sábado, 25 de julho de 2020

Opinião do dia - Walter Benjamin* (Teses sobre o conceito da história, 1940) /Tese 11

O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas ideias econômicas. E uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política. A antiga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como "a fonte de toda riqueza e de toda civilização". Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser "o escravo de outros homens, que se tornaram... proprietários". Apesar disso, a confusão continuou a propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: "O trabalho é o Redentor dos tempos modernos... No aperfeiçoamento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode realizar o que não foi realizado por nenhum salvador". Esse conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo.

Entre eles, figura uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialistas anteriores a março de 1848. O trabalho, como agora compreendido, visa uma exploração da natureza, comparada, com ingênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos polos, que a água marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de uma natureza, que segundo Dietzgen, "está ali, grátis"."

*Walter Benjamin (julho 1892-setetembro 1940), ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica. Obras Escolhidas, volume 1, p. 222. Editora Brasiliense, 3ª Edição, São Paulo,1987.,

Marco Aurélio Nogueira* - Crise e transformação da democracia

- O Estado de S.Paulo

Um governo reacionário e negacionista agravou tragicamente o que já estava ruim

A mudança constante é companheira de viagem da democracia. Quanto mais complexas ficam as sociedades, mais se acentua a dinâmica democrática e aumentam suas tensões internas.

Isso dificulta a compreensão da “crise da democracia”, hoje proclamada mundo afora. Aquilo que sempre se transforma não estaria em crise permanente, reorganizando-se sem cessar? Se novos atores entram em cena e as instituições precisam se adaptar aos novos ambientes socioculturais, por que a democracia permaneceria “estável”?

Aquilo que se transforma não o faz necessariamente em sentido positivo. Crises não são produtos automáticos: podem derivar, por exemplo, de um golpe ditatorial, que silencia o que estava em mudança e altera o fluxo da vida. Os novos tempos podem ser sombrios, desorganizar mais que organizar, fazendo as “novidades” acentuarem o que não funciona a contento, implicando que as instituições e as práticas políticas não produzam bons resultados.

A democracia está hoje desafiada. Há uma crise no plano sistêmico, institucional, provocada pela disjunção entre a vida e os sistemas, pela “desconstrução” dos partidos e das lideranças políticas. As organizações políticas tradicionais e o modo usual de fazer política colidem com o modo como as pessoas vivem. O “sistema” não entrega o que dele se espera. As injustiças, a desigualdade, o racismo, o sexismo, que se evidenciam sem parar, fazem a cidadania entrar em atrito aberto com o que está instituído. Sempre foi assim, mas nos últimos anos, ao lado do aumento da insegurança e do medo paranoico, houve uma ampliação da insatisfação e da disposição de contestar.

Merval Pereira - Cada qual no seu quadrado

- O Globo

O fato de o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ter defendido a necessidade de ser aprovada uma Proposta de Emenda à Constituição para organizar a participação de militares no Poder Executivo, em entrevista à revista Época, demonstra que essa ainda é uma questão não resolvida no nosso presidencialismo, pois foi exacerbada no governo Bolsonaro, que mais que dobrou a participação de militares, da ativa e da reserva, em funções gratificadas na máquina pública.

“Quem quiser vir no futuro para o governo, vai precisar, sem dúvida nenhuma, caminhar automaticamente para a reserva", afirmou. A questão é tão delicada que Rodrigo Maia considera mais prudente, como muitos militares exercem função de ministro, esperar “para não parecer que é contra o ministro A ou ministro B, ou assessor A ou assessor B”.

Para o presidente da Câmara, “não é bom para as Forças Armadas, não é bom para o Brasil” que essa situação persista. Poderíamos aproveitar a oportunidade e incluir nessa PEC dos militares também a necessidade de um parlamentar abrir mão de seu mandato se quiser fazer parte de outro Poder, no caso o Executivo. Da mesma forma que se exige de um membro do Poder Judiciário, como aconteceu com o então juiz Sérgio Moro, que teve que abandonar a carreira para ser ministro da Justiça de Bolsonaro.

