domingo, 24 de maio de 2020

Bolsonaro mente – Editorial Folha de S. Paulo

Vídeo evidencia intento de intervir na PF e revela aparato pessoal de informação

O registro da reunião ministerial de 22 de abril, cuja divulgação foi liberada por decisão de Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, na sexta-feira (22), traz novas evidências conclusivas sobre o que já se suspeitava: o presidente Jair Bolsonaro mente.

Depois do vídeo, a versão presidencial de que queria interferir na sua segurança pessoal, e não na superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, torna-se completamente inverossímil.

Como demonstrou reportagem da TV Globo, menos de um mês antes da reunião Bolsonaro havia promovido o responsável por sua segurança e o substituído pelo então número dois na função.

No vídeo, o presidente fala textualmente: “Já tentei trocar gente de segurança no Rio, oficialmente, e não consegui. E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda (...) porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele. Se não puder trocar o chefe dele, troca o ministro. E ponto final. Não estamos para brincadeira”.

Tudo o que ocorreu depois da reunião se encaixa na narrativa do ex-juiz Sergio Moro. Não há dúvidas de que o presidente trata da PF, um órgão de Estado, quando promete ir até o fim para fazer valer a sua vontade antes que a sua família seja atingida.

O Estado paralelo de Bolsonaro – Editorial | O Estado de S. Paulo

Solução encontrada por Bolsonaro para desafiar limites a seu poder foi começar a criar um Estado paralelo, em que as normas não são as inscritas na Constituição

“É melhor já ir se acostumando”, dizia um dos slogans da campanha de Jair Bolsonaro à Presidência, em 2018, num infame jogo de palavras com o nome do candidato para advertir o País sobre o que estava por vir. E, de fato, parece que uma parte considerável dos brasileiros já se acostumou à chocante degradação moral liderada pelo presidente Jair Bolsonaro e escolheu ignorar ou relativizar as robustas provas de que ele não tem - como jamais teve - a menor condição de exercer a Presidência.

Em qualquer país civilizado, o teor da reunião do presidente com seus ministros no dia 22 de abril, tornado público por determinação judicial, teria escandalizado todos, não só pelos múltiplos delitos ali cometidos e revelados, mas por explicitar a transformação da Presidência da República em propriedade privada de Bolsonaro, da qual, como um monarca absoluto, imagina poder dispor como bem entender. Aqui e ali, no entanto, houve gente disposta a dizer que nada de mais se passou na reunião - nem crimes nem desafio às instituições, só alguns exageros verbais do presidente e de seus ministros mais entusiasmados, pouco comuns até em reunião de condomínio.

A corrosão na confiança dos investidores- Editorial | O Globo

Sob Bolsonaro, a Presidência se tornou o principal vetor de instabilidades na República

Não são muitas as certezas possíveis sobre o cenário brasileiro depois da pandemia. Uma delas, porém, é a de que o país vai precisar atrair investimentos externos para ajudar a alavancar o processo de recuperação da economia.

O governo tem insistido numa perspectiva otimista, assentada na venda de 36 empresas estatais a partir de agosto. Na lista oficial constam, entre outras, Eletrobras, Correios, Embrapa, Finep, Nuclep, Serpro, Dataprev e Casa da Moeda.

Em paralelo, acha possível a atração de até US$ 100 bilhões do setor privado para a área de petróleo. Argumenta com a disponibilidade de US$ 1,5 trilhão no mercado mundial.

Talvez fosse real na virada do ano, mas o mundo mudou com o vírus, e uma dose de realismo pode ser adequada. O Brasil encerrou 2019 como um dos quatro maiores receptores de investimentos estrangeiros diretos. Foram US$ 78,6 bilhões. Em março, no início da pandemia, o Banco Central refez projeções e estimou uma queda de 24%, para US$ 60 bilhões, neste ano. Poderá ser maior, devido ao recrudescimento da disputa por hegemonia entre Estados Unidos e China e das políticas protecionistas em vários países.

