sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Fernando Gabeira* - Um grande exorcismo

- O Estado de S.Paulo

Se foi possível nos EUA, por que não aqui, com personagens tão caricatos?

A derrota de Donald Trump não só tranquilizou, como trouxe alento a muitos países no mundo. A expressão de Francis Fukuyama referindo-se ao exorcismo para definir a vitória de Joe Biden é muito precisa. Parece que tudo volta lentamente a um curso mais racional, menos imprevisível. O Acordo de Paris volta a ser um instrumento potencialmente eficaz para combater o aquecimento global. Angela Merkel saudou a volta de uma aliança transatlântica e suas possibilidades.

Alguns países se recusam a reconhecer a derrota de Trump. China, Rússia e Brasil estão entre eles, por motivos diferentes, creio. Na linguagem diplomática o atraso é uma mostra inequívoca de insatisfação com o resultado. Tanto a China quanto a Rússia contavam com o avanço do processo de decadência americana, encarnado por Trump e seu isolacionismo.

O caso brasileiro é de orfandade. Bolsonaro perdeu seu grande inspirador. E a política externa, comandada por Ernesto Araújo, não tem mais o que considera o líder do Ocidente que iria fazer prevalecer os valores morais sobre o materialismo reinante. Não se sabe de onde se trouxe uma figura laranja, cheia de problemas com o Fisco, rude com as mulheres, para o cargo de guardião do cristianismo.

A pior das ilusões foi a expectativa provinciana de Bolsonaro se tornar amigo de Trump. Este sabe que nações não têm amigos e está escorado no slogan “America first”. Objetivamente, fez de Bolsonaro um fiel seguidor, pronto para aprovar tudo em nome de uma pretensa amizade pessoal, ali onde estavam em jogo interesses nacionais. A exportação do aço foi taxada, Bolsonaro dilatou o prazo para a importação do etanol e colocou sua diplomacia num ato de campanha eleitoral na fronteira com a Venezuela, quando da visita de Mike Pompeo. Para dar mais uns votinhos a Trump na Flórida. O Brasil armou o circo que Pompeo precisava.

Merval Pereira - Paciência histórica

- O Globo

Mais fácil imaginar um país como o nosso, em uma região com uma triste história de golpes militares e ditaduras, temer uma intervenção militar do que os Estados Unidos. Mas vivemos em tempos tão estranhos que a insistência do presidente Donald Trump em não reconhecer a derrota na eleição presidencial para Joe Biden está levando os americanos a uma situação nunca vista, a de temer um golpe para Trump continuar no poder.

A disputa não vai apenas pelo lado da Justiça, onde se decidem os embates político-eleitorais nos Estados Unidos, mas também no campo militar. A demissão do Secretário de Defesa Mark Esper, e a nomeação de assessores leais no Pentágono trouxeram para a cena política um temor que não combina com a tradição democrática americana, mas com a atuação política de Donald Trump, que não gosta dos limites que as instituições democráticas impõem ao presidente da República.

A demonstração de desapreço pela liturgia democrática não deve passar disso, uma arrogância sem resposta institucional favorável. Protagonista de memes nas redes sociais que o transformam em bobo da corte, não no rei que gostaria de ser, Trump vai se deteriorando pessoalmente, mas também a maior democracia do mundo sofre com seus arroubos.

O fato de o país continuar seu cotidiano sem grandes alterações pode ser uma demonstração, mais adiante, de que a democracia tem meios de neutralizar as bazófias de Trump sem torná-las uma ameaça real. Aqui no Brasil, à custa de crises e ameaças à democracia, conseguimos controlar o nosso Trump tupiniquim.

Eliane Cantanhêde - Sem saliva, sem pólvora

- O Estado de S.Paulo

Como Geisel e Aureliano, Mourão dá um choque de realidade nos absurdos

A ira despudorada do presidente Jair Bolsonaro não é só contra o futuro presidente da maior potência do planeta e o governador do principal Estado do Brasil, mas também contra o seu próprio vice-presidente, o general de quatro estrelas Hamilton Mourão, que parece, no íntimo, se divertir com o descontrole e os absurdos do presidente, que vira piada mundo afora.