Como já escrevi aqui, um congressista faz parte de um poder, o Legislativo, que não tem chefe. Um deputado, um senador, não é subordinado a nenhum chefe. Não pode ser demitido por chefe nenhum. Muito menos pode ser subordinado ao simples chefe de outro poder, o Executivo. A independência de poderes legítima impediria que um deputado ou senador americano seja ministro. Se quiser ser ministro, tem de renunciar ao seu mandato de legislador e virar auxiliar do presidente.

Ricardo Noblat - Bolsonaro está à beira de um ataque de nervos

- Blog do Noblat | Veja

Sente-se censurado e teme a reação dos seus devotos

Até quando o presidente Jair Bolsonaro suportará calado o que considera um ataque direto ao que já chamou mais de uma vez de “minha mídia”? Ou foi a “minha imprensa”? Os que têm acesso a ele sussurram que Bolsonaro está indignado com mais uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que conduz ali o inquérito sobre as fake news.

Confinado no Palácio da Alvorada depois de testado três vezes positivo para o coronavírus, sem ter com o que se distrair a não ser correr atrás de emas com uma caixa de cloroquina na mão para ser fotografado, Bolsonaro reagiu como de costume com palavrões quando soube que contas de seus devotos no Twitter e no Facebook foram tiradas do ar por ordem do ministro.

Bons tempos aqueles em que se sentia à vontade para enfrentar de peito aberto o Congresso e o Judiciário – e quantas vezes não o fez provocando crises? Em 30 de abril último, por exemplo, baixou o cacete em Alexandre por ter impedido a posse como diretor-geral da Polícia Federal de um delegado que ele indicara. Bolsonaro chegou a ameaçar, furioso e desafiador:

– Tirar em uma canetada, desautorizar o presidente da República dizendo em impessoalidade… Ontem, quase tivemos uma crise institucional, quase, faltou pouco.

Marco Antonio Villa - O custo Bolsonaro

- Revista Istoé

Se essa política econômica for mantida, nosso agronegócio não poderá ampliar seus mercados no exterior

O custo Bolsonaro está a cada dia mais presente. No campo econômico seus efeitos são evidentes. Todos os índices demonstram que a economia foi duramente atingida e o processo de recuperação será lento. O PIB, por exemplo, terá neste ano a maior queda da história republicana.

E, nada indica que poderemos voltar a um crescimento sustentável antes de 2024. O que poderá ocorrer é uma tímida recuperação, mas sem condições de enfrentar as demandas sociais oriundas, especialmente, dos efeitos da pandemia. Se, internamente, o panorama econômico-social é preocupante — com a queda da renda per capita, o aumento da desigualdade social e a disparada da taxa de desemprego —, externamente o Brasil passou a ser um Estado-pária.

Murillo de Aragão - Os meios, os fins e a democracia

- Revista Veja

A Lava-Jato deve abandonar o “lavajatismo” e operar dentro da lei

Não há dúvida de que a Lava-Jato causou um impacto importante na vida institucional do país. Tampouco existe dúvida de que muitos esquemas de corrupção foram desvendados e punidos a partir do seu trabalho. Sem a operação, bilhões de reais não teriam sido recuperados, nem dezenas de políticos corruptos teriam sido investigados e sentenciados, com outro tanto de pessoas.

No entanto, há pontos polêmicos da operação que foram minimizados por causa do velho chavão de que os fins justificam os meios. E, a partir daí, em alguns aspectos relacionados ao tema, criou-se um vale-tudo que tem como vítimas a Constituição e o direito.

Um dos males foi o de, com o generoso apoio da imprensa, institucionalizar-se como se fosse algo maior e mais importante do que as próprias instituições. Por esse raciocínio, já que suas ações eram contra o establishment, sua atuação poderia propor um novo padrão institucional.

Ironicamente, todo o sucesso deveu-se tanto às leis existentes quanto ao establishment político e institucional, que deu liberdade, algumas vezes exces¬siva, para a Lava-Jato operar.

Outro mal foi testar, sob imensa complacência cívica e institucional, os limites do direito de forma ativa e continuada. E, por meio da midiatização dos processos investigativos e da institucionalização de suas forças-tarefa, constranger as esferas superiores a sancionar suas diretrizes.

Demétrio Magnoli* - Cassar o registro do PLJ

- Folha de S. Paulo

Partido da Lava Jato precisa ser extinto para se preservar um sistema judicial apolítico

O mundo dá voltas. No auge da Lava Jato, entre o impeachment de Dilma e a prisão de Lula, os porta-vozes informais da operação exigiam a cassação do registro do PT.