Já não basta oferecer condições favoráveis ao trânsito de capitais. Vai ser preciso firme sinalização sobre a estabilidade política, a segurança jurídica e o rigor na proteção ambiental — fator cada vez mais relevante nas decisões dos maiores fundos globais.

Merval Pereira - Coprolalia

- O Globo

O presidente Bolsonaro, na verdade, tem uma fixação com figuras escatológicas, especialmente quando está pressionado. O mais deprimente é ver-se como ministros procuram aproximar-se do presidente através de um linguajar vulgar

O grande escritor brasileiro Rubem Fonseca, notável por sua capacidade de relatar cruamente a violência física ou verbal de seus personagens que espelham uma sociedade corrompida moralmente, escreveu um livro de contos cujo título, “ , Secreções, excreções e outros desatinos”, trata de temas escatológicos em diversas dimensões.

Até mesmo chegou a criar uma palavra, “copromancia”, que dá nome a um dos contos, para definir a capacidade de fazer previsões analisando as próprias fezes. Lembrei-me dele vendo o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro, ao ouvir uma frase que, a princípio, não fez o menor sentido.

Referindo-se aos inimigos que estariam prontos a avançar sobre a democracia brasileira, Bolsonaro disse a certa altura: “O que eles querem é nossa hemorroida, a nossa liberdade”. A boca suja do presidente Jair Bolsonaro não chamou a atenção apenas dos brasileiros, ganhou dimensões internacionais. Os principais jornais do mundo noticiaram a dimensão politica do vídeo, que estava em jogo, mas deram destaque ao linguajar presidencial.

José Serra* - Limites, responsabilidades e governabilidade

- O Globo

A dimensão política dessa crise multidimensional se configurou no início da atual administração

O artigo do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, sobre “Limites e responsabilidades”, publicado no último dia 14 no “Estado de S.Paulo”, vem em bom momento. Justamente quando nos encontramos em uma tempestade mais que perfeita, na qual limites constitucionais, morais, econômicos e de segurança sanitária estão sob intensa pressão. E também porque abre as portas para um diálogo de alto nível, quando uns poucos, infelizmente, fazem ouvidos moucos e se excedem em palavras loucas.

O general Mourão tem razão em apontar o caráter político da atual crise e o papel primordial que o Estado nela desempenha. Entretanto, não podemos ignorar que a dimensão política dessa crise multidimensional se desencadeou no início da atual administração, tendo contribuído para um PIB que vem marcando passo com crescimento em torno de 1% ao ano.

Com efeito, o programa de reformas econômicas foi mal conduzido, desperdiçando o período de boa vontade de que os novos mandatários costumam gozar. O governo federal não apresentou uma proposta de legislação coerente e bem definida, tampouco prioridades claras. E os negociadores do Planalto no Parlamento encontraram um campo minado devido ao empenho do presidente da República em tornar pública sua recusa a aceitar a legitimidade dos demais Poderes do Estado brasileiro.

Resulta-se daí a queda na confiança de consumidores e investidores, sobretudo estrangeiros, o que, no primeiro trimestre deste ano, levou à retração de 1,95% do Índice de Atividade Econômica (IBC-BR), considerado uma prévia da variação do PIB. Como as decisões dos consumidores e dos investidores se baseiam em expectativas que, assim como as causas, vêm antes de seus efeitos, não se pode atribuir a crise econômica à pandemia, cujos efeitos sobre a atividade econômica vieram depois. A crise política levou à crise econômica, que foi exponenciada pela crise sanitária.

