quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Ricardo Noblat - A dívida de Bolsonaro com a Globo

- Blog do Noblat | Veja

O que ele sai ganhando
Se pensar direitinho – se é que já não pensou e com antecedência -, o presidente Jair Bolsonaro ficou em dívida com a Globo depois do que ela revelou sobre o caso do porteiro do condomínio onde ele morava à época do assassinato de Marielle.

Em dívida porque a confirmar-se que o porteiro mentiu, cai por terra a suspeita de que havia um homem dentro da casa de Bolsonaro quando ele estava em Brasília enquanto Marielle e seu motorista eram executados no centro do Rio. Menos mal.

Em dívida também porque a reportagem do Jornal Nacional permitiu que Bolsonaro praticasse seu esporte favorito: bater na imprensa em geral e na Globo em particular. Isso não tem preço e provoca orgasmos múltiplos nos seus seguidores.

Por último, em dívida porque se não fosse a história do porteiro ainda estaríamos falando do vídeo do leão e das hienas que tentam matá-lo. Uma das hienas carregava o nome de Supremo Tribunal Federal. Segundo Carlos, foi o pai que postou o vídeo.

De resto, Bolsonaro teve mais uma oportunidade para avaliar a fidelidade canina dos seus devotos, e também para incitar os instintos mais primitivos deles.

Plim, plim.

Uma história muito mal contada

E segue o baile...
Só aos que temem a elucidação do assassinato de Marielle Franco (PSOL-RJ) e do seu motorista interessa a produção de fatos que possam embaralhar as investigações. É o caso dos assassinos. E também dos seus cúmplices. E mesmo daqueles que à distância, por uma razão ou outra, preferem que fique tudo por isso mesmo.

Bernardo Mello Franco - Sobrou para o porteiro

- O Globo

Em 24 horas, o porteiro do condomínio de Bolsonaro passou de testemunha-chave a vilão. Ninguém explicou por que ele inventaria uma trama contra o presidente

Depois de quase 600 dias, as autoridades encontraram um culpa dopara ocaso Marielle. É o porteiro do condomínio Vivendas da Barra, domicílio do presidente Jair Bolsonaro, de seu filho Carlos e do ex-PM Ronnie L essa, preso sob acusação de matara vereadora.

Na noite de terça, o Jornal Nacional revelou o teor dos depoimentos do porteiro à polícia. Ele disse que Élcio Queiroz, outro ex-PM envolvido no caso, esteve lá no dia do crime e informou que iria à casa de Bolsonaro. Segundo o relato, a entrada foi autorizada pelo “Seu Jair”.

O testemunho coincidiu com o livro do condomínio, onde o porteiro anotou a visita à casa 58. O JN apontou uma contradição: Bolsonaro não poderia estar no local. Meia hora depois da entrada do ex-PM, ele registrou presença no plenário da Câmara, em Brasília.

O presidente reagiu à reportagem com fúria. Direto da Arábia Saudita, atacou violentamente a TV Globo e o governador Wilson Witzel. Ele ameaçou não renovara concessão da emissora, fórmula usada por Hugo Chá vez par acalar o jornalismo independente na Venezuela.

Ascânio Seleme - A ira desnecessária

- O Globo

A reportagem do ‘JN’ apenas apresentou um fato. Um fato inexorável

O presidente Jair Bolsonaro foi muito além do que podia se esperar de um chefe de Estado ao reagir com ira contra a reportagem do “Jornal Nacional” com o depoimento do porteiro sobre a visita de um dos assassinos de Marielle Franco ao seu condomínio, no Rio. A fúria presidencial ignorou um ponto simples em que se baseia toda matéria jornalística. A reportagem do “JN” apenas apresentou um fato. Um fato inexorável. O depoimento foi prestado, e a polícia investigava o seu teor. Por isso, aliás, pretendeu-se levar a supervisão do processo ao Supremo Tribunal Federal, já que envolvia o presidente da República.

Se Bolsonaro tivesse ao seu redor assessores com capacidade de diálogo e intervenção sobre o seu rápido e muitas vezes equivocado raciocínio, teria dito o que a matéria da TV já mostrara. Ele estava em Brasília no dia da ida do miliciano ao condomínio. Por isso, a declaração do porteiro de que ligou a pedido do miliciano para a casa de Bolsonaro e ouviu “seu Jair” autorizar a sua entrada não se sustentava. O Ministério Público, orientado pelo novo procurador Augusto Aras, disse que o porteiro será investigado e que o áudio apresentado pelo vereador Carlos Bolsonaro desmentiu o seu depoimento.

Agora, imagine a seguinte situação. Descobre-se que um empreiteiro preso num enorme esquema de corrupção foi ao apartamento de Lula em São Bernardo do Campo no mesmo dia de uma licitação de cartas marcadas da Petrobras que ele ganhou com preços superfaturados. Lula tinha registros digitais comprovando que naquele dia estava no Palácio do Planalto, mas ainda assim a polícia seguia investigando a denúncia. E, mais, diante da acusação do porteiro a um presidente da República, o caso teria de subir ao Supremo. Se você fosse jornalista, não publicaria esta história? Claro que sim, até porque você conhece muito bem as relações promíscuas de Lula com empreiteiras e o esquema de corrupção montado na Petrobras. Por isso a denúncia seria verossímil.

Míriam Leitão - Novo cenário do crédito no país

- O Globo

Quedas sucessivas da Selic estão chegando na ponta em várias linhas e transformando o mercado de crédito. Isso vai estimular a recuperação

Algumas boas notícias começam a surgir no mercado de crédito como reflexo da queda consistente da taxa de juros, que ontem foi para 5%. A Selic tem ido a níveis historicamente baixos há algum tempo, mas agora as previsões dos economistas começam a apontar a possibilidade de uma taxa de juros básica abaixo de 4% no ano que vem. A oferta de crédito está aumentando, os spreads estão caindo, e o mercado privado tem assumido mais espaço, antes dominado por bancos públicos.

Esse novo cenário do crédito começou a se formar através da sucessão de quedas da Selic, que começou no governo anterior. De janeiro de 2018 até setembro de 2019, nesse um ano e nove meses, o saldo do crédito para a pessoa jurídica aumentou 18%, e para a pessoa física, subiu 22%. Os juros médios caíram 4,6 pontos percentuais nas linhas para as empresas e 4,5 pontos para as pessoas físicas. De lá para cá, a Selic caiu de 7% para 5%. Os juros ainda permanecem altíssimos na ponta, principalmente nas linhas do chamado hotmoney, como cheque especial e cartão de crédito, mas já houve um ciclo de melhora. As taxas médias cobradas nas operações com as empresas foram de 22,4% para 17,8%, e as das pessoas físicas foram de 55,8% para 51,3%.

Há outros eventos no mercado, como o contado aqui neste espaço pelo economista José Roberto Mendonça de Barros, em que o crédito rural este ano está em grande parte coberto por linhas de bancos privados, e menos dependente do Plano Safra. Empresas têm emitido debêntures no mercado privado para captar recursos e pagar antecipadamente dívidas contraídas no BNDES. Os juros à época subsidiados estão agora mais altos do que os custos com os quais as empresas estão se financiando.