Hoje, o cerco que se fecha em torno de Deltan Dallagnol sinaliza a cassação do registro inexistente do Partido da Lava Jato (PLJ). Nem a ascensão de Luiz (In) Fux (we trust) à presidência do STF parece capaz de evitar o desenlace.

O primeiro ato significaria uma violação dos direitos políticos de milhões de eleitores. O segundo é um imperativo democrático e, ainda, um pressuposto indispensável para o combate à corrupção.

O PLJ tem candidato presidencial —Sergio Moro— e conserva uma sombra de sua antiga aura em setores políticos como o PSL, o Podemos e o Novo. Mas sua estrutura orgânica é o “Partido dos Procuradores” —isto é, a corrente liderada por Dallagnol que organiza uma parcela do Ministério Público e exerce influência difusa entre juízes e policiais federais.

Moro tem direito, como qualquer brasileiro adulto, de disputar as eleições presidenciais. Mas o PLJ precisa ser extinto, em nome da preservação de um sistema judicial apolítico.

Hélio Schwartsman - Mandem a conta para o Jair

- Folha de S. Paulo

Presidente deve ser responsabilizado pelos estoques de cloroquina inutilmente acumulados

Não é assim tão difícil de entender. Estou seguro de que todos, presidentes e militares incluídos, se se esforçarem um pouquinho, conseguem.

Se você quer saber se a droga X é efetiva para tratar a doença Y, deve recrutar um número tão grande quanto possível (de preferência milhares) de pacientes da moléstia e dividi-lo aleatoriamente em dois grupos. O primeiro, chamado de grupo de tratamento, tomará a droga. O segundo, o grupo controle, não. Idealmente, receberá um placebo.

Aí é só esperar um tempinho e comparar os desfechos dos dois grupos. Se a proporção dos pacientes que se curaram (ou que sobreviveram, que tiveram menos complicações etc.) não for maior entre os que tomaram a droga do que entre os que não a tomaram, isso é um sinal de que ela não funciona.

Julianna Sofia – Não sei nem quero saber

- Folha de S. Paulo

Presidente é um homem com pouco conhecimento das coisas

Jair Bolsonaro é um homem com pouco conhecimento das coisas. Na quinta-feira (23), depois de voltinhas de motocicleta pelos jardins do Alvorada e de um colóquio, sem máscara, com funcionários da limpeza, o presidente infectado proseou com apoiadores que o pajeiam às portas do palácio: "Não tem como evitar morte no tocante a isso [Covid]. No Brasil ninguém morreu, que eu tenha conhecimento, por falta de atendimento médico. Todos os recursos o governo repassou para estados e municípios".

Cenas excruciantes de usuários do SUS na fila por uma vaga nas unidades de saúde em estados que atingiram ou estão próximos do colapso do sistema público tornaram-se perversamente banais. Morre-se à espera, embora o presidente da Replúbica afirme não saber.

Morre-se também porque hospitais lotados e alta ocupação de UTIs fazem com que a rede pública priorize o atendimento de quadros graves, deixando desassistidos casos menos severos que tendem a se complicar. Não à toa, esse é um dos fatores que levam a taxa de cura nas instituições privadas a ser maior que nas públicas, como revelado pela Folha. Em média, 51% dos doentes do sistema privado sobrevivem. No SUS, 34%.

Alvaro Costa e Silva - A cara do Rio está sumindo

- Folha de S. Paulo

Nem os botequins mais vagabundos resistem à crise, à pandemia e à prefeitura

Segue a lista de alguns bares e restaurantes que, com a pandemia, fecharam: Hipódromo, Aconchego Carioca, Baródromo, O Navegador, Fellini, Espírito Santa, South Ferro, Kalango, Comuna, Ráscal, Pizzaria Braz, Mosteiro, Esquimó. Outros estão mantidos por aparelhos: Villarino, Fiorentina, Cervantes, Rio Minho, Nova Capela, Luiz, Salete, Toca do Baiacu. Sem contar aqueles menos famosos ou tradicionais, desconhecidos por quem não é local --"os botequins mais vagabundos" lembrados na canção de Aldir Blanc.

