívica, que prepare os cidadãos não apenas para entender os limites do poder, o funcionamento das instituições e o espírito da Constituição, mas também para participar do debate político em busca de compatibilidades e de consensos – enfim, do interesse comum. Sem essa educação, será muito mais penoso sair desta ou de qualquer outra crise.

No meio, parado – Editorial | Folha de S. Paulo

País é firme no pacto democrático, mas não abre caminho para o desenvolvimento

O desenvolvimento de uma nação é um processo paulatino, determinado pelas escolhas organizacionais da sociedade ao longo de gerações, impulsionado pela inventividade, avaliado pelos graus de prosperidade material e de compartilhamento de riqueza e poder político e sujeito a paralisia e reversão.

Por vias diversas, a investigação acadêmica nas últimas décadas tem convergido para essas conclusões. Enfraqueceram-se teorias que enfatizavam fatores geográficos, religiosos e culturais, as que enxergavam na riqueza de um país a pobreza de outros e as que previam a decadência do capitalismo.

Dentre as obras mais bem-sucedidas na divulgação do resultado dessa safra de pesquisas inovadoras está “Por Que as Nações Fracassam” (2012), parceria entre o economista Daron Acemoglu e o cientista político James Robinson.

O livro continha apreciação positiva do Brasil. A ascensão do Partido dos Trabalhadores, a redução da pobreza e o crescimento econômico foram considerados indicadores da emancipação, de um padrão oligárquico de apropriação do poder para um modelo aberto.

Oito anos depois, Acemoglu revela frustração. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, atribuiu a quebra de expectativas à corrupção escancarada no governo petista, à gestão Michel Temer (MDB) e à ascensão de um presidente com viés autoritário, Jair Bolsonaro.

A democracia próspera do livro teria agora o futuro ameaçado.

A solução do dilema parece assentar-se na correção do viés excessivamente otimista da obra e, também, do demasiadamente pessimista da entrevista. O Brasil não estava tão bem nem está tão mal —em que pese a tragédia das 100 mil mortes pela Covid-19.

Problemas que remontam ao passado mais distante continuam presentes. A produção por trabalhador tem sido praticamente a mesma há 40 anos. A educação, apesar da injeção de recursos, condena a maioria da população à baixa renda.

O apetite por privilégios mantém-se excitado, como se vê no incipiente debate da reforma tributária.
De outro lado, o edifício da democracia consolidada no pacto constitucional de 1988, submetido a desafios, dá seguidos exemplo de solidez. Demonstra cotidianamente aos incitadores da truculência que esse meio não terá guarida.

Perde-se tempo e dissipa-se energia cívica, é fato. A facilidade com que presidentes põem-se a destruir consensos técnicos na condução das finanças públicas, da educação e da saúde amplia o nosso atraso e o fardo das gerações subsequentes.

Parado, no meio do caminho entre o grupo de nações pobres e o clube dos ricos, mas firme no compromisso democrático —assim está o Brasil, e não é de hoje.

Teto para juros pode levar à restrição na oferta de crédito – Editorial | Valor Econômico

O teto de juros deve ser sempre a última alternativa

O projeto de lei aprovado pelo Senado que limita os juros do cheque especial e do cartão de crédito durante a pandemia poderá causar mais mal do que bem. A reação mais provável dos bancos será restringir a oferta de crédito. No caso do cheque especial, deverá afetar particularmente clientes de baixa renda, que são os principais usuários desse produto.

De fato, os juros bancários no Brasil são muito altos e, no caso das linhas de crédito rotativas, chegam a níveis absurdos. Vários estudos econômicos mostram, porém, que os altos juros se devem a uma série de fatores estruturais, como custos administrativos e de inadimplência e o baixo nível de competição. Os altos encargos trabalhistas, insegurança jurídica e violência afetam os bancos como qualquer outro setor econômico. Cinco bancos concentram mais de 80% do mercado. A queda dos juros será duradoura apenas se o governo e o Congresso Nacional adotarem medidas que lidam com essas mazelas.

Deveria servir de lição a experiência no governo Dilma Rousseff, que, com voluntarismo, determinou que os bancos federais baixassem artificialmente as suas taxas para forçar uma queda dos preços do sistema como um todo. Durante algum tempo, os juros de fato caíram, de cerca de 160% ao ano para cerca de 120% ao ano no caso do cheque especial. Mas os bancos públicos perderam o fôlego financeiro com essa política insustentável e tiveram que recuar. Com isso, a taxa voltou a subir e se estabilizou num patamar ainda mais alto nos anos seguintes, em cerca de 270% ao ano.

O governo Lula teve resultados mais permanentes, ao atacar alguns dos principais componentes que encarecem o spread bancário. Foram tomadas medidas que fortaleceram as garantias, como a aprovação da nova Lei de Falências, a adoção da alienação fiduciária no financiamento de imobiliário e a criação do crédito consignado. Não por acaso, as linhas de crédito de veículos, consignado e imobiliário são as com juros mais baixos no mercado

A partir de 2016, no governo Temer, o Banco Central voltou a lidar de forma mais estrutural com os altos custos do crédito rotativo. Uma das medidas foi limitar a 30 dias o tempo em que os clientes podem ficar pendurados no crédito rotativo do cartão de crédito. As taxas, que chegaram a perto de 500% ao ano, caíram a 300% ao ano. Nesse percentual, ainda estão muito altas. Mas, para baixá-las mais, o caminho mais seguro é mexer na complexa estrutura dessa linha de crédito. Há muito poder de mercado nas mãos de alguns participantes da cadeia do produto, que aos poucos está sendo desmontado. Um ponto central é o sistema de subsídios cruzados criado pelo cartão com pagamento à vista, isento de juros.

No caso do cheque especial, o Banco Central primeiro incentivou o próprio sistema bancário a adotar uma autorregulação para fazer os clientes migrarem dessa linha de crédito emergencial para outras mais baratas. Os resultados foram insuficientes, por isso no ano passado o Banco Central adotou medidas adicionais.

Uma delas foi justamente a adoção de um teto para os juros do cheque especial, de 150% ao ano. Embora não menos polêmico, o processo de definição desse limite foi bem diferente do projeto aprovado pelos senadores. O Banco Central fez estudos econômicos que mostraram que os bancos têm um grande poder de mercado no cheque especial e que os clientes, em geral de baixa renda, são pouco sensíveis a variações da taxa de juros.

O fato de o Banco Central ter identificado falhas de mercado, porém, não significa necessariamente que a imposição de limites para os juros seja o melhor remédio. A ação preferencial deve ser sempre na estrutura do mercado, derrubando barreiras que impedem maior competição, e na educação financeira, para que os clientes façam as escolhas adequadas na hora de contratar as operações de crédito.

O teto de juros deve ser sempre a última alternativa e, se possível, apenas temporária, até que sejam corrigidos problemas estruturas. Nesses casos, a definição de percentual adequado para o limite de juros não é trivial. Depende de uma cuidadosa avaliação de custos e benefícios. Uma taxa muito alta torna inócuo o limite e incentiva bancos que cobravam mais barato a convergir a esse percentual. Um teto muito baixo - como o definido pelos parlamentares, em 30% ao ano - provoca uma forte restrição de crédito pelos bancos. Pior que crédito caro é não ter crédito nenhum.

Música | Ana Costa - Disritmia

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Congresso internacional do medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.