Quando acaba a saliva, tem de ter pólvora.” A patética ameaça de Bolsonaro foi dirigida a Joe Biden, mas poderia ter sido para Mourão, já que os dois estão sem se falar. Acabou a saliva e sobrou a pólvora entre eles, lembrando João Figueiredo e Aureliano Chaves. A diferença é que Figueiredo era general e Aureliano, civil; Bolsonaro é capitão e Mourão, general.

O último presidente do regime militar também era destrambelhado, não raro ridículo, mas não estimulava golpistas, nunca ameaçou presidente nenhum, muito menos o dos EUA, nem pôs a saúde dos brasileiros em risco por ignorância e autoritarismo. O médico sanitarista Paulo Almeida Machado foi muito bem no Ministério da Saúde.

Bernardo Mello Franco - Saliva e pólvora: razões para o descontrole de Bolsonaro

- O Globo

Na terça-feira, Jair Bolsonaro ameaçou trocar a saliva pela pólvora nas relações com os Estados Unidos. Já se passaram três dias e ele ainda não mandou a FAB bombardear a Estátua da Liberdade. A bravata só serviu para expor os militares ao ridículo. Os generais que se associaram ao capitão não podem nem reclamar.

Bolsonaro eleva o tom das sandices sempre que se vê em apuros. É uma tática conhecida. A cortina de fumaça ajuda a desviar a atenção e manter a tropa mobilizada. Na terça, não funcionou. Além de delirar com uma guerra impossível, o presidente marcou gol contra ao escancarar sua politicagem com a vacina. No mesmo dia, ele comemorou um suicídio, chamou os Brasil de “país de maricas” e disse que sua vida é “uma desgraça”.

O capitão tem motivos para exibir descontrole. Na semana passada, o Ministério Público do Rio denunciou o senador Flávio Bolsonaro por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A confissão de uma funcionária-fantasma agravou os problemas do Zero Um com a Justiça.

Luiz Carlos Azedo - Quanto pior, pior mesmo

- Correio Braziliense

O ministro da Economia, Paulo Guedes, antecipou que pretende prorrogar o auxílio emergencial caso a pandemia de COVID-19 tenha uma segunda onda

As eleições de domingo já estão razoavelmente desenhadas nas pesquisas de opinião, principalmente no chamado Triângulo das Bermudas — Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte —, que revelam opções prudentes dos eleitores. Estão preferindo manter os prefeitos Bruno Covas (PSDB), em São Paulo, e Alexandre Kalil(PSD), em Belo Horizonte, e trazer de volta o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), diante da desastrosa administração do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio de Janeiro.

Com exceção de Kalil, que deve ser eleito no primeiro turno — está com 63% de intenções de votos, contra João Vitor Xavier (Cidadania), que tem 8%, em segundo —, Covas e Paes provavelmente terão que suar a camisa no segundo turno, principalmente se os adversários forem Marta Rocha (PDT) e Guilherme Boulos(PSOL), respectivamente. Num balanço rápido pelas capitais, as expectativas de que o presidente Jair Bolsonaro teria influência decisiva nas eleições se confirmaram com o sinal trocado: está puxando os candidatos que apoia para baixo.

Os melhores exemplos são Celso Russomano, que liderava em São Paulo, cuja candidatura desidratou completamente e está fora do segundo turno. E a Delegada Patrícia (Podemos), no Recife, que parecia ir para o segundo turno contra o líder nas pesquisas, João Campos (PSB), mas, a partir do apoio de Bolsonaro, também definhou. Marília Arraes (PT) e Mendonça Filho (DEM) disputam o segundo lugar. Ontem, pesquisa DataFolha mostrou o porquê de o apoio de Bolsonaro se tonar tóxico nessas disputas eleitorais: sua rejeição aumentou muito, chegando a 50% em São Paulo.

Hélio Schwartsman - Um país de maricas

- Folha de S. Paulo

Somos, sim, covardes e medrosos, porque ainda não iniciamos o processo de impeachment

Hoje vou concordar com Bolsonaro. Peço antecipadamente desculpas pelo nível da linguagem, mas somos, sim, um país de maricas, no sentido de medrosos, covardes, poltrões. Somos tudo isso porque ainda não iniciamos um processo de impeachment contra o presidente, apesar do impressionante número de crimes de responsabilidade (e comuns) que ele acumula.

