O Estado de S. Paulo
Aos que chancelam atual estado de coisas,
havendo-o por mal necessário e reação legítima da ‘democracia militante’, não
se deve juntar a voz legalista da advocacia
“Quem quiser garantir a própria liberdade
deve preservar até seu inimigo da opressão; pois, se infringir esse dever,
estabelece um precedente que atingirá a si próprio” (Thomas Paine, em
Dissertação sobre os primeiros princípios do governo)
Com autoridade de coadjutor das libertárias
revoluções americana, em 1776, e francesa, em 1792, o inglês Thomas Paine
legou-nos preciosa obra política e influenciou a consolidação dos Estados
constitucionais. Sua militância revolucionária não o poupou da prisão em Paris,
no período do Terror jacobino, escapando, porém, da guilhotina de Maximilien de
Robespierre, sob cuja lâmina implacável a também revolucionária Manon Roland
pronunciou a célebre frase: “Ó, liberdade, quantos crimes se cometem em teu
nome!”.
Na quadra atual, em que o Brasil vivencia
as mais longas e duradouras liberdades democráticas de sua história, ressurge
certa dogmática jurídica fortemente rechaçada na obra de Thomas Paine. Ela se
fundamentaria no princípio da terapia homeopática similia similibus curantur:
semelhante pelo semelhante se cura. A quem viola a lei também se pode punir com
violações à lei – ideia sedutora em conjuntura política de afrontas a valores
essenciais do Estado Democrático de Direito, pisoteados por grupos radicais de
extrema direita.
Devido processo legal? Liberdade de opinião
e expressão? Vedação de censura? Imunidade parlamentar? Direito de não ser
preso senão em flagrante delito inafiançável ou por imutável sentença judicial?
Eis valores democráticos sagrados, mas preteridos, paradoxalmente em nome de
sua preservação, quando se recorre à multicitada máxima de Ovídio de que os
fins justificam os meios.
Substancialidade das democracias, o devido
processo legal veda ao Estado-sancionador, garante da legalidade e repressor
dos delitos, atribuição para sumariamente investigar, acusar e infligir penas
antecipadas a acusado protegido pelo princípio magno da presunção de inocência.