Cultura/ O Estado de S. Paulo
Monólogo que estará de volta às livrarias e ao palco estimula a exumar a esmo nossas próprias lembranças, sem excluir os conhecimentos de pouca ou nenhuma utilidade
Gerúndio do verbo memorar, que herdamos do latim, memorando significa “que deve ser lembrado”. Serviu de título a uma experiência literário-teatral de Geraldo Mayrink e Fernando Moreira Salles, editada em livro há 26 anos e na época encenada com Irene Ravache e Paulo José, em palcos distintos, pois Memorando é um monólogo. Expandido por Moreira Salles (Mayrink morreu em 2009), o afetuoso solilóquio mnemônico estará de volta às livrarias e ao palco na próxima semana.
Inspirado nas assemblages de reminiscências urdidas por Joe Brainard (I Remember) e Georges Perec (Je Me Souviens), é um Amarcord verbal, com recordações pessoais que também marcaram a história e a memória coletiva de uma geração, dos anos 50 a 80. “Um drama sem drama da busca de referências comuns”, na definição de um dos autores, pontuado do início ao fim com um antifônico “Eu me lembro”.
Suas madeleines reavivam migalhas de relevantes ocorrências e abobrinhas do cotidiano dormentes no córtex pré-frontal de muitos de nós e, de quebra, nos estimulam a exumar a esmo nossas próprias lembranças. Com ênfase em momentos felizes, que Freud afirmava ser uma necessidade incontrolável do ser humano. Sem no entanto excluir os momentos graves e muito menos os neutros, como, por exemplo, os conhecimentos de pouca ou nenhuma utilidade pela vida afora, como “a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa” e os afluentes, nas duas margens e em ordem, do Rio Amazonas.
Alguns highlights de Memorando:
“Eu me lembro que nem tudo que reluz é ouro e nem tudo que balança cai”.
“Eu me lembro que, no jogo do bicho, vale o que está escrito.”
“Eu me lembro que, criança, quando não terminava minha comida, lembravam-me dos milhões de chinesinhos que morriam de fome. Fora a culpa, por via das dúvidas, nunca entendi por que não terminar meu prato ia resolver alguma coisa.”
“Eu me lembro, pequeno e doente, que achava que o que fazia baixar minha febre era a mão da minha mãe passando em minha testa.”
“Eu me lembro que os políticos de antigamente sabiam escrever.”
(Ao que eu acrescentaria: e também sabiam falar.)
E, já que me meti na brincadeira, vou em frente com este memorando de fabricação caseira:
Eu me lembro que, no cinema, rico ria à toa, os brutos também amavam, os bravos morriam de pé, os criminosos não mereciam prêmio, o homem mau dormia bem, o sol brilhava na imensidade, os homens preferiam as louras, tristezas não pagavam dívidas, a luz era para todos e da terra nasciam os homens.
Eu me lembro dela, na gafieira, toda certinha dentro de um vestido saco, tendo ao lado um cara fraco, mas não fui tirá-la para dançar.