Desde que Enrico Berlinguer a anunciou em 1973, mediante suas reflexões sobre o fim do governo Allende, a “questão comunista” passou a percorrer a Europa e outros lugares. Ela significava um conjunto de problemas de valor universal que a fórmula berlingueriana resumia na existência de uma esquerda como partido de governo nas condições do capitalismo consolidado e do Estado democrático de direito. Uma esquerda com princípios renovados, após ter incorporado plenamente os temas das liberdades, da alternância no poder, da tolerância entre maiorias e minorias no Estado e da conquista e estabilização da democracia política como condição para a melhora e o aperfeiçoamento da sociedade.
Um dos intelectuais comunistas mais expostos, Leandro Konder estará presente à hora da “saída à superfície” que o PCB iniciará ainda no tempo da ditadura. Vivíamos o fim dos duros anos da primeira metade dos 70, crispação e crise do brejnevismo soviético. No debate internacional, os primeiros tempos do eurocomunismo; aqui começava a distensão, um tempo de reanimação após a vitória emedebista de 1974. A partir da experiência de parte do seu Comitê Central que vai para o exterior após a repressão e o desaparecimento de quadros dirigentes importantes, o PCB iniciava, com uma série de resoluções aprovadas a partir de 1976, a chamada elaboração do exílio, cujo ponto alto é a Resolução Política do Comitê Central de novembro de 1978, publicada no jornal Voz Operária juntamente com o artigo “A questão democrática”, de Josimar Teixeira (bem próximo da discussão italiana), e com um outro texto sobre o patrimônio de política de frente democrática, este último assinado por Jaime dos Santos. Identificado com este patrimônio, Leandro Konder (1980b, p.123) chama esse movimento do Comitê Central de “retomada da reflexão sobre a questão democrática”.
De volta ao país, a maioria do Comitê Central que substitui Prestes no comando do PCB procurava evitar o isolamento e fazer política, como fazia sempre que a situação melhorava, tecendo “contatos” na cena pública que se estendiam até a “grande imprensa”, multiplicando as entrevistas, alguns intelectuais seus escrevendo em revistas e periódicos, editando textos de vocação publicística etc. Chama a atenção que o mesmo Leandro Konder, Ivan Ribeiro, Luiz Sérgio Henriques e outros apareçam – levados pelo primeiro – como articulistas do semanário paulista Jornal da República durante todo o ano de 1979. O evento-texto “maior”, sem dúvida, será o ensaio “A democracia como valor universal”, publicado, não por acaso ao lado do artigo de Lúcio Lombardo Radice, “Um socialismo a reinventar”, na (revivida) revista Encontros com a Civilização Brasileira (n.9, março 1979). Nele, Carlos Nelson Coutinho expunha os fundamentos da concepção de uma estratégia de “sociedade socialista fundada na democracia política” (são as últimas palavras do texto), na contracorrente da cultura política da esquerda brasileira, mas convergindo com a “questão comunista” que começava a chegar pelo discurso de alguns membros do Comitê Central do PCB que, vez por outra, a grande imprensa divulgava. Aliás, é nesse número de Encontros com a Civilização Brasileira que Ênio Silveira reage ao espantalho do “conveniente fantasma do comunismo” com o qual setores do regime procuravam retomar o “espírito de 64”.
Examinando a publicística do grupo de jovens intelectuais conhecidos como a “renovação dos anos 80”, quando, no início da década, eclode a crise de Prestes e o PCB acelera os preparativos do seu VII Congresso, é possível observar mais de perto a militância de Leandro Konder “em favor do aprofundamento com novos temas da linha política adotada no 5º e desenvolvida no 6º Congressos do PCB”, a “questão democrática” (Konder, 1980a). São vários os textos pecebistas de “1980”, desde as coletâneas de resoluções e informes congressuais (PCB: vinte anos de política. Documentos – 1958-79, 1980; O PCB em São Paulo. Documentos – 1974-81, 1980; O PCB no quadro atual da política brasileira. Entrevistas concedidas a Pedro del Picchia, 1980), passando pelas incontáveis declarações de dirigentes concedidas à grande imprensa no contexto da controvérsia em torno de Prestes, até a posta em circulação do semanário legal Voz da Unidade, cujos primeiros números traziam muita matéria sobre a história e os antecedentes da nova política, incluída a Tribuna de Debates do VII Congresso que se realizaria, afinal, na passagem do ano de 1982 para 1983.