Registre-se o falecimento do Almara, os melhores preços da praça da Bandeira, pouso de mendigos, militares da reserva, viciados em turfe, prostitutas. Um espaço no balcão era reservado para vender as bugigangas que frequentadores expunham para ganhar algum.

O fim do Hipódromo —que será substituído por um boteco do tipo pé-limpo (argh!)— atingiu os boêmios de cabelos brancos, o pessoal que nos anos 90 não perdia uma Segunda Sem Lei no Baixo Gávea. Era um bar de "tribos", como se dizia na época: a da música, a das artes plásticas, a do teatro, a do cinema, a da poesia --e a da azaração. "A Confeitaria Colombo da minha geração e uma versão analógica do Tinder", tuitou o fotógrafo e cronista Leo Aversa.

Ascânio Seleme - Lei do Gerson

- O Globo

Tentativa de Bolsonaro de posar como vitorioso na aprovação do Fundeb me lembrou um velho comercial de cigarros

A tentativa do presidente Jair Bolsonaro de posar como vitorioso na aprovação do Fundeb me lembrou um velho comercial de cigarros em que o Gerson, ex-craque da Seleção de 1970, terminava dizendo que o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo. O governo, através de seu ministro da Economia, Paulo Guedes, e com o apoio de um dos principais líderes do centrão, deputado Arthur Lira, tentou alterar a emenda, transferindo recursos da educação básica para o Renda Brasil. O objetivo era financiar com dinheiro do Fundeb seu programa de clientelismo. Ao ver que não conseguiria aprovar a manobra, o governo tentou adiar a votação. Perdeu também.

E então, como quem não quer nada, Bolsonaro foi passear nos jardins do Alvorada e disse aos apoiadores que se aglomeravam ali que conseguiu uma nova vitória na Câmara. Coisa de louco, ou de esperto. Como as palavras voam e seus seguidores acreditam em tudo, o presidente mentiu descaradamente. “Meu governo conseguiu mais uma vitória ontem, aprovamos o Fundeb e o Senado deve seguir o mesmo caminho”. Neste ponto ele foi interrompido por duas pessoas que exclamaram um “Graças a Deus!” e um “É isso aí!”. Suspeito que as duas não sabem sequer o que significa o Fundeb, mas como acreditaram que foi mesmo uma vitória de Bolsonaro, aplaudiram.

O governo se omitiu na negociação do Fundeb ao longo de toda a sua tramitação na Câmara. Só meteu o seu bedelho quando ele foi ao plenário para votação. Aí quis mudar o texto, subtraindo recursos para fazer assistencialismo com dinheiro dos meninos do ensino público. E se deu mal. Mas Bolsonaro, um reconhecido esquizofrênico dado a alucinações e delírios, contou uma outra história para a claque do Alvorada. “Estamos aumentando a participação do Estado, coisa que o PT podia ter feito lá atrás e não fez. Aumentamos a contribuição do Estado com votação quase unânime”, disse o chefe do governo que quis reduzir os repasses.

Entrevista| Adam Przeworski: “A Democracia brasileira está em risco com Bolsonaro”

A Adam Przeworski, professor de política e economia da Universidade de Nova York e autor do livro “Crises da Democracia”

Felipe Machado | Revista Istoé

O professor de Política e Economia da Universidade de Nova York (NYU), Adam Przeworski, tem uma definição bastante peculiar de democracia. Não menciona a maioria dos eleitores ou sequer a vontade popular. É um conceito simples e direto: “democracia é um regime em que os governantes deixam o poder quando perdem as eleições”. As “Crises da Democracia”, título de seu livro mais recente, publicado pela Zahar, nascem justamente da falta de transparência nesse quesito. O conceito ainda é válido, mas há áreas cada vez mais subjetivas nessa equação. Governantes como Vladimir Putin (Rússia) e Recep Erdogan (Turquia), entre outros, chegam ao poder de forma democrática, mas, uma vez lá, promovem mudanças nas legislações de seus países para adequar a lógica eleitoral às suas agendas pessoais. Com táticas que provocam o enfraquecimento das instituições, buscam calar a imprensa independente e asfixiar a oposição, reduzindo os riscos de derrota em uma eleição – e, consequentemente, a perda do poder. Segundo Przeworski, a democracia brasileira também corre riscos com o presidente Jair Bolsonaro. “Sempre pensei que a democracia brasileira era extraordinariamente forte”, afirma o professor. “Há uma crise no Brasil que terá que ser resolvida, de uma maneira ou de outra.”