Luiz Carlos Azedo - Linhas cruzadas

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Bolsonaro está convencido de que Witzel lidera uma conspiração para inviabilizar sua reeleição a qualquer preço. O governador pretenderia incriminá-lo no caso Marielle”

Não convidem para a mesma solenidade Jair Bolsonaro e o governador fluminense Wilson Witzel (PSC). A relação entre os dois desandou de vez depois da divulgação, pela TV Globo, do depoimento do porteiro do Condomínio Vivendas da Barra — onde mora o principal suspeito de matar a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, o sargento da PM reformado Ronnie Lessa —, onde o presidente e seu filho Carlos têm casa. O porteiro contou à polícia que, horas antes do assassinato, em 14 de março de 2018, o outro suspeito do crime, Élcio de Queiroz, entrou no condomínio e disse que iria para a casa de Bolsonaro. E que alguém na casa dele, a de número 58, liberou a entrada. Ocorre que, naquele dia, na mesma hora, o então deputado federal estava em Brasília, e os registros da portaria mostram que Élcio, na verdade, interfonou para Lessa.

Bolsonaro acusa o governador de ter vazado o depoimento para prejudicá-lo: “Dia 9 de outubro, às 21h, eu estava no Clube Naval no Rio de Janeiro. O governador Witzel chegou perto de mim e falou o seguinte: ‘o processo está no Supremo’. Eu falei: ‘que processo?’ ‘O processo da Marielle.’ ‘O que eu tenho a ver com a Marielle?’ ‘O porteiro citou teu nome.’ Quer dizer: Witzel sabia do processo que estava em segredo de Justiça. Comentou comigo”, afirmou o presidente. “No meu entendimento, o senhor Witzel estava conduzindo o processo com o delegado da Polícia Civil para tentar me incriminar ou pelo menos manchar o meu nome com essa falsa acusação, que eu poderia estar envolvido na morte da senhora Marielle”, completou o presidente da República.

Witzel nega envolvimento no caso: “Jamais vazei qualquer tipo de informação, seja como magistrado, seja como governador. Eu lamento que o presidente tenha, num momento, talvez, de descontrole emocional, no momento em que ele está numa viagem, não está, talvez, no seu estado normal, tenha feito acusações contra a minha atividade como governador”. E completa: “Não manipulo o Ministério Público, não manipulo a Polícia Civil. Isso é absolutamente inadequado, contrário às instituições democráticas. A Polícia Civil, no meu governo, tem independência. O MP tem e sempre terá independência e, infelizmente, eu recebi com muita tristeza essas levianas acusações.”

Igor Gielow - Radicalização bolsonarista preocupa Forças Armadas

- Folha de S. Paulo

Ativa teme narrativa que una protestos latinos a reação sobre investigação sobre o clã

A radicalização proposta pelo entorno ideológico do presidente Jair Bolsonaro (PSL) é a principal fonte de preocupação institucional na cúpula das Forças Armadas.

Oficiais-generais da ativa, das três Forças, dizem não haver apoio generalizado a eventuais aventuras repressivas sugeridas pelo grupo.

Os dois mais recentes episódios, envolvendo a publicação do “vídeo das hienas” contra o Supremo Tribunal Federal e a reação à reportagem sobre movimentações de acusados de matar Marielle Franco no condomínio de Bolsonaro, geraram o que um oficial-general definiu como “alta ansiedade”.

O alerta vem circulando desde que o bolsonarismo encampou o discurso de que os protestos no Chile e Equador, a volta do peronismo na Argentina e até o derramamento de óleo no Nordeste fazem parte de uma trama da esquerda que precisa ser combatida.

As teorias conspiratórias chegaram não só aos usualmente falantes filhos presidenciais Carlos e Eduardo, mas também ao general da reserva Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), que hoje está numa frequência bastante diversa daquela registrada na ativa.

Bruno Boghossian – A vitória de Carlucho

- Folha de S. Paulo

Personagens que agiram para desarmar bomba, como Aras e Moro, ganham espaço

A tensão provocada por episódios como o depoimento do porteiro do condomínio de Jair Bolsonaro tem potencial para mexer nas relações do centro do poder. O papel dos atores políticos no caso deverá ter efeitos na balança de influências do entorno do presidente.

Alguns personagens saem fortalecidos. Um deles é Carlos Bolsonaro. Foi o vereador carioca quem divulgou uma peça-chave para rebater publicamente uma informação dada pelo funcionário, que vincularia o pai a criminosos que mataram Marielle Franco em 2018.

Depois que o Ministério Público apontou a contradição no depoimento, Carlos escreveu: "Sou seu soldado há quase 20 anos e isso não vai mudar, independentemente do que vier. Estou preparado!".

Maria Hermínia Tavares de Almeida* - Vocação de poder

- Folha de S. Paulo

Peronistas têm disposição para mudar de rumo a fim de manter o poder

Bom conhecedor da vida pública de seu país, o jornalista Rosendo Fraga, falando da figura mais importante da Argentina contemporânea, o três vezes presidente Juan Domingo Perón (1895-1974), disse que “(ele) podia girar da esquerda para a direita sem perder seu objetivo político, que era alcançar, reter ou recuperar o poder”.

O mesmo se aplica às principais lideranças do peronismo, movimento de muitas faces e facções que detém —nas ruas e nas urnas— o indisputado apoio das camadas populares. Apoio de raízes fundas, porque ser peronista é uma forma duradoura de identidade política para milhões de argentinos, sejam eles trabalhadores, pobres sem trabalho ou membros das camadas baixas da classe média.

“Desde bebê/ em minha casa havia uma foto de Perón na cozinha/ e agora que sou grande/ unidos e organizados estamos com Cristina” cantam por toda parte os fervorosos apoiadores da vice-presidente recém-eleita.

De 1946 em diante, os peronistas só perderam eleições para a Casa Rosada quando foram proscritos entre 1955 e 1973; durante a ditadura militar de 1976 a 1982; ou quando concorreram, divididos, com mais de uma candidatura. Feitas as contas, ocuparam a Presidência durante 24 dos 36 últimos anos. No governo, aplicaram pragmaticamente, conforme as circunstâncias, políticas neoliberais, com Carlos Menem, ou redistributivas, com Nestor Kirchner e sua viúva e sucessora, Cristina K. Sobretudo mostraram enorme vocação para o mando quando a hiperinflação e os movimentos de rua fizeram desmoronar duas vezes —e antes do tempo regulamentar— os mandatos de seus adversários do Partido Radical, Raúl Alfonsin (em 1989) e Fernando de la Rua (em 2001).

Fernando Schüler* - O poder e a liberdade de imprensa

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro não pode lançar mão de instrumentos de poder para interferir na mídia

Segundo o Ministério Público, o porteiro mentiu. É isso. Mesmo antes do MP se manifestar, muita gente já “sabia” que era mentira. Uma outra turma, mesmo depois, continua “sabendo” que é tudo verdade. A verdade líquida, na era digital, tem dessas coisas.

De qualquer forma, tenho uma intuição. Se tudo se mostrar de fato um balão furado, Bolsonaro sairá disso com um bônus retórico semelhante ao que ganhou após o atentado que sofreu, antes das eleições.

Mas há um tema complicado aí, que diz respeito às relações do poder com a liberdade de imprensa. É aí que Bolsonaro insiste em um erro. Não um erro em sua estratégia política, mas para nossa democracia. De um tipo que tem uma longa história.

Todos se lembram de Leonel Brizola e sua infatigável disputa com a Rede Globo. Segundo Brizola, concessões de TV eram como linhas de ônibus, “não pode transportar uns e não transportar outros”. O problema, por óbvio, era explicar o que isso significava exatamente.