É desse ano de 1980 os dois opúsculos mais emblemáticos da trajetória de Leandro Konder nesse período de sua vida: A democracia e os comunistas no Brasil, escrito e publicado nos primeiros meses de 1980, e o livro Lukács, publicado ainda naquele ano como volume número um da coleção “Fontes do pensamento político” da editora LP&M, de Porto Alegre. O primeiro reúne os artigos publicados no Jornal da República de 1979, inclui uma versão de um texto preparado em janeiro de 1980 para a revista paulista Temas de Ciências Humanas e traz o argumento que orientara o artigo “PCB, democracia e eurocomunismo”, este publicado na revista gaúcha Oitenta (n.2, verão de 1980). O segundo é uma (longa) reconstituição (“sóbria, eminentemente “factual”) das posições assumidas por Lukács em cada fase de sua vida, de caráter informativo (a polêmica restrita a versões sobre fatos, “renunciando deliberadamente à discussão sobre questões de interpretação”), cumprindo claro papel introdutório do pensamento lukacsiano.1
A democracia e os comunistas no Brasil constitui uma das mais claras colocações do tema da esquerda em relação às características da formação social brasileira, sob a chave das posições do PCB diante da “questão democrática”; uma dimensão, esclarece o próprio Leandro Konder, até então subestimada pela historiografia especializada, mais interessada no tema da “questão nacional”. Mesmo que o autor diga na “Introdução” que o texto fora escrito para “esclarecimento pessoal”, ele revela a sua mobilização na luta pela renovação do PCB. Não por acaso, os artigos do Jornal da República expõem, primeiro, temas gramsciano-lukacsianos (“Uma sociedade civil fraca”, “Via prussiana”, “Uma ideologia dominante profundamente antidemocrática” e “Um elitismo contagioso”). A tematização brasileira da “modernização conservadora”, na chave Lenin/Lukács;2 depois, os breves textos se voltam para a história da formação do PCB (“Os anarquistas”, “Os comunistas entram em cena”, “O doutrinarismo abstrato”, “O golpismo”). Seguem-se os textos sobre o pós-1945, a época do (pequeno) partido influente e os seus tempos de sectarismo durante os anos da guerra fria. Chamam particular atenção os artigos sobre o período compreendido entre a crise do estalinismo e o pré-64 (“Desestalinização”, “O 5º Congresso do PCB”, “Prestes na vanguarda da democratização”), que Leandro Konder considera como o momento alto da formulação da “questão democrática”.3 Embora sempre com muita ambigüidade – pois continuava intermitente a conceituação de democracia como etapa –, a nova política centrada na idéia de frente única pluriclassista permanente e na valorização da democracia política, no geral, foi assumida pelo conjunto do partido, e é com ela que os comunistas brasileiros chegam até 1980 (Konder, 1980b, p.106).
Os artigos referentes ao pós-64 registram os primeiros movimentos para o aprofundamento da “questão democrática” (“O golpe de 64 e o 6º Congresso do PCB”, “O PCB e a ultra-esquerda”, especialmente “A direção do PCB no exílio”) como uma exigência “que se fazia atual” para toda a esquerda em razão da nova realidade da “modernização conservadora” da sociedade, conseqüência da reativação da “via prussiana” após o golpe de 64 (“O fortalecimento recente da sociedade civil” e “O novo proletariado”). O tema “operário” vai aparecer neste último texto registrando tanto a diversificação do “mundo do trabalho” quanto os influxos dessa diversificação na cultura política da esquerda brasileira. Citando Luiz Werneck Vianna, Leandro Konder chama a atenção para a nova “racionalidade” que o “novo proletariado”, educado que era “empiricamente, nas campanhas salariais”, conferia ao seu “ambiente sociopolítico”, mundo este assim distante do heroísmo e do golpismo que haviam marcado, não fazia uma década, boa parte da esquerda; tratava-se de um “novo proletariado” mais propenso à acumulação de forças e distante do sectarismo. Esse conceito de “novo proletariado” – ampliado pela incorporação das camadas médias, especialmente os setores produtores de bens culturais – permitia não só explicar por que ele era, então, um dos principais núcleos reativadores da sociedade civil (cujas demandas já expressavam as novas tendênciais da pluralidade do social), como também mostrar a necessidade de um discurso socialista que acolhesse tanto as questões classista-tradicionais quanto temas novos na esquerda, entre as quais, a da pluralidade dos partidos, a alternância do poder e o respeito aos direitos das minorias (Konder, 1980a, p.134). No final do seu livro (“Situação atual dos comunistas”), Leandro Konder formulava, em poucas palavras, à Engels,4 o programa político geral socialista: “A estratégia correspondente aos interesses do novo proletariado só pode ser aquela que conduza a uma inversão da ‘via prussiana’” (ibidem).