• A democracia brasileira corre algum perigo nos dias de hoje?

Sim. A democracia brasileira está em risco com Bolsonaro. Sempre pensei que ela era forte. A eleição de Lula foi um evento sem precedentes, uma vez que a distância entre ele e Fernando Henrique Cardoso era muito grande. Uma alternância de poderes tão radical dificilmente seria aceita nos EUA. Mas Lula venceu a eleição, assumiu o cargo, governou. Fiquei surpreso. Mas o ódio contra o PT se tornou tão intenso que a presidente Dilma teve de ser removida. A rejeição do resultado da eleição por Aécio Neves já havia sido uma bomba contra as instituições. Há uma crise no Brasil que terá que ser resolvida, de uma maneira ou de outra.

• Após assumir, Lula declarou que havia recebido uma “herança maldita”. Foi o início da polarização?

Sim, Lula criou um antagonismo onde não havia antes ou havia menos. FHC foi responsável por muitos programas sociais. Lula veio com uma posição antagônica, mas manteve os programas, apenas mudou os nomes. Era como se o governo antes não tivesse feito nada e ele estava fazendo tudo do zero. Não concordo com essa posição.

• Não tivemos golpe militar, mas as Forças Armadas ocupam parte do governo. Como o senhor vê isso?

Míriam Leitão - Vamos falar de negócios

- O Globo

O interessante na conversa dos executivos dos três maiores bancos privados com o vice-presidente Hamilton Mourão é que eles disseram que não estavam ali para falar de responsabilidade socioambiental. Queriam tratar do “negócio bancário”. Avisaram, assim, que o assunto da conversa não era a lista de boas ações, mas a sustentabilidade como centro do negócio na Amazônia. Se estiverem falando sério, terão que exigir rastreabilidade do gado, não poderão financiar rodovias e hidrelétricas que agridam o meio ambiente ou ameacem as comunidades indígenas. A lista de mudanças é grande e, se a seguirem, acabarão batendo de frente com o governo.

O ministro do Meio Ambiente ficou à deriva na reunião, repetindo coisas como “adote um parque”, depois de ter ameaçado todos eles por um ano e meio. O vice-presidente ouviu os banqueiros com atenção e fez de conta que ali não havia um problema. A ministra da Agricultura disse a este jornal que há uma “orquestração” contra o Brasil e defendeu a fala de Ricardo Salles sobre passar a boiada, com o estranho argumento de que era uma reunião “fechada” e “interna”. Era a mais alta instância do Executivo. Portas fechadas não autorizam ilícitos.

Há um conflito direto entre a proteção da Amazônia e o projeto Bolsonaro. Ou o governo tem a “grandeza moral de se retratar” ou continua valendo tudo o que o presidente e seu ministro falaram e fizeram neste um ano e meio e que levaram à destruição de dez mil km2 de floresta no ano passado. Na quinta-feira, Bolsonaro voltou a mostrar seu entendimento torto no assunto e culpou indígenas e caboclos pelas queimadas. É obra dos grileiros, como se sabe.

Bradesco, Santander e Itaú-Unibanco são competidores. Se fizeram um plano conjunto é porque sabem o que está acontecendo no mundo deles, o do capital. Sem isso, terão dificuldade em qualquer operação financeira em que a marca Brasil estiver envolvida. Haverá menos capital e o dinheiro será mais caro para o país, mesmo neste tempo de muita liquidez e juros negativos no mundo. O que os fundos vêm avisando há algum tempo, e estão sendo mais claros desde Davos, é que as suas regras de conformidade impedem o investimento em países que destroem florestas e colocam em risco os indígenas. Preservar a Amazônia e proteger os povos indígenas é também do máximo interesse nacional.

Adriana Fernandes* - Os caminhos da reforma tributária

- O Estado de S.Paulo

O ambiente favorável de hoje ainda não é o daquela situação em que se diz 'agora vai'

É inegável que reforma tributária ganhou novo impulso com o envio da proposta do governo esta semana ao Congresso. Foram muitos meses de espera para que o ambiente político estivesse amadurecido para o avanço das negociações.

