(Luiz Werneck Vianna, no 33º Anual da ANPOCS, Caxambu/MG de 26 à 30/10/2009)
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Reflexão do dia - Luiz Weneck Vianna
(Luiz Werneck Vianna, no 33º Anual da ANPOCS, Caxambu/MG de 26 à 30/10/2009)
Mikhail Gorbachev: Capitalismo precisa da sua perestroika
Vinte anos se passaram desde a queda do Muro de Berlim, um dos símbolos vergonhosos da Guerra Fria e da divisão do mundo em esferas de influência antagônicas. Hoje, podemos revisitar esses acontecimentos de maneira menos emocional.
O anunciado “Fim da História” não se concretizou. Contudo, tampouco se concretizou o mundo em que muitos de minha geração acreditavam, um mundo em que a humanidade poderia, enfim, esquecer o absurdo da corrida armamentista, conflitos regionais e disputas ideológicas estéreis, e entrar num século dourado com segurança coletiva, uso racional de recursos, fim da pobreza e da desigualdade.
Outra consequência do fim da Guerra Fria é a realização de um dos postulados centrais do novo pensamento: a interdependência de elementos importantes que chegam ao coração da existência humana. Isso envolve não só processos e eventos em diferentes continentes, mas a conexão orgânica entre mudanças nas condições econômicas, tecnológicas, sociais, demográficas e culturais que determinam a existência diária de bilhões no planeta. A humanidade começou a se transformar em uma civilização única.
Naturalmente, nós políticos do século passado podemos nos orgulhar de termos evitado uma guerra nuclear. Mas, para milhões de pessoas, o mundo não se tornou mais seguro. Ao contrário, surgiram inúmeros conflitos locais e guerras étnicas e religiosas, como uma maldição no novo mapa-múndi da política, produzindo uma quantidade imensa de vítimas.
Prova da irracionalidade e irresponsabilidade da nova geração de políticos é o fato de que os gastos com defesa de numerosos países, grandes ou pequenos, é hoje maior que durante a Guerra Fria, e as táticas de uso da força são, de novo, a maneira padrão de lidar com disputas.
O mundo, nas últimas décadas, não se tornou um lugar mais justo: as disparidades entre ricos e pobres se mantiveram ou aumentaram, não só entre Norte e Sul, mas também dentro dos países desenvolvidos. Os problemas sociais na Rússia, assim como em outras nações pós-comunistas, são a prova de que o simples abandono do modelo fracassado de economia centralizada não garante a competitividade global e o respeito aos princípios de justiça social ou um padrão de vida digno para a população.
Novos desafios podem ser acrescidos aos do passado. Um deles é o terrorismo. Num contexto em que a guerra mundial já não é mais um instrumento de dissuasão entre as nações mais poderosas, o terrorismo se tornou a “bomba atômica do pobre”. A proliferação de armas de destruição em massa, a competição entre os antigos adversários da Guerra Fria para alcançar novos níveis tecnológicos de produção de armas e a presença de novos pretendentes a um papel influente num mundo multipolar, tudo faz aumentar a sensação de caos na política global.
A crise de ideologias, que ameaça se transformar numa crise de ideais e valores, marca outra perda de pontos de referência sociais e fortalece a atmosfera de pessimismo político e niilismo. A verdadeira conquista que podemos celebrar é o fato de que o século 20 marcou o fim de ideologias totalitárias, em particular daquelas que se basearam em crenças utópicas.
Novas ideologias, porém, estão substituindo as velhas. Muitos agora esquecem que a queda do Muro não foi a causa de mudanças, mas a consequência de movimentos profundos de reforma popular. Após décadas do experimento bolchevista e a percepção de que este deixou a sociedade soviética num beco sem saída, um forte impulso pela reforma democrática evoluiu na forma da perestroika (reestruturação), que também se tornou acessível a países do Leste Europeu.
O capitalismo ocidental, contudo, privado de seu velho adversário e imaginando-se o vencedor inconteste e a encarnação do progresso global, corre o risco de conduzir a sociedade a outro beco sem saída histórico.
A crise econômica global de hoje revelou os defeitos do modelo de desenvolvimento ocidental que foi imposto ao restante do mundo como o único possível. Revelou também que não só o socialismo burocrático, mas também o capitalismo ultraliberal precisa de uma reforma democrática profunda — seu próprio tipo de perestroika.
Muitas verdades que já foram consideradas inquestionáveis, tanto no Oriente como no Ocidente, deixaram de ser verdades, incluindo a fé cega no todo poderoso mercado e, sobretudo, em sua natureza democrática. Havia também a fé de que o modelo ocidental de democracia seria disseminado mecanicamente para outras sociedades com experiências e tradições diferentes. Na situação atual, mesmo um conceito como o progresso social, que parece ser compartilhado por todos, precisa ser definido mais precisamente.
(Mikhail Gorbachev foi líder da União Soviética de 1985 -1991. Vencedor do prêmio Nobel da Paz em 1990, ele é atualmente presidente da Fundação Internacional para Estudos Políticos e Sócio-Econômicos - A Fundação Gorbachev)
Roberto Freire: Muros que ainda resistem
Estava em campanha a presidente em 1989, e ia fazer um discurso na Câmara Federal defendendo a derrubada do muro, visto já não ter o menor sentido político sua existência, depois do esforço de Gorbatchov de tentar, por meio da Perestroika e da Glasnost, um aggiornamento do modelo soviético de socialismo. Mas internamente, no PCB, mesmo que fosse majoritário o apoio a esse movimento, tínhamos muitas dificuldades de assumir publicamente essas posições por conta das divisões que então reinavam no Partidão, e em amplas parcelas da esquerda brasileira. O fato é que por conta disso não fiz o discurso, onde, pela primeira vez, exporíamos nossa posição sobre esse fato crucial para as esquerdas e para os comunistas, em particular.
Em todo caso, o fato histórico e político da queda do muro de Berlin estabeleceu uma outra realidade e possibilitou a insurgência de novos paradigmas no campo da esquerda. O modelo soviético de materialização do socialismo, baseado, fundamentalmente, na “ditadura do proletariado”, como idealizado por Lênin, e na existência de um partido, conceitualmente “parte”, transformado no todo na prática, por seu domínio sobre o Estado, foi superado pela História, da mesma maneira que os jacobinos da revolução francesa também o foram.
Para todos ficou claro que o Socialismo sem as liberdades formais já consagradas, universalmente, não tem condições de prosperar, a não ser pela instauração de ditaduras. O que coloca para a esquerda democrática a necessidade de uma nova percepção da realidade, não mais fundada nos estreitos domínios da concepção da luta de classes, mas da importância da diversidade cultural e do permanente fortalecimento do processo democrático, a partir de um amplo e profundo movimento de reformas permanentes, que tem nas condições reais de vida do cidadão, desde seu local de moradia, de trabalho e estudo, o lócus do processo de mudança, por excelência. Nesse sentido, ser revolucionário, hoje, é ser radicalmente democrático.
Esse aspecto é muito importante: Durante mais de 150 anos, tínhamos claro que o socialismo seria uma conquista da classe operária, em sua luta pela construção de uma sociedade fundada sobre a lógica do trabalho, e não do capital. Com as profundas mudanças que estamos assistindo das forças produtivas, efetivada pela incessante revolução científico-tecnológica, o proletariado, paulatinamente, perde relevância histórica como agente de mudança política, e a própria percepção do conceito de classe, começa a ser relativizado. Essa a grande angústia das forças de esquerda, seu paradigma básico sofreu uma mudança irreversível.
A emergência de novos atores e questões sociais evidenciam tal transformação. As lutas de gênero, e suas novas demandas, fruto de sua crescente emancipação política desde o pós-guerra.
Se levarmos em conta os novos desafios postos pelo modo de produção vigente, sob o domínio e a lógica do capital, perceberemos como a questão do aquecimento global e do meio ambiente, de um lado, e a questão da distribuição da riqueza produzida socialmente, de outro, bem como a profunda e crescente desigualdade entre as nações estabelecem uma agenda global que precisa ser enfrentada, principalmente no rastro da crise financeira que eclodiu em outubro do ano passado, que ainda estamos sentindo suas conseqüências e que necessitará de uma ação coordenada de âmbito global, para superá-la. A questão central é que os problemas humanos estão “socializados”... Nossa tarefa, agora, é “socializar” as soluções.