No último dia 10, uma terça-feira especialmente gorda, ele conseguiu, num intervalo de poucas horas, aniquilar a dignidade do cargo, colocar em perigo a saúde pública e ainda ameaçar ir à guerra contra os Estados Unidos, a potência militar hegemônica do planeta que nos derrotaria de olhos fechados. Os otimistas podem regozijar-se com o fato de que, desta vez, ele pelo menos não atacou o Legislativo nem o Judiciário, como fazia semanalmente até pouco tempo atrás.

Ruy Castro* - Demência de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Como nos submetemos por 21 anos a militares que se sujeitam a ser desmoralizados por um louco?

Para nós que passamos 21 anos de vida adulta (1964-1985) sob a ditadura, os generais eram sujeitos sinistros, de óculos escuros, que nos ditavam quando, se e em quem podíamos votar, o que podíamos ler, ver, escutar, dizer e escrever e, se falássemos em instituições, direitos e liberdade, eles mandavam prender e arrebentar. Eles tinham as armas, as verbas e as canetas com as quais impor sua autoridade. E os porões, instrumentos de tortura e beleguins para aplicá-la. A mera visão de uma farda era intimidadora. Ela nos reduzia moralmente à menoridade, às calças curtas, à fralda.

Aí está algo incompreensível para um brasileirinho de hoje. Ele não entenderá como os militares podiam ter essa força. Para ele, militares são sujeitos que Jair Bolsonaro põe no governo, exibe nas redes sociais e logo começa a depreciar, diminuir, desmoralizar e, por fim, fulmina com a demissão. Em menos de dois anos, já fez isso com 16 generais, quatro brigadeiros e um almirante, e só entre os oficiais de alta patente.

Bruno Boghossian – O fiasco da contenção de danos

- Folha de S. Paulo

Ninguém teve coragem de usar a ferramenta mais eficaz: o impeachment de um presidente irresponsável

Na terceira semana de trabalho sob o governo Jair Bolsonaro, em fevereiro de 2019, a Câmara impôs ao presidente uma derrota vergonhosa. Mais de 350 deputados atropelaram o Palácio do Planalto e aprovaram a derrubada de um decreto criado para limitar a transparência de documentos públicos.

Bolsonaro recuou e revogou a norma dias depois, para fugir de um novo revés na votação do Senado. A decisão foi celebrada como um sinal de que os Poderes se levantariam contra os abusos do novo governo. Num canto qualquer de Brasília, alguém disse que as instituições estavam funcionando normalmente.

Passados 21 meses, a política brasileira continua presa a um esforço contínuo de contenção de danos. O presidente causa prejuízos ao país e comete seguidos crimes de responsabilidade, enquanto o Congresso e o Supremo se limitam a limpar uma pequena parte da bagunça.

Reinaldo Azevedo - Preparem-se! Bolsonaro quer confronto

- Folha de S. Paulo

Cerco a Flávio afeta o equilíbrio do presidente, que abre a tampa do bueiro

Jair Bolsonaro vai dar trabalho. O cerco dos fatos ao senador Flávio Bolsonaro afeta o seu equilíbrio instável, e ele abre a tampa do bueiro. Chama os brasileiros de “maricas”, ameaça os EUA com retaliação militar, mente sobre efeitos colaterais da vacina, anuncia a cura da Covid-19, mergulha numa espiral de demência.

Chega mesmo a ter um rasgo de sinceridade ao afirmar: “A minha vida aqui é uma desgraça, é problema o tempo todo, não tenho paz para absolutamente nada”. E lá vem um novo ataque aos de sempre, aos urubus: “Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel. Quando eu saio, vem essa imprensa perturbar.”

Imagine aí, leitor, que atividades a palavra “nada” resume. Não enchêssemos tanto a paciência de Bolsonaro, não existisse um país para ele governar, em que ocuparia o seu tempo, além de tomar caldo de cana e comer pastel? FHC foi entrevistado logo depois de deixar o poder. Quiseram saber se experimentava alguma sensação de vazio, alguma melancolia de rei destronado.

