Para Marco Aurélio Nogueira, as alianças são inevitáveis em qualquer sociedade plural. Porém, defende que nenhuma aliança política deveria ser feita totalmente dissociada de uma aliança com a sociedade
Por: Graziela Wolfart
Na opinião do professor e cientista político Marco Aurélio Nogueira, “estado autoritário, sistema político elitista e partidos pouco orgânicos produzem um padrão específico de alianças, no qual acordos, entendimento e coalizões seguem critérios imediatistas e pouco refletem os interesses da sociedade, ou seja, são feitos em função de cálculos e necessidades dos políticos e dos governantes”. No entanto, pondera, “uma aliança feita exclusivamente para garantir ‘governabilidade’ ou para dar a um governo os votos de que necessita para aprovar esse ou aquele projeto pode ter menos ‘dignidade’, mas não deveria ser vista como necessariamente defeituosa ou ruim. A política, afinal das contas, também é feita desses pequenos gestos. Conquistar condições para governar faz parte de seus cálculos”. Ele fez esta e outras reflexões na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. E constata: “os eleitores brasileiros votam em pessoas, mais do que em siglas ou programas. Trata-se de uma característica nacional histórica (...). Com o passar do tempo, tal traço foi-se aprofundando, na medida mesma em que os próprios partidos perderam densidade programática e ideológica, a ponto de ficarem sem identidade”.
Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas e Relações Internacionais - IPPRI da Universidade Estadual Paulista – Unesp. É doutor em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo – USP. Obteve o título de pós-doutor na Università degli Studi La Sapienza, em Roma. Também é autor de Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática (São Paulo: Cortez Editora, 2005) e Em defesa da política (São Paulo: Editora Senac, 2005), entre outras obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em relação às alianças políticas no Brasil, que limites existem ou deveriam existir e quem os estabelece?
Marco Aurélio Nogueira – Podemos discutir alianças como um princípio ou como um critério de ação política, mas é difícil analisá-las em abstrato. Talvez não seja sequer razoável fazer isso, no sentido de que seria problemático, por exemplo, condenar uma dada aliança a partir de um modelo do que seja uma “boa aliança”. No entanto, é possível buscar a fixação de certos padrões de aliança em experiências concretas. No caso brasileiro, tais padrões têm a ver com o modo como se organizaram o Estado e o sistema político, aí incluídos os partidos políticos. Estado autoritário, sistema político elitista e partidos pouco orgânicos produzem um padrão específico de alianças, no qual acordos, entendimento e coalizões seguem critérios imediatistas e pouco refletem os interesses da sociedade, ou seja, são feitos em função de cálculos e necessidades dos políticos e dos governantes. Apesar disso, muitas alianças foram feitas sem obedecer a essa “regra”. A grande coalizão democrática que se fez em torno do MDB durante a luta contra a ditadura militar foi o maior exemplo. Também a aliança em favor do impeachment de Collor seguiu esse mesmo curso.
Priorizar os interesses do povo
Limites podem ser fixados pela cultura republicana, na medida em que ela estiver disseminada na sociedade: alianças fazem maior sentido quanto mais são celebradas tendo em vista os interesses da sociedade (do povo), e não os interesses particulares de uma ou outra agremiação. No caso de um partido democrático progressista, por exemplo, o sentido também cresceria quando a aliança correspondesse a uma oportunidade clara de avanço democrático e reformador, na qual não se precisasse pagar um preço excessivo para seduzir aliados circunstanciais, pois esses simplesmente não interessariam e nem seriam indispensáveis. Uma aliança feita exclusivamente para garantir “governabilidade” ou para dar a um governo os votos de que necessita para aprovar esse ou aquele projeto pode ter menos “dignidade”, mas não deveria ser vista como necessariamente defeituosa ou ruim. A política, afinal das contas, também é feita desses pequenos gestos. Conquistar condições para governar faz parte de seus cálculos.
IHU On-Line – É possível governar sem alianças políticas em um regime democrático?
Marco Aurélio Nogueira – Um regime democrático assenta-se numa pluralidade de opiniões, interesses e projetos. Eles precisam ser sempre articulados, compostos, agregados, ainda que se mantenham como vetores independentes e se reponham a todo o momento. Desse ponto de vista, alianças são inevitáveis em qualquer sociedade plural, e como todas as sociedades são plurais, as alianças são um fato universal em política. Em uma democracia, isso fica evidentemente ainda mais exacerbado. Mas o que fazem os políticos sempre deveria estar em alguma sintonia com as expectativas e os valores sociais. Nenhuma aliança política deveria ser feita totalmente dissociada de uma aliança com a sociedade.