Em todo caso, penso que, no futuro, quando os estudiosos pesquisarem o século XX e analisarem as motivações por trás da queda do muro de Berlin e das transformações sociais que proporcionaram, não poderão deixar de relacionar tal fato com a queda da Bastilha. E os imensos “muros” que ainda temos que por a baixo. O da intolerância religiosa, em um mundo cada vez mais laico. O do preconceito étnico e cultural em um momento em que trânsito humano adquire velocidade inédita na história. O incomensurável muro da pobreza que tem confinado mais de dois terços da humanidade em uma vida marcada pela exploração e violência.
A queda do muro de Berlin sepulta um modelo de socialismo, mas não o Socialismo como ideal histórico da humanidade. Isso ficará evidente quando a liberdade em seu desenvolvimento universal confrontar-se com o inescapável desafio da igualdade, em um mundo em que as questões da governança global coloca-se como um problema relacionado com a própria sobrevivência do gênero humano.
Editorial:: Lugar da crítica
Eles morrem de medo de comparar nossos governos com os deles e os nossos projetos com os deles. São países completamente diferentes.” Ficamos no plano dos adjetivos, e de uma retórica, esta sim, ultrapassada.
Será que é isto o que espera o eleitorado brasileiro, numa campanha que, tecnicamente, ainda nem começou? O povo brasileiro temas suas intuições, na hora de votar, e cada eleição é uma eleição.
Em 1994 e 1998, preferiu Fernando Henrique a Lula — porque o Plano Real tinha mudado profundamente a vida do país, e Lula era contra o Plano Real. Em 2002 e 2006, preferiu Lula a Serra e depois a Alckmin — porque deve ter achado que era a hora de dar uma chance à oposição. E essa alternância de poder é a própria alma da democracia; impede que esquemas políticos envelheçam e até apodreçam.
Mas o Lula de 2002 já não era o de 1989; e, com grande sabedoria, resolveu manter a política econômica então vigente, enfrentando, para isso, todas as instâncias ideológicas do seu próprio partido.
Só ultimamente é que ele parece mudar de rumo, o que deve ser, em boa parte, fruto da embriaguez do sucesso. Mas o sucesso não teria vindo sem a base sólida — política e econômica — que ficou dos oito anos de FHC.
Nesse caso, como falar em “dois países”, em dois projetos totalmente diferentes? O presidente Lula parece ter alguma diferença pessoal com o expresidente FHC. Daí voltarem sempre as comparações entre operário e professor, que teriam sido resolvidas a favor do operário.
São questões pessoais. Mas as próximas eleições não vão pôr frente a frente o operário e o professor.
É impróprio e inútil ficar repisando o que já passou, e insistir em que o mérito está todo de um lado. A verdade é que, de 1994 a 2009, o Brasil avançou muito, até a posição realmente privilegiada que desfruta hoje.
O que o eleitor vai querer saber, a partir de agora, é o que vai ser feito desse legado.
A oposição já está descobrindo alguns temas - como os que o ex-presidente FHC levantou.
Fábio Wanderley Reis:: O artigo do ex-presidente
Lembro de ter ouvido, há tempos, o relato de uma conversa na qual supostas raposas políticas avaliavam que, como político, Fernando Henrique Cardoso seria um bom sociólogo: não seria "do ramo". Com a chegada à Presidência em dois grandes triunfos eleitorais, a precariedade da avaliação é evidente. E, com a brilhante carreira como sociólogo internacionalmente reconhecido, seria tola a ideia de inverter o que propõe a avaliação, sugerindo que, como sociólogo, ele seria um bom político. De todo modo, o duplo chapéu de FHC, como líder político e como sociólogo e analista, é razão importante do interesse de suas manifestações, especialmente se trazem a marca polêmica de seu artigo recente no "Estadão" ("Para onde vamos?"), de grande repercussão, complementado com entrevista a Vinícius Torres Freire na "Folha de S. Paulo" dias depois. Como lê-lo?
O artigo contém uma espécie de fenomenologia oposicionista e algo irada do atual governo. Não há como discordar de várias alegações que lá se fazem. Mas há boas razões para indagações sobre a acuidade, a consistência e o alcance do diagnóstico que flui dessa fenomenologia.
Um aspecto saliente é o "autoritarismo popular", associado com "apatia" no início do artigo e na entrevista à "Folha". Mas o autoritarismo popular de vários nomes - cesarismo, bonapartismo, agora "bolivarianismo" - requer um "povão" mobilizado no apoio ao líder. E posso evocar, por exemplo, se a questão é inquirir sobre seu "DNA", que em março de 1997 me era possível ironizar, em artigo na mesma "Folha", as confusas advertências de "despotismo" e "absolutismo" dirigidas ao presidente FHC até por um José Arthur Giannotti - as quais, envolvendo o problema das relações do Executivo com o Congresso e o Judiciário, tinham como pano de fundo justamente o apoio popular com que contava o presidente. E o próprio FHC não se inibia de invocar "a voz rouca das ruas" a propósito da mudança legal que lhe permitiria reeleger-se.
O tema da reeleição permite tomar outro aspecto das denúncias, o relativo à ameaça de atropelo às instituições, à democracia constitucional e suas regras. Creio, e sustentei no momento em que a emenda foi debatida, que o argumento que se podia e pode brandir em favor da reeleição (ao menos uma...) tem duas pontas: de um lado, a de que ela resulta não em restringir as opções do eleitor, mas em aumentá-las, incluindo a possibilidade de recondução do titular cujo desempenho o eleitor avalie favoravelmente; de outro, a ponderação de que o componente de plebiscitarismo e casuísmo que a medida claramente conteve ao ser proposta no primeiro governo FHC se via neutralizado pelo fato de que o que se buscava era a introdução da reeleição pelos meios legais e constitucionais apropriados. Pretender questionar a legitimidade disso com a alegação de que o governo controlava no Congresso os recursos políticos necessários à aprovação da emenda redundaria em negar ao governo o direito de fazer política.
FHC recua de falar de "atropelo da lei" a propósito do governo Lula: teríamos antes atropelo dos "bons costumes". Deixando de lado a questão de saber se a proposta de reeleição se ajustava aos "bons costumes", cabe supor que Lula, para FHC, faz política dentro da lei - e não há por que imaginar, assim sendo, que a eventual disposição menos legalista manifestada nos "despautérios" e iniciativas mais ousadas deixará de encontrar os obstáculos necessários na aparelhagem institucional-legal.
Resta um outro ponto central e complexo: o do "poder sem limites" (não obstante a concessão quanto ao império da lei) que teríamos num Estado "burocrático-corporativo" em que ao aplauso do povo se junta o amálgama formado por sindicatos, movimentos sociais e mundo empresarial, além do BNDES e dos fundos de pensão (acionados inicialmente, como se lembrou na imprensa, no governo FHC...) - sem esquecer que se trata, com Lula, de um personalismo "subperonista" de partidos em crise... Que o substrato sociológico da política brasileira produz partidos fracos e personalismo é algo que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso sabe há muito, naturalmente - e o que tivemos de novidade a respeito, com Lula e o PT, foi a indicação clara, até o desastre de 2005, de como seria eventualmente possível fazer do personalismo um instrumento de efetiva construção institucional na faixa partidária, ajudando a criar, nas condições precárias de nossa sociopsicologia política, identificações partidárias fortes e estáveis. Deu errado para o PT, resta o lulo-"peronismo" ("sub"?). Mas o que caberia esperar de FHC como importante líder partidário, em vez da mera constatação da crise dos partidos, é antes a resposta ao desafio de como seu PSDB poderia escapar a ela e penetrar para valer o eleitorado atraído pelos despautérios lulistas.
Quanto ao amálgama, algo curioso a notar é a convergência a respeito entre FHC e certas análises de Luiz Werneck Vianna que têm circulado - com o pormenor de que neste último elas se presumem formuladas de um ponto de vista "de esquerda". A pergunta, como ocorre com frequência, é o que colocar no lugar do Estado que agrega em busca da eficiência definida em termos agregados ou do todo. À esquerda, descartado o "socialismo real", seria talvez possível sonhar com coisas como um socialismo de mercado - mas é difícil ver como caminhar rumo ao sonho sem dose importante de agregação corporativa e welfarista. A FHC, porém, caberia ponderar que o corporativismo integrador se acopla ao modelo mais bem sucedido de socialdemocracia, à qual supostamente aspira o Partido da Socialdemocracia Brasileira. Por certo, é indispensável tratar de controlar democraticamente o Estado-amálgama para que o corporativismo não resulte em oligarquia. Mas, de novo, não é fácil vislumbrar a alternativa a buscar, especialmente se o amálgama redistribui e ajuda a vencer crises econômicas.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Ricardo Noblat:: Por que Serra demora
“Antes o presidente reclamando da imprensa que a imprensa o satisfazendo constantemente.” (Dora Kramer, jornalista)
O governador José Serra acerta quando se cala sobre se será ou não candidato à sucessão de Lula.
