Para Anthony Giddens, ideólogo da Terceira Via, o Brexit não é simples caso de populismo e vivemos luta global sobre o futuro da democracia
Vivian Oswald | Valor Econômico
"Sou contra a ideia de que o mundo está se tornando dividido, caótico, porque é uma grande mistura. Isso é parte do problema", afirma Giddens
LONDRES - O divórcio do Reino Unido da União Europeia (UE) está num impasse e seu destino ainda é uma incógnita. "Ninguém sabe como vai terminar. Infelizmente, o processo causou muitos danos", diz Anthony Giddens, um dos mais importantes sociólogos britânicos. Ele foi ideólogo da Terceira Via e uma das principais influências do Novo Partido Trabalhista do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair (1997-2007), além de ter ocupado cargos em diversas instituições públicas, acadêmicas e de ter sido consultor para países da Ásia, América Latina e Europa.
Em entrevista ao Valor, na casa de chá da Casa dos Lordes, da qual faz parte, Giddens lamentou o Brexit, falou de populismo e da revolução digital, um dos temas que o fascina. Defendeu o que chamou de "esquerda vanguardista", uma espécie de releitura pós-era digital da sua Terceira Via de 20 anos atrás - como resposta às grandes questões das sociedades contemporâneas, a britânica inclusive.
Nascido há 81 anos em Edmonton, no Norte da Inglaterra, uma das regiões que mais pode sofrer com a saída do Reino Unido da União Europeia, Giddens afirma que o Brexit não é um caso simples de populismo. O que está por vir ao fim desse processo que se arrasta desde o referendo de junho de 2016, diz, é motivo de preocupação. "Falta um plano aceitável e coerente para o país."
Giddens observa que o mundo nunca enfrentou tantos perigos, mas diz acreditar que as oportunidades são maiores. A resposta certeira ao "como vai?" do garçom que traz seu chá verde mostra, com boa dose de humor britânico, como se sente hoje: "Estou bem. Em melhor forma do que o mundo, espero".
Valor: O Reino Unido vive um momento decisivo. Com ou sem Brexit, o país continua dividido. É a mesma onda populista que varre o resto do mundo?
Anthony Giddens: O Brexit não é um caso simples de populismo. Não se pode encaixar o que está acontecendo com a história britânica em algum tipo de premissa global sobre o populismo. Temos que partir do princípio de que a relação entre o Reino Unido e o resto da Europa sempre foi marginal e difícil. [O primeiro-ministro] Winston Churchill foi uma das pessoas que lançou a União Europeia, mas disse que "vamos estar sempre meio destacados e vamos olhar para o 'mar aberto'". Isso significava o resto do mundo e o Atlântico, a seus olhos. Era uma época em que o império [britânico] estava substancialmente intacto. O Reino Unido sempre teve relação deslocada a respeito do resto da UE. Tem sido um processo fragmentado e caótico. Isso se soma às divisões a que você se refere, porque, quando iniciado, não foi um processo autêntico. [O ex-primeiro-ministro] David Cameron era pró-UE e só convocou o referendo para tentar sanar divisões dentro do seu partido, e não por visar o interesse nacional.
Valor: Por que a vitória do Brexit foi tão apertada diante dessa bagagem histórica?
Giddens: A coisa foi sequestrada por um grupo composto, em parte, por indivíduos bizarros. Isso pode ter contribuído para as fraturas no país. Mas o Reino Unido sempre debateu-se com a sua identidade. A famosa indagação de que o "Reino Unido perdeu o império e ainda não encontrou um papel para si" ainda se aplica. Esse é o pano de fundo do que acontece na vida real em diferentes partes do país. O Reino Unido é por si só uma entidade frágil. É por isso que o tema da Irlanda é tão central. Estive marginalmente envolvido com esse assunto no governo Tony Blair. Na Irlanda do Norte, criou-se o processo de paz, que agora está muito vulnerável. O que aconteceu foi [que o Brexit tratou de criar] uma espécie de efeito em cascata. O resultado foi muito apertado. Sabe-se que referendos podem ser afetados até pelo fato de estar chovendo. No dia seguinte, o resultado poderia ter sido outro. Se houvesse um líder trabalhista diferente, a direção poderia ter sido outra. Se o Brexit não tivesse acontecido, é possível que [Donald] Trump não fosse presidente dos EUA, porque o resultado foi definido por 134 mil votos em um universo de cerca de 130 milhões de eleitores. Há incertezas nesses processos, mas, depois que acontecem, não dá para voltar atrás facilmente. Para mim, há muitas coisas interligadas. Difícil prevê-las.
Valor: Qual a origem dessa polarização aqui?
Giddens: No caso do Reino Unido, são a história, o referendo e questões estruturais mais amplas, algumas das quais globais. Vivemos no mundo mais interconectado da história. Os eventos locais afetam os globais, e vice-versa. O pano de fundo estrutural para o que ocorre em tantos países pode ser a transição geopolítica da sociedade mundial, que é o relativo declínio da Europa e a dificuldade dos EUA com potências emergentes no começo do século asiático. As conquistas da China são inacreditáveis em termos de desenvolvimento econômico, saindo de um período de fome em massa nos anos de Mao [Tsé-tung]. Trump tem dificuldade de lidar com isso, e o Brexit está ligado a essa transição geopolítica em certa medida.
Valor: Qual o caminho para o mundo dividido?
Giddens: Todos vivem falando em divisões e antagonismos, mas é um mundo mais cheio de nuanças. Existem processos tremendos de integração global. Todo mundo está fazendo um "oba oba" em relação a uma crise da democracia. Ela existe, mas tem nuanças. Não sabemos no que vai dar, mas em quase todos os lugares existe uma reação. Estamos em meio a uma espécie de luta global sobre o futuro da democracia. Não acho que esteja resolvida. As forças opostas são muito fortes. O que acontecer nos EUA vai influenciar o futuro da história. Não sei como Trump vai reagir se for marginalizado na sua segunda eleição.