Mesmo que o princípio abstrato do “transportar a todos” seja correto, sua aplicação será dada pela própria imprensa. Cada veículo definirá quando e de que jeito cada um entra em cena. É injusto? Talvez.

Vinicius Torres Freire – Guedes e bancos na era do juro baixo

- Folha de S. Paulo

Com Selic perto do piso, política econômica e juros bancários vão ficar na berlinda

Na virada de 2019 para 2020, a taxa básica de juros terá chegado a um nível baixo o bastante para ficar quase invisível nos debates sobre a retomada do crescimento. A conversa vai mudar de rumo. Os juros bancários e a possível ou provável lerdeza do PIB serão alvos ainda mais evidentes de queixas.

O Banco Central reduziu a taxa básica, a Selic, o piso do custo do dinheiro no país, de 5,5% ao ano para 5% ao ano, nesta quarta-feira. Afora desastres, a Selic deve ir a 4,5% na próxima reunião do Comitê de Política Monetária do BC, em 11 de dezembro. Com apenas moderado otimismo, pode-se chutar que deva cair a 4% até março de 2020. A taxa real de juros ficaria então abaixo de 0,5% ao ano. Por ora, anda em torno de 1% ao ano, mínima histórica.

Quais os riscos? Uma daquelas tormentas financeiras em países ricos ou “emergentes”, um colapso no programa liberal deste governo e Congresso ou um tumulto político (desde 2013, tivemos pelo menos um por ano, com a exceção deste 2019 e olhe lá).

Malu Delgado - Manchas no caminho

- Valor Econômico

Qual é a proximidade dos Bolsonaro com os acusados dos crimes?

O desolador desastre ambiental no Nordeste - que os governadores da região nominam de crime - já oferecera elementos suficientes para esgarçar a imagem do governo federal, seja pelo imobilismo, seja pela falta de ação coordenada para uma reação urgente ou pelo flagrante desinteresse político em tratar o fato com a seriedade e a maturidade que exige. Mas além dos dois meses de óleo derramado e de 2,5 mil quilômetros de costa litorânea contaminada, o Executivo Federal voltou a lidar com outra mancha tão viscosa e densa como o petróleo cru que se alastra: as milícias cariocas.

Em 17 de setembro deste ano, a então procuradora-geral Raquel Dodge, em seu último dia no cargo, enviou um pedido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para que fosse aberto novo inquérito para apurar os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Dodge denunciou o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, Domingos Brazão, por suposto envolvimento no assassinato e por desvirtuamento das investigações em curso, o que explicaria a necessidade de abertura de novos inquéritos. Trata-se de um IDC (Incidente de Deslocamento de Competência), ou, em outras palavras, um pedido de transferência da competência de investigação de uma esfera judicial a outra. O que a PGR solicitou ao STJ foi a federalização das investigações para que autoridades locais - leia-se polícia, Legislativo e Judiciário do Rio - não possam interferir na delicada apuração desses homicídios. Esse IDC do caso Marielle tramita no STJ em segredo de justiça e a relatora Laurita Vaz é da Terceira Seção. Cabe, a ela, pedir informações sobre o processo e definir seu voto. Finalizada essa etapa, a relatora submeterá o voto aos colegas da Terceira Seção.

Ricardo Abramovay* - Amazônia, caminho para a inovação

- Valor Econômico

A bioeconomia é o caminho mais acessível para que o Brasil deixe o triste lugar que ocupa na retaguarda da inovação tecnológica global

A Mesa Redonda da Soja responsável, que reúne sete mil produtores em países como Estados Unidos, Brasil, Argentina e China reagiu à recente aceleração na derrubada de florestas tropicais com uma orientação clara: desmatamento zero. Não se trata de desmatamento ilegal zero até 2030, como preconizado pelo Brasil. A ideia é: mesmo que a lei o permita, o bom senso, a ética e o sentido estratégico dos negócios não podem tolerar que o avanço da produção de soja siga vinculado à destruição florestal: “zero é zero”, tornou-se o lema da organização.

Têm sentido bastante semelhante as recentes tomadas de posição dos governadores do Pará, do Amapá, do Amazonas e do Maranhão, inclusive em encontros internacionais como a Climate Week, em Nova York, quando da abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Nesta ocasião houve reuniões empresariais cuja tônica central era a urgência de um novo paradigma para o crescimento econômico da Amazônia. Como já preconizava documento da Academia Brasileira de Ciências de 2008, o grande desafio brasileiro do Século XXI consiste em fazer com que este crescimento se apoie fundamentalmente em ciência e tecnologia, não em devastação.

Apesar do recente aumento na invasão de terras indígenas, da intensificação de atividades ilegais na exploração madeireira e no garimpo clandestino e das ameaças a ativistas, é impressionante o avanço e a consistência das propostas elaboradas por cientistas, ONGs, empresários e também por governos da região.

William Waack - Bolsonaro e os demônios

- O Estado de S.Paulo

Os fatos que atrapalham o presidente não são excepcionais, não fossem demônios

Jair Bolsonaro sente-se e age como homem cercado. Em parte, os motivos para essa autopercepção são práticos e “palpáveis”. Em parte, sente-se acuado por demônios de criação própria – em geral, a combinação dos dois leva os personagens da política a cometer erros. É real o cerco que sofre no Judiciário. O filho Flávio é investigado pelo conhecido esquema das “rachadinhas”, uma série de inquéritos faz menções a ligações do clã Bolsonaro com milícias no Rio, o TSE está tratando da acusação do envio de mensagens durante a campanha eleitoral de 2018. Porém, tratam-se de dores de cabeça que, tomadas isoladamente, até aqui não são arrasadoras.

Como é perfeitamente normal em sistemas políticos abertos, atribulações com o Judiciário são fartamente utilizadas por adversários. Que agem segundo o habitual método (nem foi a Lava Jato que inventou isso) dos vazamentos de inquéritos ou, nos últimos dias, de divulgação de áudios de figuras como Fabrício Queiroz, essa espécie de assessor “faz-tudo” que é muito útil no dia a dia dos políticos e muito perigoso pelo o que podem dizer.

Note-se que adversários, nesses casos mais recentes, não são apenas a oposição composta por correntes políticas antagônicas, empenhadas como em qualquer outro lugar em atrapalhar o governo. 

Sergio Fausto* - Por que o Chile interessa

- O Estado de S.Paulo

Bom ou ruim, o que lá acontecer terá efeitos na América Latina, em especial no Cone Sul

Nas últimas semanas o Chile virou de pernas para o ar. O que ao início parecia se limitar a um punhado de jovens a pular catracas no metro de Santiago, em desafio pelo aumento da tarifa, transformou-se numa gigantesca onda de protesto social. Os protestos são tanto um produto do sucesso do “modelo chileno” quanto um reflexo de suas crescentes limitações.

Na herança deixada pela ditadura militar do general Pinochet, a coalizão de centro-esquerda que assumiu o poder no Chile em 1990 encontrou uma economia aberta que recém se havia estabilizado e começado a crescer; uma sociedade empobrecida por ajustes estruturais feitos a ferro e fogo e traumatizada pela violação sistemática de direitos humanos; e uma Constituição outorgada que estabelecia severos limites políticos à vontade dos governos democráticos eleitos.