Do alto das pesquisas de intenção de voto, por que ele haveria de se tornar alvo desde já da fúria do PT e dos seus aliados? Nada lucraria com isso.
De resto, não há um só tucano emplumado que duvide da disposição de Serra para sair candidato.
À sombra, Serra tem trabalhado duro para pavimentar o caminho que poderá leválo a concorrer à Presidência da República pela segunda e última vez. Se não concorrer ou for derrotado, dará adeus em definitivo ao sonho cultivado desde que começou a fazer política. Lula perdeu três eleições consecutivas antes de vencer a primeira em 2002. Se depender dele, tentará um novo mandato em 2014. Estará com 69 anos — e Serra com 72.
A diferença de idade entre eles não é o que permite imaginar Lula eleito para um terceiro mandato e Serra metido em um pijama dentro de casa observando o crescimento da grama no seu jardim.
Lula deixará o cargo em janeiro de 2011 ostentando a privilegiada condição de o presidente mais popular da história do país. Falta ao PT outro nome capaz de disputar com ele a indicação para candidato em 2014. Quem ousaria? A situação de Serra é bem distinta. Se fugir ao desafio de enfrentar Dilma Rousseff cederá a vaga a Aécio Neves, governador de Minas Gerais. Mesmo que perca, é razoável que Aécio assegure o direito de concorrer em 2014. Terá apenas 54 anos. Terá ganhado com a derrota para Dilma a exposição nacional que hoje lhe falta. O PSDB não se dará ao luxo de desprezar uma estrela em ascensão. É um partido de poucas estrelas.
De 1989 para cá, Lula disputou todas as eleições presidenciais.
Disputará mais uma. Onde se lê Dilma, leiase Lula. O que Dilma tem até agora em intenções de voto foi o que Lula já lhe transferiu. A transferência tende a aumentar. O brasileiro está satisfeito com a vida que leva. E reconhece que boa parte da satisfação decorre do desempenho de Lula e do seu governo. Eleitor satisfeito nunca votou para mudar. Nem aqui nem em parte alguma.
Há duas desgraças que Serra diligenciará para varrer do seu caminho — ele ou qualquer outro candidato.
A primeira: trombar com Lula sem necessidade. Ou mesmo se for necessário. A não ser em caso extremo. A segunda: passar a impressão de que uma vez eleito mudará o que o eleitor não quer que mude. Dilma dirá que representa a continuidade de Lula. Serra não poderá dizer isso, mas é tudo o que gostaria que o eleitor achasse dele.
Essa história de candidato “pós-Lula” inventada por Aécio é uma maneira mais refinada de afirmar: manterei tudo que Lula fez e ainda farei melhor. Serra pretende ir por aí. O PT decidiu encarar a eleição como um confronto entre o Brasil pontilhado de crises de Fernando Henrique e o Brasil ladeira acima de Lula. Votar em Serra é desejar a volta do Brasil das crises e do desemprego em alta.
Votar em Dilma — bem, não vale a pena repetir.
O PSDB se empenhará em transformar a eleição em um confronto entre um candidato com larga experiência política e administrativa e uma candidata que não era nada até outro dia. Que virou candidata por vontade exclusiva de uma única pessoa. Serra pergunta a seus botões: que vantagem levaria se partisse logo para a briga contra Dilma? É o que interessa a Dilma: polarizar cedo com ele para crescer.
A próxima tende a ser uma eleição curiosa. O PT olhará Serra e enxergará Fernando Henrique com todos os seus eventuais defeitos. De sua parte, o PSDB olhará Dilma e enxergará o PT dos muitos escândalos, do aparelhamento e do inchaço da máquina do Estado, da cooptação por meio de grana dos movimentos sociais e da cumplicidade com o MST que invade e depreda fazendas.
Foi na eleição de 2002 que estre ou Lulinha “ paz e amor”. Na de 2010 estreará Serrinha “paz e amor” — pelo menos no que depender dele. O ex-metalúrgico enfezado estará de volta.
Vaz de Lima:: A guerra do PT contra os fatos
Os petistas emitem sinais inequívocos de que se preparam para tratar as eleições como uma guerra para manter seus privilégios
UMA MENTIRA repetida mil vezes será sempre uma mentira. Dentro da democracia, é claro.
Isso porque, no ambiente de liberdade, logo surgem informações e fatos capazes de desmascarar e desmontar as fraudes e falsidades que alguém se aventure a divulgar.
Aquela velha e assustadora ideia de transformar a mentira em verdade pela força da repetição só se sustenta nas ditaduras, felizmente hoje relegadas a setores minoritários do planeta.
Porém, seus seguidores continuam por aí. E a herança daquele pensamento totalitário parece persistir em parcelas relevantes de nossa elite. É o que o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, chamou de vale-tudo e que não se restringe, embora estreitamente vinculado, às eleições.
O exemplo mais gritante é o PAC, sigla criada para emprestar à ministra Dilma Rousseff uma biografia ainda por ser edificada, como mãe de todas as obras. Desse jeito, entretanto, ficará conhecida como "Propaganda Altamente Contaminada" pelo vírus da falsificação. Mal regressou do convescote às obras inacabadas (ou melhor, semi-iniciadas) do velho chico, eis que vimos a ministra retratada em Araraquara para... pré-inaugurar uma reforma inacabada.
Outro lance de vale-tudo ficcional são as peças de propaganda do PT, veiculadas recentemente pela televisão nos programas partidários em São Paulo. Trata-se, evidentemente, de mais um lance da estratégia lulista de antecipar a campanha eleitoral de 2010 e inflar artificialmente a candidatura que impôs ao seu partido.
Uma tentativa frustrada, tanto pela folgada vantagem que o governador José Serra reafirma a cada pesquisa quanto por seu inabalável compromisso de se manter dedicado exclusivamente a governar, com muita competência e sucesso, deixando a questão das urnas para o ano que vem.
Com truques primários de prestidigitação, os "mágicos" da propaganda petista acham possível enganar os paulistas com a lorota de que importantes obras em São Paulo só existem graças aos recursos financeiros de Brasília.
O que mais choca é a falta de cerimônia com a verdade e certo desprezo com relação ao grau de informação e ao nível de inteligência do povo.
Além de o presidente do Supremo chamar de vale-tudo os abusos cometidos nos comícios feitos no vale do São Francisco, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral deu a entender que esses abusos só não são condenados pela Justiça porque as reclamações movidas pelos partidos são inadequadamente fundamentadas.
Diante disso, o PT, por intermédio de seu líder na Câmara dos Deputados, Cândido Vaccarezza, acusa a oposição de não fazer o mesmo. Segundo ele, os tucanos deveriam pedir desculpas à sociedade por não terem tido obras (obras inacabadas, compreende-se) para pré-inaugurar.
Como se não bastasse, a figura máxima do PT, o presidente Lula, reage à indignação geral contra o que ele mesmo chamou de comícios dizendo tratar-se de um debate pequeno.
No caso do Estado de São Paulo, a ministra Dilma está mais para madrasta, isso sim. Aqui, o PAC não tem mãe. Tem pai, e o nome dele é José Serra, todo mundo sabe.
Fica bastante claro, portanto, o que vem pela frente na política nacional.
Os petistas e seus "companheiros", que se apoderaram do aparelho de Estado com uma sem-cerimônia inédita na história brasileira, emitem sinais inequívocos de que se preparam para tratar as próximas eleições não como um debate de propostas, mas como uma guerra para manter seus privilégios.
É a esses privilégios que o presidente Lula se refere quando defende, em recente entrevista, como medidas de "segurança institucional" as manobras da base do governo no Senado para manter Sarney no cargo, a despeito de todas as irregularidades a ele atribuídas e confirmadas pela sindicância feita pala própria Mesa da Casa. É para defender esses privilégios que o PT trata o debate programático como propaganda de guerra.