Míriam Leitão - Ideia de Bolsonaro é inconstitucional

- O Globo

O que pensam sobre as falas de Bolsonaro um ministro do Supremo, um procurador do MPF e um general de alto escalão

A proposta do presidente Jair Bolsonaro de armar a população, na radicalidade que ele defendeu na reunião, se posta em prática, permitiria a formação de grupos armados, milícias, como há na Venezuela, e até uma guerra civil. O mais impressionante era que os oficiais, inclusive um integrante do Alto Comando, na ativa, estivessem vendo isso sem reagir. É inconstitucional a proposta do presidente. O Estado tem o monopólio da força, e ele é garantido pelas Forças Armadas. Bolsonaro quer que pessoas armadas saiam de casa para desrespeitar leis e determinações das autoridades.

Um ministro do Supremo com quem eu conversei ontem considera que essa é a parte mais relevante da reunião, não apenas por ser claramente inconstitucional, mas porque já há precedentes:

— Tem aquele fato anterior de revogação das portarias que permitiam a rastreabilidade de armas, balas e munições de uso exclusivo do Exército. Eles substituíram inclusive o responsável pelas portarias. Se você flexibiliza a rastreabilidade você beneficia os milicianos e grupos marginais. Essa é uma questão que precisa ser olhada com atenção. Já há uma ação do PDT no Supremo.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) tinha que tomar alguma providência, na opinião desse ministro.

Bernardo Mello Franco - A lógica da milícia

- O Globo

Bolsonaro levou a lógica da milícia para o governo. A função da Polícia Federal é proteger sua família e amigos. A tarefa dos ministros é defendê-lo do alcance da lei

O vídeo liberado pelo ministro Celso de Mello expõe as vísceras da extrema direita no poder. A gravação mostra como Jair Bolsonaro transportou a lógica da milícia para o governo. A função da Polícia Federal é proteger a família e os amigos do presidente. A tarefa dos ministros é defender o chefe do alcance da lei. “O que os caras querem é a nossa hemorroida!”, brada o capitão, antes de atacar prefeitos e governadores aos palavrões.

Bolsonaro comanda a reunião no Planalto como se estivesse num churrasco em Rio das Pedras. Entre berros e xingamentos, ele diz estar “se lixando” para a reeleição. Em seguida, avisa que a vitória de um adversário em 2022 pode levá-lo para a cadeia. “Se for a esquerda, eu e uma porrada de vocês aqui tem (sic) que sair do Brasil, porque vão ser presos”, ameaça. Todos os ministros estavam presentes, e nenhum deles se encorajou a retrucar.

A gravação reforça as suspeitas de interferência indevida na PF. “Eu não vou esperar foder a minha família toda de sacanagem, ou amigos meus”, diz o presidente. “Vou interferir e ponto final”, acrescenta. Dois dias depois, ele cumpriu a promessa. Demitiu o diretor-geral da polícia, à revelia do ministro da Justiça.

Dorrit Harazim – Talkey

- O Globo

Pouco apaziguante para um país que ultrapassara 330 mil casos de Covid-19 e um séquito de mais de 21 mil óbitos

A linguagem do decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em nada se assemelha ao idioma criado por Jair Bolsonaro para pregar a seus devotos. A sintaxe, o léxico, o conteúdo falam a dois Brasis cada vez mais estrangeiros. Na sexta-feira passada, porém, Celso de Mello se fez entender por todos ao lembrar que cabe ao Estado mandar apurar delitos apontados por “qualquer pessoa do povo”, mesmo que se trate de “alguém investido de autoridade na hierarquia da República”. Em outras palavras: nem o Mito está acima da lei, talkey? O causídico assinou dois despachos — bomba com poucas horas de intervalo —, autorizou a liberação quase integral do vídeo da polêmica reunião ministerial de 22 de abril último, e encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido de apreensão do celular de Bolsonaro e de seu filho 02, o vereador bissexto Carlos. As duas decisões são desdobramentos das investigações sobre a suposta interferência do presidente na Polícia Federal, denunciada pelo ex-ministro Sergio Moro.

A partir daí, o estado democrático de direito viu-se, mais uma vez, enroscado.