Vistos contra esse pano de fundo, saltam aos olhos os avanços do Chile nas três últimas décadas de governança democrática: o crescimento econômico acelerado tornou o país o mais rico da América Latina; a pobreza despencou de 40% para 9% e a indigência, de 20% para 3%; a quase totalidade dos jovens passou a completar o ensino médio e mais da metade a concluir o ensino superior; os milhares de violações de direitos humanas foram apuradas e os culpados julgados e condenados; as amarras políticas impostas pela ditadura foram removidas. Falar em fracasso do “modelo chileno” é um equívoco, o que não significa ignorar seus problemas.

Luis Fernando Verissimo - Óbvio

- O Estado de S. Paulo | O Globo

Os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres ficam cada vez mais miseráveis. O que tem o neoliberalismo a ver com isso?

Os chilenos se manifestam nas ruas contra o aumento de tarifas e do custo da sua vida em geral. Nada que não tenha mobilizado multidões em outra partes do mundo. Mas um milhão de manifestantes nas ruas do Chile não significa o mesmo que um milhão de manifestantes em outro lugar. Uma nova e inesperada causa entrou no elenco de reclamações dos chilenos. Uma causa não inédita – no fundo é a causa básica, o genérico, de todas as outras –, mas que não costuma frequentar manifestações de rua. Os chilenos protestam contra a desigualdade.

Dirá o leitor que a desigualdade, a má distribuição de renda, a injustiça social ou que nome tenha a bandida está implícita em todo o discurso de esquerda e é tão óbvia que está à beira de ser uma abstração. É-se contra a injustiça social como se é contra a morte, a explosão de vulcões, a seborreia e a techno music. O leitor tem razão, mas a obviedade nunca foi dita com a clareza em que está sendo ouvida nas ruas do Chile. Os ricos ficam cada vez mais ricos, os pobres ficam cada vez mais miseráveis e isto não é uma fatalidade como o rompimento de uma barreira da Vale. O cataclismo tem autores, tem defensores, tem teóricos, tem até filósofos.

Zeina Latif* - Novos ventos

- O Estado de S.Paulo

Evitar o “voo de galinha” do País dependerá do avanço de reformas

O início do ano foi bem difícil do ponto de vista da atividade econômica, com contração do PIB e de investimentos, e mercado de trabalho muito fraco.

Minha avaliação, naquele momento, foi que, para além da fraqueza estrutural da economia (baixo potencial de crescimento de longo prazo), o início conflituoso do novo governo afetou o humor de empresários e consumidores, cujos índices de confiança caíam.

O susto do início do ano foi superado por boas surpresas: o espírito mais reformista do Congresso, a queda da inflação e o cenário de corte de juros do Fed, o banco central americano. Afastou-se o risco de nova retração do PIB ou sua estagnação.

A economia vem ganhando tração. Aumentou a chance de as projeções de crescimento do PIB – na casa de 2% em 2020 – não frustrarem novamente. O gatilho principal é o possível aumento da potência do corte de juros do Banco Central para estimular a demanda.

O que a mídia pensa – Editoriais

- Leia os editorias de hoje dos principais jornais brasileiros:

A palavra do presidente – Editorial | O Estado de S. Paulo

Palavras de Jair Bolsonaro mais espantam e desorientam do que inspiram. Revelam ciclotimia que desgasta o estoque de confiança que os brasileiros nele depositaram

A palavra do presidente da República é forte no Brasil. Por duas vezes, em 1963 e 1993, os brasileiros afirmaram sua preferência pelo regime presidencialista nas urnas. Foi uma opção consciente por um tipo de líder claramente identificável como o fiel depositário dos anseios da sociedade, responsável último, no olhar do cidadão, por dar soluções para os graves problemas que afligem a Nação, como a pobreza e a desigualdade.

Pode-se discutir, é evidente, se a escolha pelo presidencialismo, e não pelo parlamentarismo, foi ou não a mais sábia. Fato é que, por razões históricas e culturais que marcaram a construção de nossa identidade nacional, o que o presidente diz e escreve nesta porção do mundo tem um peso como em poucos outros países. Isso é um patrimônio do chefe do Poder Executivo.

Por suas ações erráticas e por vezes irascíveis, o presidente Jair Bolsonaro tem comprometido esse patrimônio. Suas palavras mais espantam e desorientam do que inspiram. Revelam uma ciclotimia que desgasta o estoque de confiança que os brasileiros nele depositaram na eleição de 2018.

Nos últimos dias, a atenção do País tem se concentrado, mais uma vez, nas esquisitices do presidente. Em entrevista exclusiva ao Estado, o presidente admitiu ter sido uma “injustiça” a publicação de um tosco vídeo em sua conta no Twitter em que ele é associado a um leão solitário sob ataque de uma alcateia de hienas, estas representando o Supremo Tribunal Federal (STF), os partidos políticos, a imprensa, a Organização das Nações Unidas (ONU), em suma, instituições que são caras a países democráticos. Aos olhos do presidente Jair Bolsonaro, no entanto, essas instituições são os obstáculos que o impedem de guiar o País a bom porto. “Me desculpo publicamente ao STF, a quem porventura ficou ofendido. Foi uma injustiça. Erramos e haverá retratação”, disse o presidente.

Poesia | Vinicius de Moraes - Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

Música | Ana Costa - As coisas que mamãe me ensinou

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Opinião do dia – Celso de Mello*

A ser verdadeira a postagem feita pelo Senhor Presidente da República em sua conta pessoal no “Twitter”, torna-se evidente que o atrevimento presidencial parece não encontrar limites na compostura que um Chefe de Estado deve demonstrar no exercício de suas altas funções, pois o vídeo que equipara, ofensivamente, o Supremo Tribunal Federal a uma “hiena” culmina, de modo absurdo e grosseiro, por falsamente identificar a Suprema Corte como um de seus opositores. Esse comportamento revelado no vídeo em questão, além de caracterizar absoluta falta de “gravitas” e de apropriada estatura presidencial, também constitui a expressão odiosa (e profundamente lamentável) de quem desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o Presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República. É imperioso que o Senhor Presidente da República – que não é um “monarca presidencial”, como se o nosso País absurdamente fosse uma selva na qual o Leão imperasse com poderes absolutos e ilimitados – saiba que, em uma sociedade civilizada e de perfil democrático, jamais haverá cidadãos livres sem um Poder Judiciário independente, como o é a Magistratura do Brasil.

*Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em nota sobre o “Twitter” do presidente Bolsonaro

Ricardo Noblat - Bolsonaro veste a carapuça

- Blog do Noblat | Veja

Nunca antes neste país...
Descontrolado como jamais se viu ao vivo um presidente da República por estas bandas, a disparar imprecações, desaforos, palavrões e ameaças contra a Rede Globo de Televisão, Jair Bolsonaro usou pouco mais de 23 minutos de transmissão direta da Arábia Saudita para dizer em resumo que ele e seus filhos são inocentes da morte da vereadora Marielle Franco (PSOL).

Mas quem disse que ele e os filhos poderiam ser culpados? Espera-se apenas que esclareçam quem estava na casa de número 58, de propriedade de Bolsonaro, quando no dia da morte de Marielle o porteiro do condomínio telefonou para lá informando que um homem, de nome Élcio, pedia para entrar. A voz de homem que de dentro da casa atendeu ao porteiro deu permissão.