E, de acordo com a célebre frase do senador americano Hiram Johnson, quase um século atrás, na guerra, a primeira vítima é a verdade. Nas eleições também. A receita para proteger a verdade nós conhecemos.
Com informações corretas, com o relato preciso dos fatos e com a livre circulação de ideias, que são as armas da democracia contra o autoritarismo, toda mentira acaba em seu merecido lugar: a lata do lixo.
José Carlos Vaz de Lima, deputado estadual pelo PSDB, é líder do governo na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Temer libera Quércia para apoio a PSDB
Às turras com o PMDB nacional desde o pré-acordo com o PT visando às eleições presidenciais de 2010, o presidente paulista da legenda, Orestes Quércia, disse ontem ter recebido garantias de que a posição pró-PSDB de São Paulo será respeitada.
Otrato foi selado na quinta-feira no escritório de Quércia na Capital, com o presidente nacional do PMDB, deputado Michel Temer. Para consignar o compromisso, Temer deu aval à reeleição de Quércia como presidente do diretório paulista, a ser oficializada em 13 de dezembro.
O PMDB trava uma batalha interna para definir a quem apoiará no pleito do próximo ano. A ala liderada por Temer e pelos senadores José Sarney e Renan Calheiros quer apoiar a candidata indicada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a ministra Dilma Rousseff. Já o grupo de Quércia e do senador Jarbas Vasconcelos (PE) defende o apoio ao PSDB.
Jovens do PMDB lançam Fogaça para o Piratini
Cauteloso, prefeito evitou declarações definitivas sobre a possibilidade de disputar governo gaúcho
Mesmo que relute em assumir a candidatura ao governo do Estado em 2010, o prefeito de Porto Alegre, José Fogaça, foi lançado ontem como candidato do PMDB. Na 20ª convenção estadual da Juventude do PMDB, realizada no Centro de Eventos Casa do Gaúcho, na Capital, Fogaça foi aclamado pelos cerca de 800 participantes que gritavam seu nome em coro.
Além de Fogaça, a convenção dos jovens reuniu líderes como o senador Pedro Simon, presidente estadual do PMDB, e o deputado Eliseu Padilha, secretário-geral. No discurso de posse, o novo presidente da Juventude, Rafael Braga, lançou Fogaça para a campanha estadual de 2010. O antecessor de Braga, Gabriel Souza, puxou o coro e a multidão se pôs a gritar “Fogaça! Fogaça! Fogaça!” e “governador! governador!”
Na hora, Fogaça chegou a fazer um gesto de vitória, de mãos dadas com os colegas, com os braços para o alto. Ao discursar, o prefeito disse que o PMDB vai “retornar ao governo gaúcho com equilíbrio e convivência pacífica”, citando como exemplo as gestões anteriores de Pedro Simon e de Germano Rigotto.
À noite, por telefone, Fogaça negou que o episódio da convenção tenha marcado efetivamente o lançamento de sua candidatura ao Piratini:
– Havia lá também faixas com “Rigotto Governador”. Deixei bem claro no meu pronunciamento que minha tarefa era consolidar o partido em Porto Alegre, através de um governo o melhor possível, e que essa era a tarefa que eu pretendia cumprir nos próximos anos. Não houve nenhuma mudança.
Conforme os números divulgados pelo Ibope em outubro, Fogaça e Rigotto ocupam o segundo lugar na preferência dos eleitores, atrás do petista Tarso Genro. Em um dos cenários propostos pela pesquisa, Fogaça tem 28% das intenções de voto – em outro, Rigotto tem 27%. Entre os principais líderes peemedebistas, a crença é de que Rigotto irá se candidatar ao Senado. Procurado pela reportagem, o ex-governador não foi localizado ontem para comentar o episódio.
Ainda na convenção, Eliseu Padilha disse acreditar que tanto Fogaça quanto Rigotto estão aptos para a tarefa de governar o Estado. O senador Simon convocou os correligionários à reflexão:
– Agora, é hora de meditar e manter a união para fazer a melhor escolha.
Serra sanciona lei de mudança climática para contrapor Dilma
Tucanos já elencam temas considerados positivos para tratarem durante a disputa eleitoral de 2010
Fernando Barros De Mello
Da Reportagem Local
De olho na provável candidatura presidencial do próximo ano, aliados do governador de São Paulo, José Serra (PSDB), já elencam temas considerados positivos para tratar na disputa eleitoral de 2010.
Serra e aliados se preparam para um possível embate com a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil). Um exemplo é a Política Estadual de Mudanças Climáticas, que será sancionada hoje, com festa na sede do governo paulista. Em encontro na semana passada no PSDB-SP, tucanos enviaram mensagens on-line cobrando uma comparação maior nessa área.
Na avaliação de aliados de Serra, é possível aproveitar o fato de o governo federal ter sinalizado que pode não apresentar um compromisso de redução das emissões dos gases-estufa na conferência do clima, em Copenhague. A ONU cobrou uma meta clara de corte.Questionado pela Folha, o líder do governo Serra na Assembleia, deputado Vaz de Lima (PSDB), provoca: "São Paulo prova que é possível ter crescimento com sustentabilidade. Nós temos coragem de apresentar uma meta de redução de 20% até 2020".
Outros temas apresentados nas pesquisas internas são a saúde e o transporte. Apesar de serem vistas como problemáticas pela maior parte da população, as duas áreas têm repercussões positivas para a imagem do governador.
Segundo pesquisa qualitativa, Serra continua sendo lembrado pela criação dos remédios genéricos. Várias pessoas ouvidas afirmaram que a quantidade e variedade de remédios nos postos estaduais de saúde deve-se à ação de Serra.
O governador também é tido como uma pessoa "preocupada com a saúde das pessoas" e a recente lei de restrição ao fumo contribuiu para isso.
Não por acaso, uma das propagandas mais veiculadas pelo governo na televisão trata das AMEs (ambulatórios de especialidades). Outros pontos fortes da propaganda tucana são a expansão do Metrô, que aparece nas pesquisas como a obra mais visível pela população, seguida pelo Rodoanel e pela recuperação de vicinais.
Serra busca financiamento para obras
No último ano de gestão, governador de São Paulo terá R$ 4 bi para financiar obras, especialmente as de infraestrutura
Apontado como possível candidato à Presidência, Serra quer usar capacidade de investimento como trunfo no ano que vem
Catia Seabra
Potencial candidato à Presidência, o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), conta com R$ 4,211 bilhões em empréstimos para financiar obras, especialmente as de infraestrutura, em 2010. Esse dinheiro representa 62,03% do total a ser liberado nos seus quatro anos de gestão.
Só no ano que vem, o governo Serra será contemplado com R$ 1,3 bilhão para compra de novos trens do Metrô e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). Outros R$ 600 milhões serão desembolsados para pavimentação de estradas vicinais.A capacidade de investimento é apontado como um trunfo de Serra para a disputa presidencial. "Colocamos São Paulo para andar", já discursou Serra, repetindo que, nos governos Mario Covas (1995-2001) e Geraldo Alckmin (2001-2006), o Estado foi posto de pé.
Mas Serra só terá inaugurado parcela das obras financiadas, caso se afaste em março do ano que vem para concorrer à disputa presidencial. Dentro do partido, o embate está entre ele e o governador Aécio Neves (MG). Se não concorrer ao Planalto, apesar de até o momento liderar as pesquisas de intenção de votos, Serra poderá ser candidato à reeleição ao governo de São Paulo.
Uma parte expressiva dos 22 empréstimos obtidos no governo Serra ficará para o sucessor -ou para ele mesmo, caso dispute e seja reeleito governador. Segundo estimativa do próprio governo, quase a metade -41,39%- dos R$ 11,6 bilhões negociados só chegará aos cofres do Estado a partir de 2011. Ou seja: R$ 4,8 bilhões serão gastos na próxima gestão que administrará São Paulo.
Cumprido o cronograma, a gestão Serra entregará 28 novas estações de Metrô. Mesmo com financiamento já prometido para as obras, outras 35 ficarão para o próximo mandato. De 2010 para 2014, segundo o governo, a rede de Metrô passará de 240 para 380 quilômetros -um incremento de 58%.
O sucessor de Serra não herdará apenas obras em andamento -comum no processo político-, mas até a assinatura de empréstimos que negociou.