Com 48 horas de intervalo, o general de reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) também emitira dois comunicados à nação. O primeiro já teve sonoridade meio esquisita, embora pretendesse soar como afago aos historicamente inquietos. “Os militares não vão dar golpe. Isso não passa na cabeça dessa nossa geração... São provocações feitas por alguns indivíduos...”, garantiu o general durante uma live com o grupo Personalidades em Foco. Heleno acrescentou que deve isso à geração de seus instrutores, “vacinados por toda aquela trajetória de militares se intrometendo de uma forma pouco aconselhável, mas muitas vezes necessária, na política”. No segundo comunicado, em papel timbrado via Twitter, indignou-se com o pedido de apreensão e encaminhamento à PGR do celular presidencial. Considerou o pedido uma afronta à autoridade máxima, e uma interferência “inadmissível” do STF na privacidade de Bolsonaro e na segurança nacional. E assim sendo, alertava “as autoridades constituídas que tal atitude... poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

Ricardo Noblat - Ou os Bolsonaro passarão ou o Brasil faz, sim, por merecê-los

- Blog do Noblat | Veja

O que está por vir depois da histórica reunião ministerial

Logo após assistir aos principais trechos do vídeo sobre a reunião ministerial de 22 de abril último, a irmã de um amigo meu escreveu nas redes sociais: “Se antes era 100% bolsonarista, agora passei a ser 200%”. E daí? Bolsonarista de raiz era Bolsonaro e continuará sendo. Jogo jogado. Jamais se imaginou o contrário.

O que se discute: se bolsonarista de ocasião, depois do vídeo, poderá deixar de ser. E se bolsonarista há muito chocado com as atitudes do presidente que elegeu, abandonará Bolsonaro depois do que viu. Em síntese: é improvável que o vídeo tenha fortalecido Bolsonaro como alguns se apressaram a dizer. O contrário é o mais provável.

Em 2022 não haverá Lula candidato. Dificilmente haverá Lula preso para que seja outra vez martirizado por seus devotos. Com toda certeza, o candidato da oposição será mais de um. O do PT, se não for Fernando Haddad, o boneco de ventríloquo de Lula em 2018, será Haddad de cara limpa e com maior independência.

Até lá, o barco em que navega o atual desgoverno já terá batido no iceberg gigantesco que Bolsonaro admitiu no vídeo estar à vista de todos, inclusive na dele: uma recessão econômica sem paralelo na História do mundo e, aqui, à sombra dos efeitos para ele deletérios das milhares de pessoas mortas pelo Covid-19.

Quem, além dos seus de carteirinha, desejará se perfilar a um candidato tão comprovadamente tóxico? Que no seu primeiro mandato governou à base do venha a mim e à minha família o vosso reino, e que seja feita a nossa vontade, amém? Incapaz de lutar contra a morte e, sequer, de recolher os corpos dos mortos na batalha?

Roberto Romano * - Bolsonaro, o Absolutista

- O Estado de S.Paulo

Líderes bisonhos desejam, mas não possuem saberes para instalar uma ditadura

Jair Bolsonaro exibe notórios traços autoritários já desde antes de sua eleição. Elogia o regime instaurado em 1964 e a tortura, atua contra os direitos cidadãos e, sobretudo, zomba dos direitos humanos. Tais marcas são visíveis para todos, impossível ignorar discursos e gestos, incluindo as mãos prontas para acionar armas.

O projeto de poder que o conduz é simplório e demagógico, mas contém em seu bojo séculos de pensamento contrário à democracia, ao liberalismo, à modernidade. Mas somente no exercício do cargo máximo da República ele revela todo o ranço reacionário e liberticida que move o seu ânimo.