Vinicius Torres Freire - A nova temporada de festas do corona

- Folha de S. Paulo

Negligência festeira e governo incapaz criam risco de verão sufocante: a Europa avisa

Parte da gente remediada, bem de vida ou rica que frequenta as praias do litoral norte de São Paulo marca grandes festas de fim de ano, noticia esta Folha. Aparecem relatos aqui e ali de hospitais privados cuidando de mais doentes de Covid-19, embora os dados não sejam bastantes nem para esboçar um chute de estimativa das internações recentes.

O governo paulista, que teria o mapa completo do problema, diz que não há tendência de aumento da ocupação de leitos por causa da epidemia.

As notícias da agenda animada de festas, no entanto, fazem lembrar da negligência do início da calamidade, das festas de casamento e outras aglomerações que ajudaram a espalhar o vírus como bombas sujas, radioativas.

Não há fatos que indiquem um repique da epidemia em São Paulo, na maior parte dos estados ou na média nacional. Mas, como se escrevia faz duas semanas nestas colunas, a Europa outra vez nos dá um alerta. Foi assim em fevereiro e março, para o que muita gente aqui ligou pouco.

Para resumir um assunto complicado, a situação em muitos países da Europa está por ora fora de controle, a julgar pelo número de mortes. Como as novas restrições e distanciamentos foram impostos no início do mês, ainda não dá para saber se tiveram resultado. Mas o espalhamento da doença, com ou sem restrições, vai danar a atividade econômica europeia em novembro.

Dora Kramer - Pé no chão

- Revista Veja

Uma coisa é certa: em 2022 a política tradicional não embarca outra vez na canoa de Bolsonaro

A notícia do encontro de Luciano Huck com Sergio Moro levou de volta à cena da sucessão presidencial o apresentador que andava sumido desde a eclosão da pandemia. Outro efeito foi expor o ex-juiz ao frio e à chuva dos ataques à direita e à esquerda e enquadrá-lo na moldura de companhia questionável: um tanto tóxica no meio político, mas bem-aceita na sociedade.

Por ora, fica por aí o andamento da construção de uma candidatura de centro capaz de enfrentar Jair Bolsonaro em 2022. Isso no tocante ao que os artífices da empreitada estão dispostos a revelar ao público, porque nos bastidores a coisa segue o ritmo das conversas, aproximações e lances antecipados para futuras alianças que vêm acontecendo desde o ano passado.

Huck recolocado, Moro testado e João Doria instigado, mas mais interessado em se firmar como contraponto a Bolsonaro do que em disputar espaços internos na articulação de uma alternativa ao presidente. Este é o quadro e dele não veremos grandes evoluções até que se possa dar por encerrada a crise sanitária, definida a troca (ou repetição) do comando no Congresso e delineados os rumos da economia, para o bem ou para o mal.

Aqui o mapa do resultado do primeiro turno da eleição municipal tem importância relativa. Para antecipar definições sobre vencedores e perdedores em 22, o peso é zero. Temos exemplos a mancheias de derrotados numa e vitoriosos na seguinte, e vice-versa. Importa sim o tamanho do eleitorado que sairá representado por essa ou aquela força política, aí sim projetando uma tendência do estado de espírito do eleitorado.

Ricardo Noblat - Está cada vez mais pesado o ar que Bolsonaro e Mourão respiram

- Blog do Noblat | Veja

Mas o show tem que continuar

Evite convidar para a mesma mesa o presidente Jair Bolsonaro e seu vice, o general Hamilton Mourão. Eles ainda convivem por obrigação. São capazes de aparecerem juntos e sorridentes em fotos para causar boa impressão. Mas tudo não passa de fingimento. Mourão não fala mal de Bolsonaro nem em público nem em particular. Bolsonaro desanca Mourão sempre que pode.

Só nesta semana foram duas vezes. Na última segunda-feira, em declaração à CNN, rebaixou Mourão ao afirmar que não conversa com ele sobre Estados Unidos nem sobre qualquer outro assunto. Mourão havia dito que “na hora certa” o presidente falaria sobre o resultado das recentes eleições americanas. Bolsonaro não perdeu a oportunidade de deixar seu vice em maus lençóis.