Dos R$ 11,5 bilhões acertados pela atual administração, ao menos R$ 1,7 bilhão só deverá ser contratado a partir de 2011. Em ano eleitoral, os empréstimos com agentes de fomento só podem ser assinados até junho (seis meses antes do fim dos mandatos). E pelo menos seis deles estão com previsão de assinatura a partir de março do ano que vem. Qualquer atraso impõe risco ao cronograma.
Segundo balanço do Estado, o processo de negociação de empréstimo externo consome, em média, dois anos, podendo chegar a três. Até a assinatura, o pedido passa por uma maratona burocrática que envolve até nove diferentes órgãos.
Fora o atraso natural de um processo que consome em média dois anos, um ingrediente político pode contribuir para adiamentos: todos dependem de autorização do Senado, que, em 2010, deverá estar em ritmo mais lento, devido ao fato de os senadores também estarem envolvidos nas eleições.
Gildo Marçal Brandão:: O fracasso dos conservadores
Fonte: Gramsci e o Brasil
Peço ao leitor licença para fazer uma pequena reflexão meio afastada dos problemas do dia-a-dia. Minha questão é a seguinte: vocês já perceberam que, impressionados com os efeitos da queda do Muro de Berlim e com a ascensão do radicalismo liberal, temos olhos apenas para a falência da esquerda e não nos damos conta do enorme fracasso político dos conservadores - da direita ilustrada - brasileiros?
Correndo o risco de simplificar, diria que o programa conservador brasileiro, que foi responsável no século passado pela consolidação do Estado nacional e forneceu neste a direção básica da ação dos grupos políticos e burocracias dominantes no país - do tenentismo ao geiselismo, de Agamenon Magalhães a Antônio Carlos Magalhães -, se assentava na tese de que não era possível construir um Estado liberal (e democrático) numa sociedade que não era liberal. A conseqüência prática é que esta precisava ser tutelada. Mas vamos por partes.
O Brasil, diziam os conservadores, é um país fragmentado, atomizado, amorfo e inorgânico, uma sociedade desprovida de liames de solidariedade internos e umbelicalmente dependente do Estado para manter-se unida. Nessa terra de barões, onde “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, o homem comum só costuma encontrar alguma garantia de vida, liberdade e relativa dignidade se estivesse a serviço de algum poderoso. Fora disso, estava inteiramente desprotegido - a não ser que o Estado interviesse. Aqui, ao contrário dos Estados Unidos e da Europa, o Estado não deveria ser tomado como a principal ameaça à liberdade civil, mas como sua única garantia.
Criticando os liberais por sua cegueira diante desta realidade e pela tentação de copiar as instituições de além-mar, o principal pensador político dessa corrente no século XX, Oliveira Vianna, dizia que, nessa sociedade de políticos corruptos e oligarquias “broncas”, a democracia política constituía a grande ilusão. Seu aparato institucional pesado, lento e ineficiente não daria conta dos dinamismos e desafios do mundo moderno; sua subserviência diante do sufrágio universal e dos partidos que não passavam de agrupamentos de bandidos irmanados contra o bem-comum, apenas entregaria o Estado de pés e mãos atados aos interesses particularistas e aos coronéis, sumidades e corriolas de aldeia.
Daí seria necessário evitar a luta de classes, dar prioridade à construção da ordem sobre a liberdade, dar autonomia ao Judiciário, educar o povo e organizá-lo por meio de corporações profissionais, construir uma sociedade civil (civilizada) e só depois - se é que haveria um depois - admitir a democracia política. Paradoxalmente, valia aqui a boa ordem européia: só depois de garantida a liberdade civil é que deveríamos nos lançar à construção da política. A predominância da autoridade sobre a liberdade resultava, assim, da inorganicidade e atomização da sociedade: sem um Estado forte, tecnicamente qualificado, imune aos partidarismos, capaz de subordinar o interesse privado ao social, controlar os efeitos destrutivos do mercado, etc., ela não sobreviveria.
Não pretendo discutir aqui o quanto de verdade está contido nesse diagnóstico nem que percentagem desse programa foi realizado. Concedo que ele teve relativo êxito, mas em alguns pontos essenciais ele foi um verdadeiro fracasso: não só não cumpriu as suas promessas como perdeu qualquer sentido no Brasil que chega ao século 21. Ressalto aqui três aspectos: a negação da tese do caráter inorgânico da sociedade civil, a obsolescência da idéia de que a unidade nacional dependa exclusivamente do Estado e não pode ser garantida em democracia, e a completa incapacidade de realizar o que - ideologicamente ou não - prometia: educar a população para a liberdade e para o usufruto dos direitos civis.
O lado mais ostensivo da superação dessa direita ilustrada tem sido a explosão associativista e a emergência de um mundo de interesses que redefinem o caráter da mediação do Estado e expressam um enorme incremento de autonomia, auto-organização, luta por direitos, etc., por parte de indivíduos, grupos sociais, sindicatos, organizações da sociedade civil e política. Do ponto de vista da unidade política, o país é hoje uma das poucas federações razoavelmente bem sucedidas no mundo. Detalhe importante, há muito tempo que a unidade territorial e nacional, a conexão e a solidariedade econômica, política, social e cultural entre as regiões está solidamente enraizada nos hábitos e costumes, ainda que não inteiramente nas leis e nas instituições. Não dependem mais nem da homogeneidade da elite (como foi o caso do Império, segundo a tese clássica de José Murilo de Carvalho), hoje, ao contrário, cada vez mais heterogênea; nem da existência de um Estado forte que deveria ser benevolente (para uns) e despótico (para a maioria).
Superado, primeiro, pela performance do Estado nacional-desenvolvimentista, em seguida pela sua crise, e incapaz de elaborar novas respostas num mundo bastante revolvido pela chamada globalização, o grande fracasso do pensamento conservador no Brasil reside, entretanto, na questão dos direitos civis e da organização da justiça. É aqui que o desempenho dos conservadores foi mais pífio, suas promessas mais hipócritas, suas expectativas mais fraudadas.
Um século e sete décadas depois da criação do Estado imperial, um século de república, duas ditaduras, uma democracia relativa e um experimento inconcluso, como é o nosso hoje, o conservadorismo nos legou uma sociedade em que a vida cotidiana é marcada pela violência, impunidade, insegurança, dificuldade de acesso à justiça, corrupção. Justamente o que ele havia prometido debelar e em nome dos quais nos privou várias vezes da liberdade.
Queda do muro abriu chances não aproveitadas
Quentin Peel, Financial Times
O curioso sobre a queda do Muro de Berlim em 1989 é a forma como pegou todos de surpresa - até o partido Comunista da ex-Alemanha Oriental e a população da cidade, então dividida. Agora, sabemos que tudo se tratou de um erro, a consequência involuntária de falhas de comunicação em um regime em estado de pânico, que se deparava com vastas manifestações de seus cidadãos pelo direito de viajar para fora do país.
O resto é história. Quando os berlinenses orientais ouviram um fatigado porta-voz do Politburo balbuciar em 9 de novembro que eles teriam permissão para atravessar para o Ocidente, dezenas de milhares transbordaram pelo concreto e pelas barricadas de arame farpado que dividiam a cidade havia quase 30 anos. Sua jornada triunfante veio simbolizar o fim da Guerra Fria e os últimos espasmos de vida do império soviético, uma vez que ficou claro que Mikhail Gorbatchov, o homem então no Kremlin, não estava mais disposto ou capacitado a enviar tanques para esmagar os dissidentes.
Polônia e Hungria já estavam avançadas no caminho para encerrar o poder comunista; a "revolução de veludo" na antiga Tchecoslováquia foi lançada semanas depois das celebrações em Berlim. "Então 1989 foi um ano maravilhoso, porque todos esses terríveis regimes comunistas desapareceram e a ameaça nuclear foi removida", afirmou Rodric Braithwaite, na época embaixador do Reino Unido em Moscou. "Custa lembrar como costumávamos viver com medo de o mundo acabar num holocausto nuclear."
Também foi ano em que Francis Fukuyama, o filósofo e economista político americano, publicou "O Fim da História", seu ensaio sobre a "vitória imperturbável do liberalismo político e econômico". Ele chamou isso de "o ponto final na evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano".
Porém, 20 anos depois, com o mundo em recessão e guerras civis em abundância, as ideias do professor Fukuyama parecem excessivamente triunfalistas. Há uma reação global contrária ao capitalismo liberal. Parece mais provável que seja a China, bastião da regra do partido único e com um sistema, sem remorsos, liderado pelo Estado, o país a sair mais rapidamente dos escombros. As grandes esperanças de paz e estabilidade, para que emergisse uma nova ordem mundial a partir do fim da Guerra Fria, de alguma forma nunca se concretizaram.