Por fim, no estudo sobre Lukács há algumas passagens descritas por Leandro Konder que não só são eloqüentes do compromissamento do PCB com o tema democrático e da sua diferenciação em relação com a ortodoxia, como também sugerem as possibilidades e os limites da tentativa de se renovar naquela época e nos termos da “questão comunista” proposta por Enrico Berlinguer. Por exemplo, aquela sobre as Teses de Blum – o informe redigido por Lukács em 1929 para o seu partido – no qual o marxista húngaro procura transformar a palavra de ordem de “ditadura democrática do proletariado e dos camponeses”, definida no 6º Congresso da IC para os países de desenvolvimento de “grau médio”, na nova categoria de “ditadura democrática”, uma fórmula, segundo ele, capaz de levar, num país como a Hungria, à “completa realização da democracia burguesa”, com muito proveito “porque a democracia burguesa é o campo de batalha mais propício ao proletariado”. Leandro Konder anota que o destino da tese “social-democrata” – assim logo foi acusada – no PC húngaro vai concluir o deslocamento de Lukács da “esquerda” para a “direita”, à hora que a IC se movia para a esquerda. As “conseqüências” das Teses de Blum: marginalização, autocrítica e exílio na URSS. A leitura dos manuscritos marxianos de 1844 em Moscou lhe confirmará algumas idéias adiantadas em História e consciência de classe; depois, virão a adoção, no 7º Congresso da IC, em 1935, da política das fronts populaires; as suas reservas ante o socialismo real onde vive (embora Lukács nunca tenha se “desapegado” do modelo soviético); também são dessa época a tentativa de teorizar as democracias populares como um novo caminho ao socialismo.
Depois, o início dos anos 50. Esse é o tempo de A destruição da razão – um livro bastante marcado pela guerra fria, diz Leandro Konder –, no qual Lukács combate os grandes pensadores contemporâneos (Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Weber, Simmel, Jaspers e outros). Leandro Konder observa que a virulência da obra iria provocar uma reação que, por sua vez, poria em segundo plano os seus aspectos mais positivos, notadamente a recuperação que nela Lukács faz do conceito leniniano de “via prussiana”, realçando as dimensões superestruturais dos processos de modernização “pelo alto” (Konder, 1980c, p.90).5 Leandro Konder retém esse ponto para mostrar as possibilidades analíticas que a noção de “via prussiana” trazia consigo, principalmente para ajudar “a combater, entre os marxistas, as ilusões otimistas de tipo ‘desenvolvimentista’ (que superestimam os efeitos automáticos do desenvolvimento das forças produtivas) e chama a nossa atenção para a autonomia (relativa, é claro, mas concreta) da esfera da atividade política, enfatizando a importância de uma abordagem adequada, criativa, não ‘reducionista’, dos problemas específicos da política” (ibidem).
