A travessia da Cordilheira foi uma festa. A
brancura da neve e a liberdade eram um espetáculo novo para nós turistas
compulsórios. Jamais em minha vida havia visto um pé de maçã ou pêra e há muito
não me dava ao luxo de conversar tão espontaneamente com as pessoas, como
sempre gostei. Deslumbravam-me os claros daquela montanha tão branca. Os
“claros” de que falo eram recantos, espécies de oásis com casinhas de madeira
próprias para o frio, animais ao lado presos em cercado, uma ou duas árvores.
Passamos o Aconcágua. Aquele mesmo das aulas de geografia, quase chegando no
céu. Pequenos lagos se formavam com as águas da neve derretida pelos fracos
raios do sol do outono, onde os espaços da montanha permitiam. Eram como
espelhos azuis na minha fantasia cor-de-rosa.
Descemos em Los Andes, primeira cidade do
Chile para quem escolhe o caminho da cordilheira e pegamos um ônibus para Santiago.
Uma hora e meia de percurso, mais ou menos, feito à noite. E era noite avançada
quando descemos na velha estação daquela cidade que tanto amaria depois. As
ruas estavam desertas e cheias de espaços sombrios, mas eu já não sentia medo.
Silvio Rodriguez, o talentoso compositor
cubano, atingiu em cheio o coração de todos nós os ex-exilados da grande e
generosa pátria de Salvador Allende, com a letra de sua canção composta após o
Golpe Militar:
“Yo pisaré las calles nuevamente
De lo que fue Santiago ensangrentada
Y en una hermosa plaza liberada
Me detendré a llorar por los ausentes”(...)
Uma mulher morena de estatura média, cujo
nome não consigo lembrar, membro do Comitê Central do Partido Comunista
Chileno, foi a pessoa que, a pedido de Armênio Guedes, marido de Zuleika
Alambert, conseguiu um médico (dr. Pozo) e um hospital para meu filho que
necessitava dramaticamente de ajuda naqueles primeiros dias de nosso exílio. O
hospital era o Calvo Makeña, onde trabalhava o médico no setor de oncologia.
Meu filho chegara a Santiago no meio de uma
crise que se iniciara na Argentina. Internado, apesar do tratamento, piorava a
cada dia. Certa ocasião o médico nos avisou que necessitava sangue com
urgência. Orientada por chilenos amigos, pus anuncio na rádio Corporación que é muito popular. “Niño
brasileño, internado em el Hospital Calvo Mackeña, necessita sangre etc. etc...”
Muitos brasileiros e chilenos atenderam ao apelo. Segundo as enfermeiras do
setor, fez-se uma fila à porta do Hospital para doar sangue para “el niño
brasileño”.
Outras medidas foram tomadas como a
importação de medicamentos pela Lan Chile através da Secretaria de Relações
Internacionais do Partido Comunista Chileno. Tudo inútil. Meu filho faleceu na
madrugada de 23 de junho de l972, um mês e meio depois de chegarmos ao Chile,
no momento exato em que a colônia brasileira em Santiago celebrava a festa
junina. Muitos saíram direto da festa para o velório. Pela manhã já havia tanta
gente que não se podia mais entrar na capela mortuária. Longe de nosso país e
de nossos familiares o carinho daquelas pessoas que quiseram estar conosco
naquele momento, fez com que nos mantivéssemos de pé, inteiros, apesar do
sofrimento inevitável. Lá estava a figura de Ulrik Hoffman que foi quem deu a
cobertura financeira para o funeral. Um piauiense, que, abraçado a sua mulher,
uma nissei paulista, chorava muito no instante em que o corpo de meu filho
baixava à sepultura, é nosso amigo até hoje. É o professor da UFRRJ, Raimundo
Santos e sua mulher Akiko Santos.
Deixamos o Cemitério General de Santiago
caminhando lentamente sobre as últimas folhinhas que o outono derrubara das
árvores. Era o primeiro dia do frio inverso chileno.
Janeiro, 1984
*Crônicas, contos e poemas, p, 57 Abaré
Editorial / Fundação Astrojildo Pereira (FAP) – Brasília, 2008