Em vez disso, uma Rússia nacionalista e ressentida voltou a ficar em desavença com muitos de seus vizinhos europeus. As esperanças por algum grande avanço no desarmamento nuclear evaporaram. O medo é de uma proliferação nuclear, já que o Irã busca seguir Índia, Paquistão e Coreia do Norte e obter suas próprias armas. No Afeganistão, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) está atolada no que parece ser uma guerra que não pode ser vencida - e que está se espalhando para o vizinho Paquistão.
O que saiu errado? A pergunta pode ser criticada como grosseira, sem que se reconheça, primeiro, o que deu certo. A queda do muro iniciou um processo que viu a Alemanha reunificar-se em um ano e uma unificação ainda maior de leste a oeste, com a ampliação da União Europeia, que recebeu a maioria dos países do antigo Pacto de Varsóvia. O lançamento da moeda única europeia também foi resultado direto.
Os eventos de 20 anos atrás trouxeram não somente o fim do comunismo na Europa e sua substituição por economias de mercado, mas também decretarem o fim, em todo o mundo, de uma série de ditadores corruptos e cruéis, que eram mantidos apenas como ferramentas no confronto entre Leste e Oeste. A ditadura marxista de Mengistu Haile Mariam na Etiópia foi uma das primeiras a acabar. Levou um pouco mais de tempo para que o Ocidente permitisse a derrubada de Mobutu Sese Seko, no Zaire, e de Suharto, na Indonésia. Na era pós-ideológica, eles haviam se tornado um embaraço.
Talvez um dos eventos mais notáveis que podem ser atribuídos ao fim da Guerra Fria tenha sido a libertação de Nelson Mandela e a entrega do poder pelo regime de segregação na África do Sul.
François Heisbourg, presidente do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, diz que os êxitos - acima de tudo, a decisão de ampliação da UE - foram grandiosos. "O que fizemos de forma brilhante foi "tornar a Europa inteira e livre", para citar o general [Dwight] Eisenhower", diz. "Talvez poderíamos ter feito melhor, mas foi um feito e tanto".
Em meio a tudo isso, entretanto, surgiu o que Braithwaite chama de "euforia arrogante" no Ocidente sobre a "vitória" na Guerra Fria. "Como disse Gorbatchov, foi uma vitória para todos. Mas agimos como se tivesse sido uma vitória apenas nossa. Estragamos isso porque pensamos, na euforia arrogante da vitória, que poderíamos ditar os seus termos."
Em primeiro lugar, o Ocidente deixou de contemplar a reforma da Otan, a instituição quintessencial da Guerra Fria, que era vista com profunda suspeita pela Rússia. "Nem tentamos", diz Heisbourg. "Lidamos com a reforma da Otan de uma forma muito estreita: como minimizar a estrutura gerencial da Otan e como trazer os franceses [totalmente] de volta. Não tentamos seriamente a abordagem da "casa comum europeia" [proposta por Gorbatchov] em um momento no qual éramos donos da casa. Foi falta de imaginação."
"Não tratamos a Rússia como um parceiro total e positivo durante esses anos, quando [Boris] Ieltsin tinha tanto a legitimidade quanto a autoridade. E eles confessaram sua história: admitiram o pacto Molotov-Ribbentrop [pelo qual a ex-União Soviética anexou as repúblicas bálticas e boa parte da Polônia] e confessaram o massacre de Katyn [de oficiais da Forças Armadas polonesas na Segunda Guerra Mundial]. Em 1992-94 houve uma verdadeira janela de oportunidade. No fim dos anos 90, a Rússia começou a voltar a se organizar em sua mentalidade imperialista clássica."
Então, quando uma Otan não reconstruída abriu as portas para Polônia, Hungria e República Tcheca, em 1999, a Rússia estava determinada a ver o gesto como ação hostil. O momento de possível reconciliação havia passado.
Stephen Stedman, ex-assistente do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), acredita que os EUA, em particular, foram responsáveis por deixar passar as oportunidades nos anos 90. "Essas oportunidades não surgem com muita frequência", diz. "As autoridades americanas poderiam ter abordado o fim da Guerra Fria da forma como o fizeram no fim dos confrontos anteriores entre grandes potências. Era o momento certo para repensar as instituições internacionais e renegociar as regras do jogo. Estava tudo pronto para ser colhido."
O professor Stedman, da Universidade Stanford, não culpa o ex-presidente George H. Bush, cujo apoio à reunificação alemã foi crucial para o sucesso desse processo. Bush pai também se preocupou em não humilhar Moscou, por temer as reações de uma superpotência em declínio. Porém, quando Bill Clinton assumiu o comando, em 1993, "eles não entenderam como os Estados haviam mudado de forma essencial". "Tudo o que conseguiam pensar era a Rússia. Não tinham ideia do que os estava atingindo. Só pensaram, "se pudermos solucionar a economia de mercado na Rússia, então, tudo estará bem". Foram sobrepujados pela explosão de guerras civis."
A desintegração da antiga Iugoslávia foi uma distração imensa. E a retirada das forças dos EUA da Somália levou o governo Clinton a renunciar a mais envolvimentos na ONU, até mesmo para evitar o genocídio em Ruanda, em 1994. Qualquer ideia de relançar o sistema da ONU para o mundo pós-Guerra Fria foi descartada por George W. Bush (o filho) após os ataques de 2001 contra os EUA.
Igor Ivanov, ex-ministro das Relações Exteriores da Rússia, avalia que se deixou passar a mesma oportunidade de novo. "Há 20 anos, tivemos uma chance real de iniciar um novo processo de relações internacionais", afirma. "Não a aproveitamos bem. Tivemos outra oportunidade depois do 11 de setembro. Todos concordamos na cooperação antiterrorista. Todos estavam lá. Depois da Guerra Fria, não tínhamos diferença ideológica. Então tivemos a guerra no Iraque e perdeu-se o momento."
Quanto ao desarmamento nuclear, o histórico no início dos anos 90 foi muito melhor, com milhares de mísseis desmontados. O feito mais notável, talvez, tenha sido persuadir as ex-repúblicas soviéticas que haviam se tornado independentes a abrir mão das armas nucleares em seus territórios. Heisbourg calcula que os EUA gastaram US$ 12 bilhões para "comprar" esses mísseis e assegurar a segurança dos que ficaram na Rússia. Britânicos e franceses contri-buíram com experiência técnica.
Outro êxito foi renovar o tratado de não proliferação nuclear em 1995 e persuadir a maior parte do mundo a assiná-lo. Apenas Índia, Paquistão e Israel recusaram-se. Mas, desde então, as cinco potências nucleares - EUA, Rússia, China, França e Reino Unido - fracassaram em cumprir sua parte no acordo: "negociar de boa-fé [...] um tratado sobre o desarmamento geral e completo".
"Nossa posição política e moral, no que se refere ao tratado, é muito instável", diz Braithwaite. "A não proliferação nuclear é inviável enquanto os Estados com armas nucleares continuem violando o tratado. Diz que deveríamos estar nos desarmando. Não estamos."
A ideia de acabar com todas as armas nucleares - o "zero" nuclear - foi levantada pela primeira vez por Gorbatchov e Ronald Reagan, em seu encontro em Reykjavik, em 1986. Foi recebida com horror pela então primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, e por Richard Perle, um dos assessores mais próximos de Reagan. Juntos, acabaram matando a iniciativa.
A ideia voltou a ser proposta por Paul Keating, então primeiro-ministro da Austrália, em seu informe sobre a Comissão de Canberra, em 1996. Heisbourg acredita que já era tarde demais. "Todos riram disso", diz. "Estava inteiramente fora de sintonia com o que os russos pensavam que era bom para eles. Não eram apenas os americanos que sofriam de falta de imaginação". Hoje, o desarmamento voltou à agenda internacional, trazido por Barack Obama. Desta vez, Rússia, França e China são os que opõem com mais vigor. Mas será que a ideia poderia ter sido abraçada por todos nos anos 90?
Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU em setembro, Obama parecia estar tentando reparar todas as oportunidades perdidas na década de 90. Além do zero nuclear, ele defendeu uma resposta multilateral às mudanças climáticas e à economia mundial e trabalhar pela paz no Oriente Médio. No discurso, havia fortes ecos do apelo de Gorbachev, em 1988, pela cooperação internacional. Bem mais incerto, no entanto, é saber até que ponto o presidente dos EUA pode carregar um Congresso americano cético em direção a uma remodelação da governança mundial.
A crise econômica trouxe à mente as velhas demandas por um novo equilíbrio na ordem mundial - na ONU, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), instituições vistas no mundo em desenvolvimento como dominadas de forma demasiada pelos antigos aliados ocidentais.
O professor Stedman pensa que o recente surgimento do Grupo dos 20 países industrializados e em desenvolvimento, como principal centro de administração da crise da economia mundial, traz uma nova oportunidade. "Mesmo com suas imperfeições, o G-20 poderia ser o veículo para tentar repensar, remodelar a ordem internacional", afirma. "Mas como se reorienta o governo americano a usar o G-20 como instrumento para refazer a ordem internacional?"
"O momento para os EUA enfrentarem isso era em 1993. Agora, passaram 20 anos [da euforia de 1989] e é muito mais difícil fazê-lo. Ainda seria difícil se eles deixassem isso para 2016."
Luiz Carlos Bresser-Pereira:: O Muro de Berlim e a crise financeira
Comemoremos a queda do Muro, mas não nos deixemos enganar pelos radicais, sejam eles liberais ou socialistas
HOJE O mundo comemora os 20 anos da queda do Muro de Berlim. Nesse dia, uma revolta popular marcou o triunfo da democracia sobre o autoritarismo e a vitória do capitalismo sobre o estatismo. Essa dupla vitória, porém, levou o pensamento convencional do mundo desenvolvido a um duplo equívoco: supor que o mercado poderia substituir o Estado na coordenação da economia e supor que o ideal do socialismo fora definitivamente afastado.
O segundo erro não teve consequências maiores para o que se seguiu no mundo. A ideologia liberal ganhou um ponto em relação à socialista -o ideal da liberdade se sobrepôs aos ideais da igualdade e da solidariedade-, mas isso não significa que as sociedades modernas tenham abandonado os dois últimos.
Já o primeiro erro, que se consubstanciou no neoliberalismo, teve consequências negativas sobre o capitalismo vitorioso. O capitalismo venceu porque a coordenação pelo mercado é muito superior à coordenação por um modelo planificado depois (não antes) que uma sociedade tenha realizado sua acumulação inicial de capital e se industrializado. Mas isso não significa que sem regulação firme pelo Estado os mercados possam realizar sua tarefa de alocação de recursos e seu papel de criar oportunidade para empresários inovadores fundarem empresas, descobrirem mercados e impulsionarem a economia.
Se 1989 foi um marco histórico, 19 anos depois a Crise Financeira Global foi outro. Ela demonstrou a que excessos nos levou o triunfalismo liberal transformado em neoliberalismo.
No pós-Segunda Guerra Mundial, o capitalismo havia assumido um caráter social e democrático; vivemos então os 30 Anos Gloriosos do Capitalismo. Porém, desde o final dos anos 1970, esse grande avanço começou a ser desafiado pelo fundamentalismo de mercado neoliberal.
Nos anos 1990, apoiado na hegemonia política alcançada pelos EUA ao derrotar a União Soviética, o neoliberalismo transformou-se na "verdade única", promoveu a queda dos salários nos países ricos e a diminuição das oportunidades de investimento para os empresários, enquanto aumentava os bônus dos financistas e as rendas dos capitalistas rentistas vivendo de juros, aluguéis e dividendos. Causou, assim, o aumento da desigualdade ao mesmo tempo em que provocou sucessivas crises financeiras tanto nos países ricos como nos de renda média -crises que terminaram tristemente na grande e duradoura crise atual.
Comemoremos, portanto, a queda do Muro de Berlim, mas não nos deixemos enganar pelos radicais, sejam eles liberais, sejam socialistas. Estes fizeram revoluções que produziram sofrimentos e não resultaram no socialismo; aqueles se deixaram levar pelo neoliberalismo, promoveram a redução das taxas de crescimento quando comparadas com os 30 Anos Gloriosos e apenas beneficiaram os 2% mais ricos da população.
As ideologias não são mais simples falsa consciência como eram no tempo de Marx e Engels.
Ao descobri-las e denunciá-las, esses grandes pensadores afinal as tornaram sistemas de valores e crenças políticas conscientes e respeitáveis porque associados a objetivos fundamentais: a liberdade, para os liberais; a igualdade e a fraternidade, para os socialistas.
No momento, porém, em que as ideologias se tornam radicais, o sistema de concessões mútuas que está na base da política e, portanto, que define as sociedades democráticas passa a correr perigo. Tanto a queda do Muro de Berlim como a Crise Financeira Global nos servem de advertência.
Luiz Carlos Bresser-Pereira, 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".
Carlos Alberto Sardenberg::Berlim, 9/11/89
A queda do Muro representou:
1) A eliminação da ameaça de guerra nuclear, que seria literalmente o fim do mundo, da qual Estados Unidos e a falecida União Soviética se aproximaram algumas vezes. Mikhail Gorbachev acredita que evitou uma terceira guerra mundial ao resistir aos apelos dos dirigentes comunistas que ainda consideravam possível conter as rebeliões com um banho de sangue. Uma repressão desse calibre nos países do Leste Europeu, ali ao lado das democracias ocidentais, nas quais milhões de pessoas tentariam obter refúgio, certamente criaria todas as condições para um conflito global. Compreender que a ditadura chegara ao fim, não permitir a repressão, fechar as tropas russas nos quartéis - isso foi certamente um dos maiores méritos de Gorby.
2) A eliminação da alternativa capitalismo/socialismo, que teve efeitos não apenas nos países ex-comunistas, mas em todos os cantos do mundo onde forças políticas locais, as esquerdas, ainda tentavam vender o sonho socialista. Todos, gostando ou não, convergiram para o capitalismo e, frequentemente, em sua versão mais liberal. O debate político-econômico mudou o foco para as formas de capitalismo. No auge da crise financeira de 2008 alguns disseram que a quebra do Lehman Brothers representava para o capitalismo o que a queda do Muro representara para o socialismo. E o que se discute hoje por toda parte? Como conter os excessos dos banqueiros e corrigir as falhas de mercado. Ninguém, exceto meia dúzia de ingênuos ou bobos, propôs a volta de algum tipo de socialismo. Todos sabem agora que o socialismo não entrega crescimento e bem-estar. Não, Hugo Chávez não conta.
3) A aceleração e consolidação do processo de globalização, que nunca estaria completo com o mundo dividido pelo Muro. Isso abriu enormes possibilidades comerciais e financeiras, na medida em que incorporou ao mercado mundial milhões de consumidores e trabalhadores. As tropas do capitalismo desembarcaram nos ex-socialistas levando capital, tecnologia, modos de gestão e mercadorias. O comércio mundial, que já vinha em expansão, deu um salto com os novos mercados. O Brasil beneficiou-se muito especialmente desse fenômeno. As exportações brasileiras, que estavam havia tempos empacadas entre US$ 50 bilhões e US$ 60 bilhões anuais, saltaram para cerca de US$ 200 bilhões no curtíssimo prazo de seis anos. Esclarecendo: claro que todo esse ganho não veio das compras dos ex-socialistas. Companhias brasileiras foram para lá também, mas se beneficiaram especialmente do clima global de abertura comercial que se consolidou nos anos 1990.
4) Um extraordinário crescimento da economia mundial. Os últimos 20 anos não foram apenas de expansão global, mas um dos períodos mais brilhantes da história econômica do planeta. Não, não foi apenas uma bolha financeira. O produto mundial chegou a crescer espantosos 5% em vários momentos. O comércio mundial de mercadorias e serviços, favorecido por um movimento geral de redução das tarifas alfandegárias, cresceu acima dos 10% ao ano, por vários anos.
5) Firmou o consenso de que quanto mais comércio mundial, melhor. Na crise de 1929-1930, os países fecharam as suas fronteiras, aderiram ao protecionismo comercial acreditando que com isso salvariam empregos locais. O resultado foi o prolongamento da crise e... do desemprego por toda parte. Na crise de hoje, os governantes - no G-20, por exemplo - se apressaram a recomendar que todos mantivessem o comércio aberto. Sim, é verdade que vários aplicaram medidas protecionistas localizadas, inclusive os Estados Unidos, mas o ambiente geral é o de preservar o comércio.