Em ato de que foi cúmplice, o presidente deu ultimato aos demais Poderes: ou seguem o seu ditado ou aceitam o peso das Forças Armadas, que o apoiam. Tal ameaça piora quando diz que a Constituição será obedecida e, notemos, ele é a Constituição. Com a frase Bolsonaro retoma as teses teológico-políticas do século 17 inglês, em especial as de Tiago I. Para aquele monarca, rex est lex (o rei é a lei). Desde aquele tempo ocorre a luta entre juízes independentes, Parlamentos e governos despóticos (B. Bourdin: Theological-Political Origins of the Modern State). Em cada lance histórico um deles obtém hegemonia sobre os demais. Em cada novo movimento de controle estatal surge um regime político diferente.

O programa de Montesquieu - por ele encontrado no diálogo As Leis, de Platão - sobre a harmonia política é um modelo a ser perseguido, nunca foi realizado. Quando a tese liberal democratiza o Estado, o puro modelo se aproxima dos fatos. Mas se a crise de poder deixa as instituições acéfalas, o Judiciário se imiscui ou o Parlamento tudo decide.

Vera Magalhães - O Inferno de Dante

- O Estado de S.Paulo

Reunião ministerial é a representação da obra do poeta nos tempos de pós-verdade

“Deixai toda a esperança, vós que entrais!” A inscrição aparece quando o poeta italiano Dante Alighieri cruza o Portal do Inferno em sua epopeia A Divina Comédia. Vale para quem se arrisca a assistir à representação da obra nos tempos de pandemia e pós-verdade. Sim, estou falando da reunião ministerial do governo Jair Bolsonaro de 22 de abril, para a qual o único adjetivo possível é dantesca.

O fato de que alguns críticos anestesiados por tanto horror produzido por este governo tenham conseguido minimizar o que se passou ali nos leva de novo à obra do poeta italiano: são pessoas que estão ali no Vestíbulo, pouco antes do Primeiro Círculo do Inferno.

É o lugar dos covardes, fracos e indecisos, no qual se encontram hoje um bom número de homens públicos, alguns pretensos formadores de opinião e uma parcela letárgica da sociedade.

Mas há os que já desceram a alguns dos Nove Círculos do Inferno percorridos por Dante em sua viagem. Nos seis primeiros estão os que cometem pecados involuntários, nos quais há culpa, mas não dolo.

Affonso Celso Pastore* - O iceberg, o navio, e o comandante

- O Estado de S.Paulo

Não há exagero em prever que os investimentos diretos vão desabar, chegando aos níveis mais baixos dos últimos 20 anos.

Quando o radar sinaliza um iceberg, o comandante adverte o timoneiro a mudar o rumo do navio. Mas pode ser tentado a mudar o timoneiro. Se após a pandemia retornarmos ao teto de gastos, como prega o atual ministro da Economia, o risco é mais baixo. Porém, se a curva de contágio do vírus demorar a achatar, como é provável, a recessão aumenta, minando o apoio da população ao presidente, e no lugar do atual ministro da Economia pode ser colocado algum adepto da cloroquina fiscal, aumentando os gastos públicos para fazer o País crescer. As consequências seriam a insustentabilidade da dívida pública e o aumento das saídas de capitais, que já vem ocorrendo.

O balanço de pagamentos é composto por dois grupos de contas: as contas correntes e a conta financeira e de capitais. A menos de erros e omissões, a diferença entre elas é o saldo no balanço de pagamentos. O Brasil quase sempre teve déficits nas contas correntes, que nunca deixaram de ser superados pelos ingressos de capitais – os investimentos estrangeiros diretos e em carteira (renda fixa e ações). Em 2007, antes da crise de 2008/09, tínhamos equilíbrio nas contas correntes, mas o ingresso de capitais pouco acima de US$ 80 bilhões gerou um superávit de US$ 80 bilhões no balanço de pagamentos, e o Banco Central elevou as reservas. Em 2011, devido à forte recuperação do crescimento, tivemos um déficit nas contas correntes de US$ 80 bilhões, mas os ingressos de capitais chegaram a um pico de US$ 160 bilhões, com novo superávit no balanço de pagamentos e um novo aumento das reservas. Nos últimos 12 meses, contudo, assistimos a um déficit nas contas correntes de US$ 50 bilhões, com um ingresso nulo na conta financeira e de capitais. Pela primeira vez, em décadas, temos um déficit no balanço de pagamentos, que nos últimos 12 meses já atingiu US$ 50 bilhões. Consequência: as reservas caem.