IHU On-Line – Em 2006 o senhor afirmou que “os partidos diluíram-se como força propulsora de mudanças e de coordenação social. Converteram-se em gestores ‘racionais’ dos próprios interesses, aparatos inertes, que não pulsam com convicção, carecem de unidade e pensam pouco. Na disputa atual, perderam o controle sobre seus candidatos, que se revelaram indiferentes a eles” . Como reflete sobre essa afirmação hoje, a partir da foto de Maluf com Lula?
Marco Aurélio Nogueira – Os partidos no Brasil perderam mesmo a capacidade de controlar seus candidatos, quer dizer, de fazer com que eles sigam uma orientação programática substantiva e compartilhem uma linguagem comum. Em boa medida, isso sempre foi assim, mas atingiu o ápice nos últimos anos. Os eleitores brasileiros votam em pessoas, mais do que em siglas ou programas. Trata-se de uma característica nacional histórica, e a expectativa era de que os partidos políticos corrigissem isso, imprimindo outra direção às escolhas eleitorais. Com o passar do tempo, tal traço foi-se aprofundando, na medida mesma em que os próprios partidos perderam densidade programática e ideológica, a ponto de ficarem sem identidade. O abraço entre antigos inimigos não é um gesto inédito na política brasileira. Faz parte da dinâmica política de qualquer época ou lugar. Reflete sempre a preocupação de fazer com que prevaleçam interesses maiores, eventualmente os de toda a sociedade. Para um dado protagonista, inimigos que se inimizam com outros inimigos podem passar a ser amigos; amigos de hoje não são necessariamente amigos amanhã, ocorrendo o mesmo com os adversários. Pode-se abraçar um inimigo por cálculo eleitoral ou por uma causa maior, que exige sacrifício e frieza realista.
Sem moralismo
Por isso, não há porque avaliar de um ângulo moralista a aliança entre Lula e Maluf. O problema dela é de ordem política: tem a ver com o valor do gesto, com o desdobramento efetivo que ele pode ter em termos políticos, com o que se espera obter com ele. Maluf apostou na aliança como uma estratégia de recuperação do prestígio perdido. Foi a forma que encontrou para continuar vivo na política paulistana. Já Lula viu na aliança uma oportunidade de atrair eleitores malufistas na sua cruzada contra o PSDB em São Paulo. Lula, no entanto, desprezou os possíveis estragos que a aliança poderia provocar no espaço político petista, ou seja, não ponderou devidamente os ganhos e as perdas que teria. Deu como favas contadas que Maluf orientaria seus eleitores para votarem no PT, acreditou que o gesto os sensibilizaria, o que me parece algo inteiramente descabido. Além do mais, foi com tanta sede ao pote que achou razoável beijar a mão de Maluf, indo celebrar a aliança nos jardins de sua mansão em São Paulo, submetendo-se ao constrangimento de ter de aceitar, perante a opinião pública nacional e com o sorriso amarelo de seu candidato, os mimos, os afagos e os rapapés malufistas. Foi um erro de cálculo, mas foi também uma demonstração cabal de que, para Lula, o pragmatismo deve ser afirmado custe o que custar, sem respeito para com tradições e identidades.
IHU On-Line – Qual o papel dos partidos políticos em nossa sociedade?
Marco Aurélio Nogueira – Permanecem sendo os principais institutos que respondem pela agregação dos interesses, pela organização dos votos e pelo processamento das demandas sociais. Mas tornaram-se frágeis e “despadronizados” demais, o que os impede de cumprir adequadamente essas funções.
IHU On-Line – Quem é direita e quem é esquerda hoje em nossa política nacional? Quem é oposição e quem é situação?
Marco Aurélio Nogueira – Direita e esquerda, como já disseram muitos, são conceitos relativos. Dependem do ponto de referência que se toma. Se considerarmos, por exemplo, o reformismo social como referência, PT e PSDB podem ser postos à esquerda, PMDB no meio e PDS e DEM na direita. Se tomarmos como critério o governo federal, são oposição todos os que se opõem a ele e não integram sua base parlamentar de sustentação. Se a questão for a esquerda como força antissistêmica, como socialismo – como movimento que luta por mudanças estruturais direcionadas para a igualdade e a justiça social –, então talvez o mais certo fosse dizer que todos, no Brasil, estão a se acotovelar no centro. Com a exceção, claro, dos pequenos partidos ideológicos, que praticamente não pesam.
IHU On-Line – As alianças servem mais para fortalecer ou para enfraquecer os partidos?