Esperanças vãs - Mas há decepções relevantes.
Duas a destacar.
Primeira, parecia que, eliminada a guerra fria, o mundo caminharia para a universalização dos regimes democráticos e para uma era de paz. Havia outros conflitos, que, porém, não apareciam porque toda a atenção se concentrava na ameaça maior. E muitos países caminharam para tipos variados de autoritarismo.
A segunda decepção é econômica. Olhando o conjunto, o mundo todo cresceu. Mas alguns países tiveram desempenho melhor, outros se perderam pelo caminho. E, dentro dos países, o sistema também deixou muita gente para trás, isso gerando ressentimentos e ainda mais conflitos.
Falaremos disso na semana que vem.
Chávez pede que país se prepare para guerra
Líder diz a Obama que não use a Colômbia para atacar a Venezuela
O presidente venezuelano, Hugo Chávez, pediu ontem aos líderes militares que estejam "prontos para a guerra" e preparem o povo para "defender a pátria" ante uma agressão. As declarações foram feitas em meio a uma elevada tensão com a vizinha Colômbia por causa de um acordo de cessão de bases colombianas aos EUA.
"Senhor comandante da guarnição militar, batalhões de milícias, vamos treinar. Estudantes revolucionários, trabalhadores, mulheres: todos preparados para defender esta pátria sagrada que se chama Venezuela", disse Chávez em seu programa semanal de rádio e TV Alô, presidente! "Se vivêssemos em um mundo no qual se respeitasse a soberania dos povos e o direito internacional poderíamos nos dedicar a qualquer coisa menos nos preparar para a guerra", acrescentou.
Ele também pediu ao presidente americano, Barack Obama, para que não se equivoque usando a Colômbia para atacar a Venezuela. "Estamos dispostos a tudo, mas a Venezuela não será jamais uma colônia ianque nem de ninguém." Chávez destacou que seu país foi "cauteloso" com o triunfo de Obama "e logo percebeu a verdade". Segundo ele, o "império está vivo e mais ameaçador do que nunca".
"O governo colombiano transferiu-se para os EUA. Já não está em Bogotá. O governo e a oligarquia colombianos tiraram as máscaras", acrescentou o líder bolivariano. As relações entre a Venezuela e a Colômbia sofreram altos e baixos na última década e vivem nova crise desde julho. Chávez congelou as relações bilaterais após a Colômbia anunciar que pretendia ceder o uso de sete de suas bases aos EUA.
Bogotá disse que levará as "ameaças de guerra" de Chávez ao Conselho de Segurança da ONU e à Organização dos Estados Americanos (OEA), mas manifestou sua disposição ao diálogo franco.
MEDIAÇÃO
Ainda ontem, o presidente da Confederação de Câmaras de Comércio da Colômbia, Eugenio Marulanda, pediu a mediação urgente da ONU ou do Brasil para reduzir as tensões com a Venezuela após Chávez dizer que seu país está se preparando para a guerra. "Necessitamos uma mediação internacional de alto nível, como da ONU ou de (presidente Luiz Inácio) Lula da Silva, para dissuadir essa loucura que se tornou a relação entre Colômbia e Venezuela", disse Marulanda.
Em uma vitória de Obama, Câmara aprova lei de reforma da saúde
Projeto amplia a cobertura para 36 milhões de americanos que não têm plano; 39 democratas votaram contra
Patrícia Campos Mello
A Câmara dos EUA aprovou na noite de sábado a reforma do sistema nacional de saúde, uma grande vitória para o presidente Barack Obama. Há décadas os EUA vêm tentando reformar seu sistema de assistência médica, que deixa milhões de pessoas sem plano de saúde.
Na noite de sábado (madrugada de ontem em Brasília), a Câmara, controlada pelos democratas, aprovou um projeto de lei que amplia a cobertura para mais 36 milhões de americanos e impõe várias restrições sobre os planos de saúde. A medida passou raspando: foram 220 votos a favor e 215 contra.
"A Câmara nos deixou mais próximos do que nunca de uma reforma abrangente do sistema de saúde", disse Obama. A reforma é a prioridade da agenda do presidente e ele investiu muito capital político na aprovação da lei - no sábado, foi até o Capitólio pedir aos democratas que "respondessem ao chamado da história". Agora, a lei será votada no Senado, onde enfrenta enormes desafios (mais informações na pág. 10).
"A lei da Câmara já chega morta ao Senado", disse o senador republicano Lindsey Graham. "Trata-se de uma legislação escrita por esquerdistas para esquerdistas." Só do processo no Senado, as versões das duas Casas serão discutidas para se transformarem na lei final que, depois de aprovada, deve ser assinada pelo presidente.
Com a lei, a maioria dos americanos passa a ser obrigada a ter plano de saúde e os mais pobres recebem subsídios para pagar as mensalidades. Grandes empresas serão obrigadas a cobrir seus funcionários. Quem não cumprir, pagará multa.Ficam banidas práticas das seguradoras como discriminar pacientes por causa de doenças pre-existentes e cobrar altas somas além das mensalidades.
Conforme aprovada na Câmara, a lei cria um mercado de planos regulado pelo governo e estabelece também uma opção estatal para competir com as empresas privadas e manter as mensalidades baratas.
A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, comparou a vitória à aprovação da lei de previdência social em 1935 e ao Medicare (que garante assistência médica para pessoas acima de 65 anos) em 1965 - as últimas duas ocasiões em que os EUA aprovaram reformas significativas no sistema de saúde.
OPOSIÇÃO
Apenas um republicano votou a favor da lei, mas 39 democratas votaram contra. Os republicanos criticam a medida por levar a uma estatização do sistema de saúde e custar muito. A reforma custará US$ 1,2 trilhões em dez anos. Para pagar pela expansão da cobertura, o texto prevê cortes nos gastos do Medicare de US$ 400 bilhões em dez anos e um aumento de impostos de 5,4% para pessoas que ganham mais de US$ 500 mil anuais.
Os democratas mais liberais tiveram de fazer uma concessão aos mais moderados, aceitando uma emenda que restringe a cobertura de abortos no novo plano.
Zelaya rejeita divisão de gabinete
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Para presidente hondurenho deposto, acordo de Tegucigalpa está fracassado
O presidente deposto de Honduras, Manuel Zelaya, anunciou ontem que rejeita a proposta feita pelo presidente do governo de facto, Roberto Micheletti, para dividir em partes iguais o governo de unidade, proposto no acordo assinado por ambos na semana passada.
"Agora estão pedindo um resgate por Honduras. Para entregar Honduras estão pedindo que façamos a concessão de metade do gabinete, além disso, que Micheletti coordene o governo de unidade e reconciliação", declarou Zelaya, deposto em 28 de junho, à Rádio Globo. "O que estão propondo é praticamente outro golpe à democracia, por isso as propostas não foram aceitas por nós", acrescentou Zelaya, que está abrigado na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa desde 21 de setembro. Ele declarou fracassado o Acordo Tegucigalpa-San José depois que, na quinta-feira - data-limite para a formação do governo de unidade -, Micheletti anunciou um governo com ele na presidência, sem a participação de zelaystas. O governo de facto acusou ontem Zelaya de descrumprir o acordo, mas voltou a pedir a retomada do diálogo e a formação do governo de unidade.
DESISTÊNCIA
O candidato independente à presidência de Honduras, o esquerdista Carlos Reyes, anunciou ontem a retirada de sua candidatura ao considerar que participar da disputa equivaleria a "legitimar" o golpe contra Zelaya. Reyes, que aparecia como o terceiro na preferência do eleitorado, diz que as condições no país após o golpe não permitem eleições livres.
Mas o embaixador dos EUA em Honduras, Hugo Llorens, disse ontem que rejeitar as eleições seria "um erro histórico". A declaração é mais um sinal de que a Casa Branca poderá reconhecer o próximo governo hondurenho mesmo que Zelaya não seja restituído. "Não se pode negar ao povo esse direito (de votar). Isso seria um erro histórico", afirmou.
ATAQUE
Desconhecidos dispararam no sábado à noite contra um comboio que levava o promotor-geral de Honduras, Luis Rubi, perto de Montagua, centro de Honduras. Rubi, que escapou ileso, analisa os 18 processos abertos contra Zelaya e deve dar sua opinião ao Congresso sobre se procede a restituição de Zelaya ao cargo.