Nem é preciso dizer que a recessão econômica no rastro da pandemia da covid-19 e a necessidade de retomada estão empurrando à força essa agenda de mudança tributária, considerada até mesmo mais complexa do que a reforma da Previdência pelos atores envolvidos com forças dispersas e poderosas do setor produtivo, sistema financeiro e políticas. Vide a gritaria geral do setor de serviços.

Mas para muitos que acompanharam, nas últimas duas décadas, de perto o front das negociações das inúmeras tentativas de reforma tributária, como esta colunista, é possível perceber que o ambiente favorável de agora ainda não é o daquela situação em que se pode dizer “agora vai”.

Foi assim com a reforma da Previdência no governo Bolsonaro depois do terreno semeado pelo governo Temer. A construção política em torno da reforma é ainda titubeante, com as forças divididas em frentes de interesse dispersos ainda sem convergência. O envio do projeto do governo obriga uma resposta do Congresso.

Por muito pouco, ao longo dos últimos anos, estivemos próximos desse momento. Na maioria dessas vezes, interesses políticos deixaram a reforma escapar pelas mãos. A última vez que o Executivo chegou próximo de ter os votos necessários para a aprovação da reforma foi em 2012. Já tem oito anos que isso aconteceu!

Marcus Pestana - Modismos e estrangeirismos na pandemia

Quando este artigo for publicado, infelizmente já teremos perdido para a COVID-19 oitenta e cinco mil vidas brasileiras. É preciso que a sociedade brasileira amadureça uma reflexão sobre porque somos um ponto totalmente fora da curva. Afinal, temos 2,7% da população mundial e totalizamos 13,5% das mortes. Algo de muito errado aconteceu dentro de nossas fronteiras.

Neste momento dramático, a arte e o humor têm sido um refúgio para atenuar o sofrimento coletivo. Como não chorar de rir com Bruno Mazzeo e seu “Diário de um Confinado”, ou com Marcelo Adnet e seu “Quarentena” ou ainda com a “Sala de Roteiro” de Antônio Prata, Fernando Meirelles e excepcional elenco? Como não se encantar com os shows virtuais de Milton Nascimento, Mônica Salmaso e tantos outros ou com a descoberta de novos talentos como Vanessa Moreno? Ou mesmo com a preguiça inteligente de Caetano Veloso em gravar a sua participação? Ainda bem que, no presente caso, a arte não imita a vida.

Tenho falado de assuntos áridos. Mas hoje resolvi compartilhar certo incômodo pessoal com os modismos e estrangeirismos destes tempos de pandemia.

Confesso que sinto certo frio na coluna quando ouço alguém falar sobre o “novo normal”. Mesmo as grandes rupturas históricas produziram mudanças imediatas no arranjo do poder ou na estruturação da economia. Mas quando falamos de mudanças comportamentais, sociais e culturais, o buraco é mais embaixo. Não estou convencido de que haverá um “novo normal” com pessoas mais solidárias e um mundo mais globalmente fraterno.

O Bolsonaro imaginário e o real – Editorial | O Estado de S. Paulo

Votação do Fundeb é o retrato do governo de um presidente que só trabalha para se reeleger e proteger sua prole

Nem os parlamentares mais fiéis ao presidente Jair Bolsonaro conseguem entender os rumos do governo. A deputada Bia Kicis (PSL-DF), bolsonarista acima de qualquer suspeita, foi dispensada do cargo de vice-líder do governo no Congresso porque votou contra a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) – exatamente como parecia ser o desejo do Palácio do Planalto até pouco tempo atrás.

O governo menosprezou o projeto de renovação do Fundeb o quanto pôde, considerando-o “demagógico”, conforme avaliação feita no início do ano pelo então ministro da Educação, Abraham Weintraub, de triste memória. Na ocasião, o ministro informou que o governo apresentaria sua própria proposta, o que jamais aconteceu.

