Luiz Zanin Oricchio / O Estado de S. Paulo
Uma morte pode nos despertar uma questão teórica? Claro, por que não? Hoje de manhã recebemos a notícia do desaparecimento da grande Agnès Varda, aos 90 anos. O jornal me pediu um texto sobre a realizadora belgo-francesa e já o partilhei no Facebook e no Twitter. Tendo de comentar uma obra longa, começada em 1955 com La Pointe Courte e encerrada este ano com o autobiográfico Agnès por Varda, apresentado no Festival de Berlim, ocorreu-me começar por Os Catadores e Eu (Les Glaneurs et la Glaneuse), um documentário de difícil classificação.
Depois de escrito o texto, procurei um pequeno e luminoso ensaio de Jean-Claude Bernardet sobre esse filme extraordinário. É um modelo do que pode ser uma crítica, ou pelo menos de uma de suas variantes, a crítica ensaística. Para não ter de fazer paráfrases excessivas (procedimento que sempre me soa ridículo) reproduzo mais abaixo o texto de Jean-Claude na íntegra.
Destaco apenas alguns aspectos preliminares. Palavras iniciais de Jean-Claude: “E eu, como vou começar?” O ensaísta não sabe muito bem para onde vai. Não tem um plano. Não vai demonstrar uma tese. Não elaborou os passos de sua argumentação, nem se armou de uma bibliografia. Vai escrever à pena solta, motivado por um filme que o emocionou ou o estimulou à escrita ou à reflexão.
Bernardet constata, no primeiro parágrafo, algo de ordem subjetiva, “o filme de Varda provoca no espectador uma extraordinária sensação de liberdade, uma sensação euforizante…Acredito que ela se deva ao andamento do filme”.
Em seguida, destaca o processo associativo que conduz a obra. Um assunto leva a outro e a cineasta deambula, deixa-se levar, passeia não apenas pela França mas por temas associados ao ato de catar restos, que caracteriza os “glaneurs” tanto rurais como urbanos.
Associativo sim, mas há um método nesse processo livre e libertário. Não se trata de uma deriva a esmo. A deriva é sempre controlada e remete sempre a um tema muito sensível: “os dejetos da sociedade de consumo, o desperdício dessa sociedade que marginaliza boa parte da população.”
Há o tema, mas há o movimento, o andamento do filme, o seu ritmo interno: “Podemos falar de um movimento ensaístico. Diferentemente da tese, o ensaio se sente livre, não se vê na obrigação de expor ou argumentar, nem demonstrar nada”. Não por acaso, Jean-Claude evoca o “inventor” da palavra “ensaio”, de forte significação na cultura francesa (e universal): Michel de Montaigne que, no século 16, resolveu encerrar-se para escrever livremente e tomou a si mesmo como primeiro objeto de estudo. Seu livro grandioso recebeu esse título simples: Essais. Ensaios.
Pois bem, uma confissão pessoal. De tantas formas possíveis de pensar e escrever, a ensaística é aquela que mais me agrada – Montaigne é meu autor de cabeceira. Sua liberdade de percurso, a necessária incompletude, a abertura de conclusões, o respeito à decisão do leitor de digerir da maneira que quiser aquilo que lhe foi oferecido – tudo isso, para mim, é a melhor das coisas. Soa como liberdade – a mais linda das palavras.
Por isso, Jean-Claude pode escrever que “Os Catadores é provavelmente um dos maiores ensaios cinematográficos já realizados.”
No caso, o crítico adota a forma do filme sobre o qual escreve. Para um filme ensaístico, uma crítica ensaística. Para uma obra livre, um texto libertário.
Segue abaixo:
Jean-Claude Bernardet sobre Os Catadores e Eu
G comme glaneur, R de respigador. C de catador. Assim Agnès Varda começa Os catadores e eu (Les Glaneurs et la glaneuse).