Rolf Kuntz * - O risco Bolsonaro é o mais grave no meio da pandemia

- O Estado de S.Paulo

A economia já estava mal e o desemprego era elevado antes de chegar o coronavírus

Tenham cuidado e levem a sério o presidente Jair Bolsonaro, assim como bala perdida, assalto com arma, excesso de velocidade, coronavírus e atentados à democracia. São riscos tão sérios quanto o desemprego, a devastação da Amazônia, a perda de mercados externos e a fuga de capitais. Nada disso é abstrato ou maldosamente hipotético. O risco Bolsonaro, incluída sua diplomacia, é preocupação diária nos mercados e fator constante de instabilidade cambial. Além disso, é uma sombra permanente sobre a política de saúde. Enquanto aumenta o contágio e se multiplicam as mortes atribuídas à covid-19, o presidente estimula as aglomerações, delas participa e frequenta manifestações golpistas. Empenhado em campanha pela reeleição e na defesa de interesses familiares, tenta interferir na Polícia Federal e pressiona governadores e prefeitos pela retomada imediata da economia.

Pode-se chamá-lo de risco Bolsonaro ou custo Bolsonaro. Qualquer das duas denominações é mais descritiva que presidente Bolsonaro. O termo Presidência remete à noção de governo, atividade quase sempre evitada pelo atual chefe do Executivo. Um ano depois de sua posse, o desemprego pouco havia mudado. No primeiro trimestre de 2019 os desocupados eram 12,7% da população ativa. No período de janeiro a março de 2020 eram 12,2%, ainda sem os efeitos da crise derivada da pandemia.

Em um ano a taxa de subutilização passou de 25% para 24,4% e a dos informais ficou estável. Quando a pandemia chegou, 12,9 milhões de pessoas estavam desempregadas, mas até esse momento o chefe do Executivo havia ignorado ou desprezado o problema.

Elio Gaspari - Uma reunião patética

- Folha de S. Paulo / O Globo

Chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas

A leitura da transcrição da patética reunião do ministério de Jair Bolsonaro exige algum tempo, mas chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas. Descontem-se os palavrões (37). Esqueçam-se as tolices (um dos maganos dizendo que o pico da epidemia parecia ter passado). Deixem-se de lado os delírios presidenciais. Sobra o quê? O ministro da Economia, Paulo Guedes, dizendo que leu o economista inglês John Maynard Keynes no original, insistindo nas suas “reformas estruturantes” e colocando duas propostas na mesa.

A primeira foi criativa, caso inédito de colocação do maoísmo a serviço dos cânones da universidade de Chicago. Ele propôs uma mobilização de jovens para que se formassem como aprendizes. Quantos? “Duzentos mil, trezentos mil”. Nas suas palavras: “O cara de manhã faz calistenia, canta o hino, bate continência”, ajuda a abrir estradas e “aprende a ser cidadão”. O doutor lembrou que a “Alemanha fez isso na reconstrução”. Em 1945 a Alemanha estava destruída e faminta, mas deixa pra lá.

Afora a ingenuidade dessa proposta de militarização do andar de baixo, Guedes expôs outra avenida para o progresso e novamente inspirou-se na Ásia. Nas suas palavras:

“O problema do jogo lá... nos recursos integrados [provavelmente ele disse “resorts”]. Tem problema nenhum. São bilionários, são milionários. Executivo do mundo inteiro. O cara vem, é... fazem convenções ... olha, a ... o ... o turismo saiu de cinco milhões em Cingapura pra 30 milhões por ano. (...) Macau recebe 26 milhões hoje na ... na China. Só por causa desse negócio. É um centro de negócios. É só maior de idade. O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem, — ele deixa aquilo lá, bebe, sai feliz da vida. Aquilo ali num ... atrapalha ninguém. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se foder. (...) O presidente fala em liberdade. Deixa cada um se foder do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se foder, pô! Não tem ... lá não entra nenhum, lá não entra nenhum brasileirinho”.