À medida que ficava claro que o Congresso votaria o novo Fundeb mesmo sem qualquer participação do governo, os deputados que integram hoje a base governista tentaram adiar a votação, mas foram atropelados. Houve então uma negociação de última hora realizada por articuladores do governo para que o projeto, amplamente apoiado pela opinião pública e por especialistas em educação, tivesse afinal alguma digital de Bolsonaro. Só esqueceram de combinar com o punhado de deputados que votam com Bolsonaro faça chuva ou faça sol – entre eles a agora humilhada Bia Kicis.

“Foi uma votação quase unânime, 6 ou 7 votaram contra. Se votaram contra, eles têm seus motivos. Só perguntar para eles por que votaram contra”, disse o presidente Bolsonaro a respeito dos votos de seus fidelíssimos aliados. Já a propósito do projeto que seu governo tanto sabotou, Bolsonaro disse que “o governo conseguiu mais uma vitória” e que “a Câmara e o Executivo mostraram responsabilidade”.

Sem cura – Editorial | Folha de S. Paulo

Governo insiste na cruzada pela hidroxicloroquina, comprovadamente ineficaz

Alarga-se sem cessar o fosso entre a campanha do governo Jair Bolsonaro a favor do uso da hidroxicloroquina e os estudos que evidenciam sua ineficácia contra o novo coronavírus. Desta feita, com destacada contribuição de pesquisadores brasileiros para desautorizar o remédio dado como panaceia pelo presidente da República.

O maior trabalho sobre a droga já realizado no país, chancelado pelo prestigioso periódico New England Journal of Medicine, indicou que o medicamento, administrado sozinho ou associado com azitromicina, não promoveu melhora significativa na evolução de pacientes com sintomas leves ou moderados de Covid-19.

O estudo envolveu 667 infectados de 55 hospitais brasileiros, dos quais 504 tiveram diagnóstico para a doença confirmado. Além de a hidroxicloroquina não acarretar benefícios mensuráveis, alterações cardíacas e hepáticas foram mais frequentes em pacientes tratados com o composto controverso.

A insensata cruzada governista tem no presidente o principal garoto-propaganda da hidroxicloroquina, coadjuvado pelo Ministério da Saúde. Desviada de sua obrigação de agir com base em evidências e não nas preferências de Bolsonaro, a pasta se revela aplicada disseminadora dos supostos poderes curativos do remédio.

Postura anti-Ciência paralisa a Saúde – Editorial | O Globo

Bolsonaro força uso da cloroquina, e ministério desconhece falta de insumos vitais contra a Covid-19

O irresponsável passeio de moto de Bolsonaro — infectado pelo Sars-Cov-2 —, nos jardins do Alvorada, sem máscara, pôs em risco os garis também desprotegidos com quem ele conversou e produziu mais uma cena para ilustrar os desatinos que a postura anti-Ciência do presidente tem causado em um Ministério da Saúde omisso diante da pandemia que já matou mais de 85 mil brasileiros.

A omissão e o desconhecimento técnico levam a decisões erradas, tomadas por um ministro interino que se eterniza claramente para atender Bolsonaro. E se eterniza porque o presidente entendeu que, ao nomear um general da ativa especializado em logística, teria espaço livre para pôr em prática, entre outros devaneios, sua ideia obsessiva de forçar a adoção da cloroquina contra a Covid-19. Ainda bem que não conseguiu suspender o distanciamento social, outra fixação sua, impedido pelo Supremo em boa hora.

A rejeição inamovível de Bolsonaro ao conhecimento científico se torna mais inaceitável a cada estudo sério que é publicado no mundo desaconselhando o uso da cloroquina contra a Covid-19. O último desses trabalhos, de um grupo de especialistas brasileiros, saiu no “New England Journal of Medicine” nesta semana. Diante do acúmulo de evidências, as sociedades brasileiras de Infectologia e Pneumologia recomendaram de forma clara ao Ministério da Saúde que abandone a orientação para o uso do remédio no tratamento da doença.

Sob comando de Eduardo Pazuello, o Brasil começou a formar um estoque de 11,5 milhões de comprimidos da droga, 4,4 milhões dos quais já haviam sido distribuídos até o início do mês. Daria para abastecer o mercado brasileiro de cloroquina por 38 anos, considerando seu uso recomendado pela Medicina (no tratamento da malária e de doenças autoimunes).