A esse período da vida política de Lukács segue-se o XX Congresso do PCUS de 1956, a tentativa de renovação do socialismo húngaro (Lukács participa inclusive do governo Nagy); a invasão da Hungria pelos soviéticos, a prisão e o desterro, a volta ao país “normalizado”, a marginalização política. Espelham essa época a breve reflexão sobre a retomada do tema das democracias populares como uma procura de “um modo novo, gradual, de passagem ao socalismo à base da convicção” (ibidem, p.94) e a sua carta sobre o estalinismno (1962). É uma fase da vida de Lukács na qual, digamos assim, torna-se nítida a própria trajetória do comunismo que ele, em seu elemento, bem representava: um desenvolvimento não-linear do marxismo que avançava, como se dizia, efetuando rupturas (Lenin rompera com Marx e a previsão do socialismo nos países mais desenvolvidos, Kruchev com a visão otimista de Lenin sobre as guerras, e assim por diante). Além desse território, a renovação do marxismo importava diversificar o seu núcleo ontológico, ingressar no campo intelectual do pós-marxismo.
Começava a fase do “último” Lukács – o da Estética e o da Ontologia do ser social, os quais, segundo Leandro Konder, seriam as bases de um “projeto” de renascimento do marxismo e de sua atualização ao novo mundo; perspectiva, como se verá depois, inclusive agora (2002) quando a retomada desse “último” Lukács é valorizado na bibliografia exclusivamente marxista, que se converterá numa barreira ao revisionismo de abandono do marxismo. Alternativa não única e por certo à margem da outra vertente que se reivindica descendente de Gramsci e se assume desenvolvendo o espírito do aggionarmento da tradição e elaboração políticas do PCI.
Mas aí já estamos nos referindo a temas distantes daqueles dois textos de “1980” e a uma época diversa daquela em que Leandro Konder, com a retomada da reflexão democrática no PCB, anunciara o que seria a “questão comunista” no Brasil.
Notas
1 O volume número dois da coleção “Fontes do pensamento político”, publicado em 1981, chamar-se-á Gramsci, também uma coletânea de textos, organizada por Carlos Nelson Coutinho, que assina um estudo introdutório sobre o pensamento político do teórico italiano.
2 Leandro Konder assim registra os precursores do uso entre nós do conceito de “via prussiana”: Carlos Nelson Coutinho, no ensaio sobre Lima Barreto (cf. VV.AA., Realismo & anti-realismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974); Luiz Werneck Vianna, no livro Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976; Ivan Otero Ribeiro, no artigo “A importância da exploração familiar camponesa na A. Latina”, publicado na revista Temas de Ciências Humanas, n.4; e José Chasin, no livro O integralismo de Plínio Salgado. Forma de regressividade no capitalismo hipertardio, São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.
3Sobre os efeitos benéficos dos debates provocados pelo XX Congresso do PCUS no PCB entre 1956-1957, ver Santos (1988).
4 Com essa alusão se quer registrar a possibilidade de que a semelhança da reflexão lukacsiana com a ensaística do “último” Engels sobre o tema do prussia-nismo e a estratégia democrática ao socialismo (como se sabe, expressa na fórmula da “república democrática” como forma específica da ditadura do proletariado em países como a Alemanha) tenha que ver com a valorização da democracia política como “verdadeira revolução no Brasil” que encontramos em alguns articulistas do PCB daqueles primeiros anos 80.
5 À margem, é bom lembrar que essa elaboração de "reconhecimento do terreno nacional", como diria Gramsci, pode ser vista de modo interessante no ensaio lukacsiano "Algumas características del desarrollo histórico de Alemania". In: El asalto a la razón. Barcelona: Grijalbo, 1976.
Referências bibliográficas
KONDER, L. PCB, democracia e eurocomunismo. Oitenta, n.2, verão de 1980a.
______. A democracia e os comunistas no Brasil. São Paulo: Graal, 1980b.
______. Lukács. Porto Alegre: LP&M, 1980c.
PCB. Resolução Política do Comitê Central do PCB. Voz Operária, nov. 1978.
SANTOS, Raimundo. A primeira renovação pecebista. Reflexos do XX Congresso do PCUS no PCB (1956-57). Belo Horizonte: Oficina do Livro, 1988.
Fonte: Este texto foi extraído da coletânea Leandro Konder: a revanche da dialética. (Org. Maria Orlanda Pinassi. São Paulo: Boitempo/Unesp, 2002.
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Raimundo Santos é professor UFRRJ.