Vinicius Torres Freire - Bolsonaro ignora debate econômico para tratar de cocô petrificado, taxímetro e três pinos

- Folha de S. Paulo

Guedes propõe vender BB, legalizar cassinos, 1 milhão de aprendizes militares e detona investimento público

Dois ministros discutiram de modo agressivo um plano de reconstrução econômica em parte baseado em obras públicas na reunião de 22 de abril, tornada pública agora pelo Supremo. Jair Bolsonaro nada disse do debate entre Paulo Guedes (Economia) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) acerca do futuro pós-epidemia.

Em matéria econômica, quase se limitou a adiar para 2023 (em uma eventual reeleição) a ideia de privatizar o Banco do Brasil, proposta por Guedes, e a dizer que a crise decorrente do fechamento do comércio era uma “trozoba” que empurrariam “para cima da gente”.

No mais, em assuntos correlatos, tratou de algumas de suas obsessões, como mudanças em taxímetros, em tacógrafos e no “chip na bomba de combustível” (“putaria!”) e na tomada de três pinos.

Mencionou ainda problemas regulatórios, por assim dizer, quando afirmou que “cocô petrificado de índio” (problemas de patrimônio histórico) travava uma obra do empresário Luciano Hang (dono da Havan). Ou quando elogiou medida que facilitou a vida de milhares de pessoas no Vale do Ribeira, região paulista em que passou infância e adolescência.

No debate da política da reconstrução, Marinho criticou “dogmas” (as posições de Guedes) e disse que o aumento da despesa federal com a epidemia seria grande, uns R$ 600 bilhões, a fim de evitar problemas sociais e quebra de empresas. Assim, seria adequado empregar de 5% a 10% desse valor em obras de infraestrutura e promoção do emprego durante uma recuperação que “vai ser muito lenta”.

No encontro, Guedes (Economia) e o ministro Marcelo Antônio (Turismo) defenderam a legalização dos cassinos, como incentivo ao turismo. A fim de convencer a ministra Damares Alves (Direitos Humanos), que se opõe ao jogo, Guedes disse: “O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem..., bebe, sai feliz da vida. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se f..., ô, Damares”.

Ruy Castro*- Ilha internacional

- Folha de S. Paulo

Um estoque de canções francesas, tangos, fados e boleros para o confinamento

Os menores de idade podem não acreditar, mas houve tempo em que a música popular não se limitava ao rock, jazz, pop, soul e rap. Todos os países tinham os seus ritmos e, até meados dos anos 60, eles circulavam entre si. Na vitrola de qualquer família brasileira rodavam tangos, boleros, mambos, fados, valsas vienenses, canções francesas e italianas e até música havaiana. Éramos particularmente cosmopolitas.

Por isso, e encerrando essa série de listas de discos a levar para uma ilha deserta —a quarentena—, eu capturaria também cantores internacionais sem os quais não gostaria de viver. O francês Yves Montand, por exemplo. Quem o conhece de "C'est Si Bon" ou "Paris Canaille" sabe o que quero dizer. Levaria também Georges Brassens, mas combinei com a Gato Preto ficar em um cantor por país.

Bruno Boghossian – Golpismo à luz do dia

- Folha de S. Paulo

Presidente e ministros traduzem impulsos autoritários em ataques explícitos, sem nenhum pudor

Seria uma injustiça afirmar que Jair Bolsonaro flerta com o autoritarismo. O vídeo da reunião ministerial do governo em abril mostra que o presidente e seus auxiliares, mais do que isso, traduzem seus impulsos golpistas em ataques explícitos, sem nenhum pudor.