Como Élcio dirigiu-se para a casa 66, o porteiro tornou a ligar para a casa de número 58. Informada do que se passava, a voz de homem respondeu que já sabia, que estava tudo direito, tudo bem. Foi o que contou o porteiro em dois depoimentos prestados à polícia. Contou também que a voz do homem da casa 58 era de “seu Jair”. Enganou-se, naturalmente, uma vez que Bolsonaro naquele dia deu expediente em Brasília na Câmara dos Deputados.

Na casa 66 morava o policial aposentado Ronnie Lessa, hoje preso sob a acusação de ter assassinado Marielle e seu motorista. Lessa e Élcio, de sobrenome Queiroz, saíram do condomínio dentro de um carro de Lessa. Mais adiante, conforme provas reunidas pela polícia, os dois entraram em outro carro, dirigido por Élcio, que também está preso. E foram matar Marielle no centro da cidade.

A reação colérica de Bolsonaro está mais para a de um homem que parece ter o que temer do que para alguém que se diz inocente “O orgasmo da TV Globo será ver um dos filhos meus preso”, afirmou Bolsonaro. Acusou o governador Wilson Witzel, do Rio, de ter vazado para a Globo o que ela divulgou. E chamou o jornalismo da Globo de “canalha e patife” pelo menos uma dezena de vezes.

Por fim, sem que uma coisa tenha a ver com a outra, exclamou:

– Quero também saber quem mandou matar Jair Bolsonaro.

Depois de três inquéritos, a Polícia Federal concluiu que ninguém mandou matar Bolsonaro. O autor da facada em Juiz de Fora, Adélio Bispo, agiu sozinho. Por sofrer de transtorno mental, foi considerado inimputável pela Justiça. Está em uma cela da Penitenciária Federal de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Podendo recorrer da decisão judicial, Bolsonaro não o fez.

República em estado de choque

Luiz Carlos Azedo - Tuitada infeliz

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Bolsonaro foi pego de surpresa pelo vídeo que cita o STF, cuja origem disse desconhecer; todos suspeitam que tenha sido uma iniciativa do vereador Carlos Bolsonaro, mas ele nega”

Palpite infeliz, de Noel Rosa, é um marco da nossa música popular. O samba, composto em 1935, praticamente pôs um ponto-final na sua polêmica com outro grande sambista, Wilson Batista, que havia glamorizado a malandragem no samba Lenço no pescoço, que fazia a apologia do sujeito desocupado e bom de briga; Noel respondeu com o samba Rapaz folgado, uma crítica àquele estilo de vida.

Wilson não deixou por menos e tentou ridicularizar Noel, no samba O mocinho da Vila, ao qual o poeta respondeu com o antológico Feitiço da vila. Nessa altura da polêmica, os dois monopolizavam a audiência nas rádios e as conversas de botequim. Wilson responde novamente, com Conversa Fiada, mas Noel retruca com outra obra-prima: Palpite infeliz, cuja letra, em certo trecho, diz: “Pra que ligar a quem não sabe/ Aonde tem o seu nariz?/ Quem é você que não sabe o que diz?/ Quem é você que não sabe o que diz?/ Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!”. Wilson ainda compôs Frankenstein, uma alusão ao defeito facial de Noel, grosseria que o compositor da Vila Isabel ignorou, e Terra de cego, aos quais Noel respondeu com Deixa de ser convencido. A homérica disputa musical, porém, já estava decidida: os sambas Feitiço da Vila e Palpite infeliz são cantados até hoje.

Ideia infeliz foi o vídeo postado no Twitter do presidente Jair Bolsonaro na segunda-feira, no qual um leão, representando Bolsonaro, é cercado e atacado por várias hienas ao redor, numa alusão aos supostos inimigos do presidente da República, entre os quais estaria o Supremo Tribunal Federal (STF). O vídeo permaneceu no ar por duas horas e causou perplexidade, porque disparava em todas as direções: imprensa, partidos políticos — como o PCdoB, o PT e o próprio PSL, ao qual Bolsonaro é filiado —, a Organização das Nações Unidas (ONU), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras instituições foram identificadas como as hienas.

Ontem, o presidente Jair Bolsonaro pediu desculpas ao Supremo Tribunal Federal (STF). Participava de encontros bilaterais na Arábia Saudita e comentou o caso em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo: “Me desculpo publicamente ao STF, a quem porventura ficou ofendido. Foi uma injustiça, sim. Corrigimos e vamos publicar uma matéria que vai para esse lado das desculpas”. A reação do presidente da República foi provocada por duras críticas do decano do STF, ministro Celso de Mello, que costuma ser o porta-voz da Corte nessas situações.

Fernando Exman - As várias faces da política externa

- Valor Econômico

Diplomacia militar ganha espaço no governo Bolsonaro

A visita do presidente Jair Bolsonaro à Ásia e a países árabes é a oportunidade de ocorrer uma reflexão, na Presidência da República, sobre os riscos de ser ter uma política externa dogmática.
A área internacional é uma das principais forças motrizes dos militantes bolsonaristas. Mas esta viagem, motivada por urgentes interesses estratégicos e econômicos, é prova de que as razões de Estado seriam bem-vindas aos manuais de alguns dos formuladores da política externa.

Após criar atritos com esses mesmos parceiros desde a campanha eleitoral, Bolsonaro trará de volta na bagagem promessas de investimentos e parcerias. Seus aliados comemoram o malogro dos analistas que estimavam os potenciais prejuízos dos ataques feitos à China, principal parceiro comercial do país, e as reações dos países árabes e muçulmanos à ideia de se transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém.

O pior cenário não se concretizou por que houve quem trabalhasse, com vigor, nos bastidores. Diplomatas experientes fizeram gestões, mesmo sob risco de caírem na lista dos servidores públicos que não interessam à atual gestão para postos importantes. E integrantes de outra carreira de Estado se viram impelidos a entrar em ação: os militares.

José Eli da Veiga* - O trevo da distopia

- Valor Econômico

A vida inteligente está ameaçada, mas principalmente pela possibilidade de que venham a ser usados os arsenais atômicos

Está em ascensão a crença em irrevogável autoextermínio da humanidade. A tal ponto que nem caberia, nesta página, a lista de recentes bons livros e artigos que robustecem tal distopia. A justificativa é quase sempre ambiental, com maior realce ao imbróglio climático, muitas vezes acompanhada de prognósticos dos mais sombrios sobre o uso de novas tecnologias, com destaque à inteligência artificial. Com tal combinação, muito em breve só sobrariam vivos, na Terra, os tardígrados.

Costuma estar fora desta onda qualquer preocupação com a incerteza mais garantidora de tão lúgubre desfecho: a volta da ameaça de um “inverno nuclear”, fato que mereceu destaque aqui no Valor do último 13 de setembro (p. 14-15 do caderno EU& Fim de Semana). É esquisito que o pior agouro - o de guerra nuclear - fique debaixo do tapete em algaravia sobre aquecimento global e más condutas tecnológicas, os menos prementes dos três perigos.

Uma boa especulação psíquica evocaria os mais fortes arquétipos sobre a natureza. Alguns tendem a achar que ela é caprichosa, delicada, frágil, precária e efêmera. Outros, que ela é bem robusta, estável e previsível. Para os primeiros, só restaria aos humanos o dever de agir como se estivessem pisando em ovos, sem qualquer pretensão de gerenciamento ambiental. Ao contrário dos que apostam na ciência para um manejo que contrabalance os males impostos pelo processo civilizador.