Barreiras eleitorais obrigam à fusão partidária e reduzem fragmentação – Editorial | O Globo

Fracasso do Aliança e articulação na esquerda são sinais de que já não é fácil criar e manter partidos

Partidos políticos começam a se movimentar para eleições em 5.570 municípios, com o primeiro turno marcado para 15 de novembro, e o segundo, no dia 29.

Será um pleito diferente, sem coligações partidárias na disputa por vagas nas Câmaras Municipais. É um novo passo para reduzir o nível de fragmentação parlamentar, dos mais altos entre democracias.

O país vive o ápice dessa desagregação. Há 33 partidos registrados, 27 representados no Congresso e mais 79 na fila de espera por homologação na Justiça Eleitoral.

Criar novo partido já não é fácil. Caso exemplar é o do presidente Jair Bolsonaro. Em três décadas na política, passou por nove, saiu do PSL pelo qual se elegeu em 2018 e há meses tenta, sem êxito, criar o Aliança.

O fim das coligações na eleição proporcional nos municípios significa, na prática, corte num dos incentivos à proliferação do fenômeno do nanopartidarismo no Legislativo.

Ajudará na diminuição do número de legendas sem representatividade, cuja existência se resume hoje ao acesso a fundos públicos e ao tempo de propaganda no rádio e na televisão — que não é gratuita, ressalve-se, mas paga pelos contribuintes.

Música | Gilberto Gil e Chico Buarque | Copo vazio

Poesia | Ievguêni Ievtuchenko - Os herdeiros de Stálin

O mármore se cala.
Calado o cristal reverbera.
As sentinelas caladas
bronzeiam-se contra o céu.
Um sopro exala das frestas:
o ataúde fumega
quando o carregam
fora do mausoléu.
Lento o caixão navega
Aflorando as baionetas.
Ele também se calava —
também!
silêncio sinistro.
Punhos embalsamados,
de dentro,
por uma greta,
fingindo-se de morto,
ele punha o olho fixo.
Queria lembrar-se bem
dos portadores da escolta:
recrutas
de Riazan e de Kursk,
para depois,
cobrando forças,
cair sobre os temerários,
ressurreto do ataúde.
Alguma coisa ele maquina,
em decúbito,
como quem repousa.
E eu apelo aos Poderes do Estado:
“Dobrem,
tresdobrem
A guarda dessa lousa.
Que Stálin não se restaure,
e com Stálin o passado.
Não me refiro ao passado
grandioso,
de glória:
da Turksib¹,
da Magnitka²,
e da bandeira em Berlim.
Aquele que toca a mim
denunciar agora,
é o passado do povo em descaso,
das intrigas,
dos réus sem crime.
Honestos semeamos a seara.
Fundimos o ferro.
Honestos
Formamos fileiras de soldados.
Mas ele nos temia,
e foi seu erro:
crendo no grande alvo
não acreditara
nos meios justos de alcançá-lo.
Ele era precavido,
Perito nas manhas do combate.
Deixou-nos pelo globo
herdeiros de sobra.
Veja:
de um telefone instalado na lápide,
Stálin
instrui Enver Hodja.
Até onde vai
Esse fio funéreo?
Stálin não desiste.
Não toma a morte a sério.
Fora do Mausoléu
agora
ele está sim,
mas como arrancá-lo
dos herdeiros de Stálin?
Alguns cultivam rosas em seus retiros,
em sigilo almejando
que o olvido chegue a termo.
Outros
Injuriam Stálin nos comícios,
mas à calada
acalentam
a volta aos velhos tempos.
O enfarte,
é claro,
Apavora esses herdeiros.
Eles,
os ex-vassalos,
Estão inquietos:
não gostam desta era
de campos sem prisioneiros
e poetas a declamar
para salas repletas.
O Partido
me ordena
que eu não cale mas fale.
E mesmo que alguns repitam:
“Deixe disto!”,
eu insisto.
Enquanto neste mundo houver herdeiros de Stálin,
para mim,
no Mausoléu,
Stálin ainda resiste.

*Tradução do russo por Haroldo de Campos
¹ Sigla da estrada de ferro Turquestão-Sibéria (“Turkestan” e “Sibir”).
² Diminutivo carinhoso de Magnitogorsk, a cidade surgida nos Urais durante a execução do Primeiro Plano Quinquenal, como grande centro siderúrgico.
O poema é de 1962.