Os assuntos do encontro eram o coronavírus e os planos para a economia, mas Bolsonaro estava mais interessado em atiçar seu conselho de radicais. Defendeu atropelar outros Poderes, falou em intervenção militar e prometeu armar a população contra seus adversários.

Nas quase duas horas de gravação, aparece em estado bruto a aposta do bolsonarismo na escalada de um conflito com as demais instituições democráticas, com o intuito de acumular um poder quase ilimitado.

O presidente disse que não aceitaria ser alvo de processos “baseados em filigranas” e que haveria “uma crise política de verdade” caso o Supremo tomasse “certas medidas”. “Não vou meter o rabo no meio das pernas”, desafiou. Quando Abraham Weintraub falou em mandar para a cadeia os ministros do tribunal, ninguém manifestou incômodo.

Hélio Schwartsman - Aprender com os erros

- Folha de S. Paulo

Errar uma vez é ruim, mas repetir já é burrice

O Brasil tinha uma enorme vantagem sobre outros países no manejo da pandemia de Covid-19, mas não soube utilizá-la em seu favor. Como estivemos entre as últimas nações a ser atingidas, pudemos observar atentamente o que aconteceu na Ásia, na Europa e na América do Norte. Lamentavelmente, não usamos esse conhecimento para nos preparar para o que viria.

Meu receio é que a história se repita na saída do isolamento. Dentro de uns dois meses, se não houver uma catástrofe maior do que a já contratada, a curva de contágios deverá refluir e precisaremos tentar retomar a economia, sem descuidar da questão sanitária, pois o vírus continuará em circulação e ainda teremos a maior parte da população suscetível a ele.

Vários países asiáticos e europeus já se encontram nessa fase. Seria um crime se não tentássemos aprender com seus acertos e erros. Logo saberemos quais são as atividades mais e as menos perigosas. Retomar aulas com cuidados extras parece algo seguro. Em breve teremos uma ideia do risco de frequentar praias, cultos religiosos, espetáculos etc.

Janio de Freitas* - Com o povo em armas

- Folha de S. Paulo

Vídeo mostrou reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitadores, militares sectários, e uns poucos estarrecidos

Ninguém, nem o próprio Bolsonaro, sabia que nele se escondia, até agora, uma vontade stalinista de exterminar fisicamente os ricos e os bem remediados. Sabê-lo foi, a meu ver, o mais importante efeito do vídeo —liberado em decisão retilínea do decano Celso de Mello no Supremo— da reunião de gente do governo. Como ato, a reunião está acima e abaixo de qualquer qualificativo.

A exibição justificou a expectativa, mas não pelo pretendido esclarecimento entre as versões de Bolsonaro e Moro sobre manipulações do primeiro na Polícia Federal. Tivemos o privilégio de ver e ouvir um fato, mais do que sem precedente, sem sequer algo assemelhado no que se sabe dos 520 anos brasileiros.

Foi a reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitadores, militares sectários, e uns poucos estarrecidos como o então ministro Nelson Teich. E alguém que se divertiu, sem dar descanso ao ríctus irônico, às vezes insuficiente para deter o sorriso —o vice Mourão, um general, ora veja, com senso de humor.

A exibição do ambiente de alta cafajestada, enfeitado pelo idioma doméstico de Bolsonaro, seguiu-se a uma sessão preparatória, da lavra do general Augusto Heleno e convalidada pelos generais palacianos. Resumido de corpo e ressentido típico, Augusto Heleno é dos que não falham: onde esteja, sua soma de arrogância e agressividade frutificará em problemas.

Música | Geraldo Azevedo - Estrela Guia" (Geraldo Azevedo e Carlos Fernando)

Poesia | Vinicius de Moraes - Como dizia o poeta

Quem já passou
Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu, ai

Quem nunca curtiu uma paixão
Nunca vai ter nada, não

Não há mal pior
Do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão

Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir?
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer

Ai de quem não rasga o coração
Esse não vai ter perdão