Vera Magalhães - Quem é que manda?

- O Estado de S.Paulo

Ou o pedido de desculpas do presidente é puro jogo de cena, ou ele não manda no seu entorno

O episódio do vídeo das hienas seria só mais um mal-entendido grotesco da comunicação virtual bolsonarista não fosse o fato de que esses mal-entendidos não têm nada de acidentais. Desde a posse de Bolsonaro, seu entorno mais ideológico insiste num discurso semi-revolucionário, em que o presidente é pintado como uma figura mítica, dotada de designação divina para combater o “mal” – ora encarnado nas instituições, ou “establishment”, ora na imprensa, ora nos partidos, a depender da conveniência de se eleger um inimigo na ocasião.

Trabalham nisso o gabinete do ódio do Planalto, sob o comando de Filipe G. Martins, os filhos 02 e 03, o ideólogo da Virgínia e os ministros vassalos dessa cantilena ideológica.

Acontece que, quando o embate se dá com o Supremo Tribunal Federal, o presidente tem de fazer um recuo público. Afinal, o filho 01 está pendurado no guichê da Corte, que com duas liminares de dois dos ministros que a ala antiestablishment mais adora malhar sustou o caso do incômodo (e cada vez mais falastrão) Fabrício Queiroz.

Que Bolsonaro peça desculpas pela postagem, mas não impeça o filho Carlos de seguir usando sua conta no Twitter, e logo em seguida Filipe Martins use o próprio perfil para repetir que as instituições são, sim, “hienas” – mantendo assim mobilizada a militância virtual – mostra uma de duas coisas: ou o pedido de desculpas do presidente é puro jogo de cena, ou ele não manda no seu entorno mais próximo. As duas hipóteses são bastante preocupantes.

Míriam Leitão - A falta de limites do presidente

- O Globo

Nada atenua o que foi postado. Presidentes não têm palavras extraoficiais, nem declarações para serem apagadas como se não tivessem sido feitas

O ministro Celso de Mello definiu como “atrevimento sem limites” porque o ministro é um homem educado e sabe o código de conduta no uso das palavras por uma autoridade. O que o presidente Bolsonaro fez ao comparar o STF a uma hiena da alcateia que ataca o “leão conservador e patriota” é muito mais grave do que ele admitiu mesmo no pedido de desculpas. “Foi uma injustiça sim, corrigimos e vamos publicar uma matéria que leva para o lado das desculpas.” É bem mais que uma “injustiça”.

O presidente jurou respeitar a Constituição, e ela reconhece o Judiciário como um dos três poderes, e o STF é o órgão máximo desse poder. Tratá-lo com um achincalhe desrespeitoso em uma molecagem de Twitter é descumprir preceito constitucional. Aquele é um canal oficial do presidente, e portanto é sua palavra. A explicação de que várias pessoas têm acesso aumenta o absurdo da situação. Com a mensagem ele açula os seus seguidores radicais que têm defendido o fechamento do Supremo. Sem Supremo, não temos democracia. Isso significa que ele está fortalecendo um movimento de ameaça à própria democracia.

Cada cidadão é livre para ter críticas às decisões do STF. Os ministros da Corte inclusive divergem entre si. Neste momento de decisão sobre um assunto em que há uma divisão acalorada no país é normal que o foco esteja sobre o Supremo. Os ministros Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Edson Fachin e Alexandre de Moraes acham que deve-se manter o cumprimento da pena após a condenação em 2ª instância, argumentando que neste ponto o mérito já terá sido julgado e revisto por um colegiado. E que os recursos protelatórios têm sido a arma do crime de colarinho branco para a impunidade. A ministra Rosa Weber, o relator Marco Aurélio Mello e o ministro Ricardo Lewandowski sustentam ser incontornável o princípio constitucional do cumprimento da pena só após o trânsito em julgado.

Zuenir Ventura - O pesadelo das manchas de óleo

- O Globo

E se elas resolverem passar pelas praias do Rio?

A pergunta da repórter ao oceanógrafo era se as misteriosas manchas das praias do Nordeste, que há dois meses não param de descer no mapa, podiam chegar a Santa Catarina. A resposta foi que era possível, embora não fosse provável. Fui dormir com essa hipotética ameaça, suficiente para se transformar num pesadelo: e se elas resolverem passar pelas praias do Rio?

Os números alimentam essa paranoia: o óleo não para de se espalhar. Já atinge 2.200 kms de extensão em nove estados, 92 municípios, um total de 254 localidades afetadas. Enquanto isso, o ministro do Turismo posava molhando os pés e as mãos no mar de Muro Alto, em Ipojuca, Pernambuco, decretando: “As praias estão completamente aptas à frequentação de turistas”. No mesmo dia, o diretor da Agência de Meio Ambiente do estado advertia que ainda havia óleo na água, o que a tornava “imprópria para a recreação” .

Igualmente patético foi o presidente em exercício Hamilton Mourão, sem camisa diante das câmeras, afirmando: “O óleo já foi recolhido. Hoje não tem mais nenhuma praia suja no Nordeste”. Tem, sim, general, apesar das duas mil toneladas de óleo recolhidas em cerca de 200 praias.

Bernardo Mello Franco - Instintos primitivos

- O Globo

As manifestações no Chile mexeram com os instintos primitivos do bolsonarismo. O presidente tem ameaçado convocar os militares para reprimir protestos inexistentes no Brasil

As manifestações no Chile mexeram com os instintos mais primitivos do bolsonarismo. Em visita à China, o presidente Jair definiu os protestos como “atos terroristas”. Dias antes, no Japão, chamou de “bárbaros” os chilenos que tomaram as ruas contra o aumento do custo de vida e a piora dos serviços públicos.

O governo de Sebastián Piñera respondeu ao início da crise com uma repressão brutal. Pôs o Exército nas ruas e ressuscitou o toque de recolher da ditadura Pinochet. Depois de 20 mortos e mais de uma centenas de feridos, o presidente decidiu recuar. Pediu desculpas à população, recolheu a tropa e anunciou reformas sociais.

Em pronunciamento na TV, o conservador Piñera admitiu que os chilenos têm motivos para reclamar. Disse que as últimas gestões, incluindo as dele, não foram capazes de perceber a insatisfação popular. “Reconheço e peço perdão por essa falta de visão”, penitenciou-se.

Elio Gaspari* - A marcha dos insensatos

- Folha de S. Paulo | O Globo

Em um cenário de ruína, Bolsonaro e Fernández resolveram se estranhar

Brasil e Argentina, além de vizinhos, são grandes parceiros comerciais. Ambos estão com taxas de desemprego de dois dígitos. Um torce para que o crescimento de 2019 chegue a 1% e o outro rala uma contração da economia. Nesse cenário de ruína, Jair Bolsonaro e o presidente eleito da Argentina resolveram se estranhar. Por quê? Por nada.

Donald Trump briga com Xi Jinping, mas ambos defendem seus negócios. Já houve época em que o Brasil e a Argentina crisparam suas relações por motivos palpáveis, como aconteceu em negociações comerciais e em torno da construção da hidrelétrica de Itaipu. Mesmo nessas ocasiões, os governos comportavam-se com elegância. Durante uma dessas controvérsias, o presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu: “Não gosto dessa coisa truculenta que não leva a nada. Já temos tantas arestas que é melhor nos pouparmos de acrescentar novas.” Agora, em torno do nada, Jair Bolsonaro e Alberto Fernández romperam a barreira da cordialidade.