Marco Aurélio Nogueira – Isso depende. Podem fortalecê-los ou enfraquecê-los. Posturas hiper-realistas sempre dirão que toda aliança ajuda, pois agrega gente, votos e valor ao que já se tem. Mas o realismo bem compreendido vai em direção distinta e condiciona um pouco mais as alianças. Durante os anos de luta contra a ditadura, as alianças fortaleceram o PMDB, que cresceu na medida em que sensibilizou a população e chegou ao poder na medida em que soube agregar e articular os descontentes com a ditadura. Uma aliança sem critérios, ou mal calibrada, como a de Lula com Maluf, enfraquece. E enfraquece, no caso concreto, tanto porque foi feita por fora do PT (sem o engajamento do partido) quanto porque turvou a imagem do PT como partido que se queria “diferente” dos demais, zeloso de sua ética e de seus propósitos programáticos. Todo o protagonismo de Lula, aliás, não tem sido propriamente favorável ao fortalecimento do PT como partido, ainda que o possa ter beneficiado eleitoralmente. O ex-presidente tornou-se progressivamente uma variável independente: não é mais parte de um partido, mas o embrião de outro partido.
IHU On-Line – Todo e qualquer tipo de aliança política se justifica em nome da chamada governabilidade?
Marco Aurélio Nogueira – A chamada governabilidade nada mais significa do que o alcance de condições para se governar com estabilidade. Alianças podem ser feitas para impulsionar isso, mas não são o único recurso e podem nem ser o mais interessante. O que conta mais? Obter uma base parlamentar heterogênea e pouco confiável (em decorrência da adesão de parlamentares interessados exclusivamente na repartição dos recursos de poder), que pode fazer com que um governo trema na primeira curva, ou buscar a sustentação pela sociedade, pela opinião pública e pela sociedade civil, mediante políticas públicas efetivas, ações concretas de governo e diálogo permanente? Alianças feitas exclusivamente em nome da chamada governabilidade são como nuvens passageiras e não garantem muita coisa, ainda que sejam legítimas e necessárias.
IHU On-Line – O PT, quando elegeu pela primeira vez o presidente da República, em 2003, já tinha passado por uma transformação interna, de valores e objetivos. Essa mudança não foi percebida pelos movimentos sociais e pelo eleitorado brasileiro?
Marco Aurélio Nogueira – Teríamos de fazer essa pergunta para os próprios movimentos sociais. Olhando de modo impressionista, creio que muitos movimentos perceberam que a chegada do PT ao governo representou a abertura de outra fase na luta política. Reformas poderiam ser feitas com maior contundência social e maior substância, mas certos fatores de caráter doutrinário e ideológico teriam de ser postos de lado. Um partido que deixa de ser oposição torna-se inevitavelmente gestor do sistema, e com isso suas obrigações passam a ter peso e a condicionar (e limitar) sua vocação reformadora. É um momento complexo, que exige realismo, flexibilidade e densidade analítica. Desse ponto de vista, movimentos sociais e eleitores tiveram capacidade de compreender que não se poderia exigir demais do PT num primeiro momento. Submeteram-se ao ritmo do governo e refrearam suas postulações. No caso dos eleitores, creio que também foram seduzidos pelo protagonismo de Lula, que se separou do PT e passou a trabalhar com uma agenda própria. Foi assim, por exemplo, que ele se elegeu para um segundo mandato, um ano depois da crise do mensalão, que quase dizimou o PT como partido. Lula se reelegeu com um pé na cova do PT, aproveitando a fraqueza do partido para afirmar sua força pessoal como personalidade carismática. Os movimentos sociais, por sua vez, foram aos poucos rompendo o cerco que os limitava a acompanhar o ritmo dos governos petistas. Passaram a cobrar maior coerência do partido quanto aos compromissos reformadores e a agir com maior distância e independência dele, sem levar muito em conta os prejuízos que certas ações de reivindicação ou contestação poderiam trazer para os governos ou os interesses partidários.
IHU On-Line – Qual deve ser a postura dos movimentos sociais e da sociedade civil diante desta crise dos partidos políticos e do sistema representativo na política nacional?
Marco Aurélio Nogueira – Pressionar para exigir maior clareza programática, buscar articulações que ajudem os partidos a encontrar identidade substantiva, agir para denunciar erros, abusos, falhas e incongruências. Movimentos sociais são personagens do mundo da participação, mas nem por isso precisam trabalhar para desvalorizar ou apequenar a representação. Bem pelo contrário. Eles podem ser uma força de regeneração ou fortalecimento dela, cumprindo assim uma função democrática fundamental.
FONTE: IHU On-Line, Nº 398, 13/8/2012