Utilizando-se uma medida útil para quem observa briga de rua, foi Bolsonaro quem começou. Em junho ele disse que “Argentina e Brasil não podem retornar à corrupção do passado, a corrupção desenfreada pela busca do poder. Contamos com o povo argentino para escolher bem seu presidente em outubro.” Um mês depois, o candidato Alberto Fernández visitou Lula na carceragem de Curitiba. Domingo (27), no seu discurso de vitória, ele repetiu o “Lula Livre” e Bolsonaro classificou o gesto como “uma afronta à democracia brasileira”, recusando-se a cumprimentá-lo pela vitória.

Hélio Schwartsman - Chile põe o liberalismo em xeque?

- Folha de S. Paulo

Por que só agora veio a rebelião?

Os protestos no Chile são uma demonstração de que as receitas econômicas liberais não funcionam? A resposta a essa questão depende dos óculos com que a visualizamos.

Para quem porta as lentes do historiador, que valorizam os feitos do passado, é difícil falar em fracasso do liberalismo. Do início dos anos 2000 até os dias de hoje, o PIB per capita chileno saltou de US$ 11,3 mil para US$ 26,3 mil, e a pobreza extrema, que atingia 36% da população, despencou para 8,6%. Na América do Sul, não encontramos outro caso de melhora assim significativa num espaço de tempo tão curto. Revoluções decerto não produzem resultados tão positivos.

O problema da visão do historiador é que as pessoas não vivem no passado. Elas estão no presente e com os olhos voltados para o futuro. E o ser humano, como já ensinava Schopenhauer, é uma máquina de desejar que não pode ser desligada. Quando ele consegue algo que queria, já está desejando o próximo item de uma lista que nunca se esgota.

Bruno Boghossian - A paranoia como método político

- Folha de S. Paulo

Presidente quer convencer o país de que é vítima de uma ameaça permanente

Cercado por hienas e conspirações socialistas, Jair Bolsonaro quer convencer o país de que é vítima de uma ameaça contínua. A insistência do presidente em retratar críticos como vilões e atribuir seus infortúnios a complôs delirantes mostra que ele pretende governar em estado permanente de paranoia.

Esse estilo político foi descrito pelo historiador americano Richard Hofstadter num ensaio de 1964. Ele tomou emprestado o termo clínico para descrever um discurso baseado no exagero, na suspeição, no alarmismo e em fantasias conspiratórias.

A tática é apresentar o jogo democrático como um conflito entre o bem e o mal, anulando qualquer expectativa de moderação e convocando uma luta constante. "Visto que o inimigo é considerado totalmente mau e desagradável, ele deve ser totalmente eliminado", escreveu.

Vinicius Torres Freire - O conto do vigário dos dois governos Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Presidente se desculpa por comparar boa parte do país a hienas, mas sua militância, não

Jair Bolsonaro pediu desculpas ao Supremo, caso alguém lá tivesse ficado ofendido com o fato de a corte ter sido comparada a uma hiena, em vídeo publicado pelo presidente na segunda-feira, e apagado duas horas depois.

Ainda assim, a falange revolucionária do bolsonarismo, sua autodenominada “ala antiestablishment,” reafirmou com outras palavras a mensagem do vídeo apagado, que não era apenas de injúria contra parte importante da sociedade civil e política organizada, mas uma convocação militante. O filmete do leão acossado (Bolsonaro) terminava com um chamado para que “conservadores patriotas” defendessem o presidente da oposição, das hienas e também dos isentões: “quem não é por nós, está contra nós".

As peripécias da história do vídeo, similares às de outros episódios de morde e assopra, indica que o bolsonarismo revolucionário está forte e sacudido, ainda que por ora contido no bunker do Planalto ou em catacumbas digitais. Continua, assim, o conto dos dois governos.

Ruy Castro* - Rei dos animais

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro se vê como um leão. O STF se verá como uma hiena?

Quando se julgavam esgotados os epítetos, afrontas e apodos dirigidos a Jair Bolsonaro —nunca um presidente da República se prestou tanto a ser desqualificado—, eis que ele próprio acrescentou à sua galeria o título que lhe faltava. O vídeo produzido por sua equipe e protagonizado por um leão identificado com o seu nome, acossado por hienas marcadas com os logotipos de seus supostos inimigos, não deixa dúvida. Ele é o rei dos animais.

Essa repentina majestade, no entanto, não o livrará de continuar a ser tratado com casca e tudo, inclusive pela turma com quem andava antes de chegar ao Planalto. Outro dia, seu próprio colega de partido, um certo Delegado Waldir, chamou-o de “vagabundo” e “essa porra” —quase fazendo o colunista sair em defesa da porra, injustamente rebaixada a Bolsonaro.

O que a mídia pensa – Editoriais

- Leia os editorias de hoje dos principais jornais brasileiros:

Política na selva – Editorial | Folha de S. Paulo

Como rei leão, Bolsonaro talvez vislumbre poder incompatível com a Carta de 88

A alusão a animais na propaganda política é recurso antigo dos demagogos. A imagem de ratos roendo a bandeira nacional, utilizada pelo PT em 2002, vem sendo retomada há décadas como uma maneira de desumanizar os adversários.

A publicação do presidente Jair Bolsonaro (PSL), numa rede social, de alegoria baseada no cerco de um grupo de hienas a um leão tem, no entanto, as suas peculiaridades.

Alegoria constitui, aliás, palavra sutil demais para qualificar o vídeo, que deixa muito claro, por meio de trucagens toscas, quem são as tais hienas: o Supremo Tribunal Federal, a Ordem dos Advogados do Brasil, veículos da imprensa (incluída esta Folha), o PT e até o PSL, que o mandatário luta para controlar com a mão pesada do Executivo.

Tampouco resta dúvida sobre a identidade do felino rodeado pelos bichos carniceiros: presidente Bolsonaro, estampa a legenda.

No reino da Arábia Saudita, que o chefe de Estado brasileiro visitava quando o vídeo foi divulgado, o regime especializou-se não só em rugir para seus críticos. Ele os mata e trucida, como foi feito com o jornalista Jamal Khashoggi em pleno consulado saudita de Istambul (Turquia), em outubro de 2018.

Palestra de Luiz Sérgio Henriques - A democracia ainda é um valor atual?

Palestrante: Luiz Sérgio Henriquez  Debatedores: Tibério Canuto e José Arlindo Soares Data: 24 de outubro de 2019 - Recife

Poesia | João Cabral de Melo Neto – Morte e Vida Severina (Trecho)

“…E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.”

Música | Dorival Caymmi - Marina

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Opinião do dia – Antonio Gramsci*

Convenci-me de que, mesmo quando tudo parece perdido, é preciso tranquilamente pôr-se a trabalhar, recomeçando do início.


*Antonio Gramsci ( 1891- 1937), foi um filósofo marxista, jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu sobre teoria política, sociologia, antropologia e linguística.

Luiz Carlos Azedo - Fora de ordem

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A rigor, ninguém sabe muito bem o que vai acontecer na Argentina e no Chile. O melhor mesmo é tentar entender o que se passa por aqui. Na verdade, somos muito diferentes”

A velha canção de Caetano Veloso me vem à lembrança por causa do refrão: “Alguma coisa/ Está fora da ordem/ Fora da nova ordem/ Mundial…(Várias vezes)”. Ela fala do pequeno traficante nas ruínas de uma escola em construção, de meninos e meninas ganindo para a lua, de crianças que mordem os canos de pistolas, dos ianomâmis na floresta… Mas não perde o otimismo: “Eu não espero pelo dia/ Em que todos/ Os homens concordem/ Apenas sei de diversas/ Harmonias bonitas (…)”

“Aqui tudo parece/ Que era ainda construção/ E já é ruína”, porém, adverte o poeta. A crise do governo Sebastián Piñera, no Chile, e a vitória eleitoral do peronista Alberto Fernández, na Argentina, embaralharam o jogo político na América do Sul e como a música provocam reflexões sobre o que pode acontecer no Brasil. Estamos diante de uma espécie de El Niño político. O fenômeno climático é provocado por um aquecimento anormal das águas de superfície do oceano Pacífico Equatorial, na altura do Peru, que influencia o clima no Brasil e todo o Cone Sul.

Com a aprovação da reforma da Previdência e a expectativa de que um pacote de medidas administrativas e fiscais do governo está para ser anunciado, havia muito otimismo no mercado em relação ao início de um novo ciclo de expansão da economia, moderado, mas consistente. A crise do Chile, cujos indicadores econômicos são melhores do que os nossos, mostrou que a economia moderna e competitiva do vizinho escondia um país sem rede de proteção social e com desigualdades gritantes, sobretudo na distribuição de renda.

A derrota de Maurício Macri era pedra cantada, mas, nem por isso, merece ser desconsiderada. A volta dos peronistas ao poder sinaliza que os argentinos colocaram em segundo plano as denúncias de corrupção contra a ex-presidente Cristina Kirchner, agora vice mandatária do país, mais uma vez. O fracasso de Macri pode ser visto por vários ângulos, mas o fato é que seu governo frustrou as expectativas de crescimento e bem-estar social da população. A nova ressurreição peronista anima os petistas a sonharem com a volta por cima do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A reação do presidente Jair Bolsonaro às mudanças nos dois países era a previsível. No caso do Chile, viu nos protestos uma conspiração da Venezuela e de Cuba; no da Argentina, a retomada do projeto bolivariano pelo novo presidente eleito, que gritou “Lula livre!” no comício de comemoração da vitória eleitoral. A rigor, ninguém sabe muito bem o que vai acontecer nos dois países. O melhor mesmo é tentar entender o que se passa por aqui. Na verdade, somos muito diferentes.

Há esgarçamento social também no Brasil, os indicadores de violência mostram sua face mais brutal. Apesar da queda do desemprego e da criação de vagas formais, temos um exército de 28 milhões de pessoas “subutilizadas”, sendo 12,5 milhões no desemprego total, principalmente nas faixas de 18 a 29 anos de idade e acima de 55 anos. Ou o governo Bolsonaro enfrenta esse problema ou os cenários chileno e argentino entrarão no radar dos investidores: ninguém quererá investir em um país em risco de convulsão política e social.

Bernardo Mello Franco – A birra presidencial contra a Argentina

- O Globo

Bolsonaro precisa engolir o choro e se conformar com a vitória de Alberto Fernández. Criticar a escolha dos argentinos soa como birra e contraria os interesses do Brasil

Jair Bolsonaro se recusou a cumprimentar o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández. Acrescentou que o país vizinho “escolheu mal”, numa afronta aos eleitores que foram às urnas no domingo.

Fernández chegou ao poder por decisão dos argentinos. Foi eleito no primeiro turno, batendo Mauricio Macri. Sua vitória frustrou Bolsonar o, que tentou interferir na disputa a favor do atual inquilino da Casa Rosada.

Passada a eleição, o governo brasileiro deveria adotar uma atitude pragmática. A Argentina é a nossa terceira maior parceira comercial. Tensionar a relação por motivos ideológicos contraria o interesse nacional.

Isso é o que um chanceler normal diria ao presidente. Mas o chanceler brasileiro se chama Ernesto Araújo, e passou o dia no Twitter esperneando contra o triunfo do candidato peronista. Numa postagem, ele escreveu que as “forças do mal” estavam em festa. Em outra, sugeriu que Fernández vai apoiar ditaduras —no mesmo dia, seu chefe visitou o Catar e a Arábia Saudita.

Míriam Leitão – Argentina volta aos peronistas

- O Globo

Macri prometeu transformar a Argentina, mas fracassou. Fernández herdará um país em forte crise e terá pouco espaço para medidas populistas

Quando o presidente Maurício Macri tomou posse, em dezembro de 2015, um dólar valia 9,74 pesos. Ele deixará o governo com uma taxa próxima de 60 pesos. A moeda americana teve uma valorização de 500% nesse período. Para um país no qual o dólar sempre foi a grande referência econômica, é uma medida do fracasso. É bem verdade que parte da alta ocorreu agora, desde as primárias, indicando a volta do peronismo, quando subiu de 45 para 60. Ontem, a primeira medida do BC foi apertar mais o câmbio.

O eleitor argentino escolheu trazer os peronistas de volta, uma vez mais, mas ao mesmo tempo deu um sinal à direita de que ela pode continuar no jogo político. Na economia, o presidente eleito, Alberto Fernández, terá que imediatamente sair da ambiguidade que conseguiu manter durante a campanha. Os argentinos deram a ele a Presidência sem saber qual era seu plano econômico, nem quem ele nomearia para os cargos-chave da área. Ontem, o presidente eleito escolheu quatro pessoas para tratar da transição, nenhum deles é economista. A crise não deixará muita margem para esperar: o país está com uma inflação de mais de 50%, um acordo com o FMI em compasso de espera e falta de dólares em reservas. A forte desvalorização após as primárias certamente pressionará a inflação nesta curta transição.

Não foi a lavada que se prenunciava, após as primárias, mas o peronismo-kirchnerista teve uma vitória robusta. Ganhou não só no primeiro turno como venceu com Axel Kicillof na província de Buenos Aires, derrotando a governadora em exercício, María Eugenia Vidal, que é muito ligada a Maurício Macri. Por outro lado, o resultado das urnas reduziu a distância entre vencedor e vencido, e o Cambiemos, de Maurício Macri, terá uma bancada importante na Câmara e no Senado para fazer oposição.

José Casado - Justiça de rico e de pobre

- O Globo

São 337 mil. É gente suficiente para encher quase cinco Maracanãs em dia decisivo para o Flamengo matar a fome de 38 anos na Libertadores.

São quase todos jovens, periféricos, pobres, negros e mulatos, alguns quase brancos ou quase pretos de tão pobres, como descreve Caetano Veloso em “Haiti”.

Presos “provisórios”, para a burocracia, e já somam 41,5% do total de encarcerados (818,8 mil em agosto). São pessoas forçadas a viver dentro das 2,6 mil cadeias. Cumprem pena mesmo sem condenação.

A maioria está trancada há pelo menos quatro anos, 48 meses ou 192 semanas. Espera a assinatura de um juiz para decidir o rumo: vida em liberdade ou no exército oferecido pelo Estado brasileiro aos 80 grupos criminosos que controlam presídios.

Semana passada foram lembrados no plenário do Supremo pelo juiz Luís Roberto Barroso: “Justamente porque o sistema é muito ruim, perto de 40% dos presos do país são presos provisórios. Muitos, sobretudo os pobres, já estão presos desde antes da sentença de primeira instância.”