 “O que ele (Hamilton Mourão) falou sobre os Estados Unidos é opinião dele. Eu nunca conversei com o Mourão sobre assuntos dos Estados Unidos, como não tenho falado sobre qualquer outro assunto com ele”, disse Bolsonaro, que ainda não se manifestou sobre a vitória de Joe Biden e teima em aguardar o fim das ações judiciais movidas pelo presidente Donald Trump, seu aliado.

Desta vez, Bolsonaro chamou de “delírio” a existência de um plano para criar mecanismos de expropriação de propriedades, no campo e nas cidades, com registros de queimadas e desmatamentos ilegais. A medida consta de documento do Conselho Nacional da Amazônia Legal, presidido por Mourão ‘Se alguém levantar isso, eu demito. A não ser que seja indemissível’, bateu Bolsonaro

José de Souza Martins* - Eleições nos EUA

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Donald Trump e Jair Bolsonaro, não são conservadores, os dois presidentes representam, na verdade, as anomalias da modernidade

Independentemente de seu resultado definitivo, a eleição presidencial americana já fez significativas revelações sociológicas de implicações políticas sobre aquele país e sobre o mundo que em torno dele gravita. Tanto nos países que têm com ele relações econômicas quanto nos que têm com ele também relações de subserviência ideológica, como o nosso deste momento.

O eleitorado americano está hoje dividido entre os que seguem as referências sociais tradicionais que distinguem democratas e republicanos e os que vacilam e adotam orientações que negam aquilo que expressaria sua situação social. Votaram em partido diverso do que corresponde “ao que socialmente são”. De outro modo, isso tem acontecido aqui também: “ricos” votando em candidatos de “pobres”, “pobres” votando em representantes da mentalidade dos “ricos”.

Não se trata de que as sociedades estejam se tornando mais conservadoras, como se tem alegado nas últimas horas em relação aos Estados Unidos. E como se tem dito em relação ao Brasil desde a eleição do atual presidente. Nem Trump nem Bolsonaro são conservadores. A tradição conservadora é uma tradição social e política séria, centralizada na valorização da ordem, no temor de que o mundo do indivíduo e o individualismo sobreponha-se a modos de viver e de pensar referidos às concepções de pessoa e de comunidade e respectivos valores, especialmente os da família e do familismo. Trump representa as anomalias da modernidade. Bolsonaro também.

Simon Schwartzman* - Dançando por Biden

- O Estado de S.Paulo

Na eleição americana, o dado mais esperançoso é a grande rejeição de Trump pelos jovens

Vendo as imagens do povo dançando nas praças, festejando a derrota de Donald Trump, mais do que a vitória de Joe Biden, é inevitável comparar com 12 anos atrás, quando da eleição de Barack Obama. Tal como agora, Obama derrotou um presidente medíocre e inescrupuloso, que jogou o país numa guerra insensata no Iraque e deixou a economia afundar. Havia a sensação de que algo realmente novo e importante estava acontecendo nos Estados Unidos, com impacto em todo o mundo. Obama era negro, mas foi eleito com a bandeira de uma sociedade pós-racial. Era um intelectual com fortes valores humanistas, que projetava uma política internacional de respeito e consideração para diferentes culturas. No ano seguinte ganhou o Prêmio Nobel da Paz, não pelo que já tinha feito, mas pelo que prometia. Sua eleição parecia indicar que os Estados Unidos, finalmente, haviam rompido as barreira do racismo, do isolacionismo e do descaso com as políticas sociais.

Oito anos depois, sem ter conseguido fazer tudo o que prometia, era normal que Obama não conseguisse fazer seu sucessor. Mas a eleição de Trump não foi uma simples alternância de poder, mas uma indicação de que a nova era anunciada pela eleição de Obama era, em grande parte, uma ilusão, e que coisas piores estavam por vir. Ao tomar de assalto o Partido Republicano, Trump capitalizou uma forte corrente de preconceitos raciais, anti-intelectuais e de xenofobia que pareciam ter sido postos à margem da sociedade americana e subitamente mostraram suas garras. Com ele, a mentira sistemática das fake news, a prevalência descarada dos interesses comerciais privados sobre o interesse público, o desmonte das instituições governamentais e sua ocupação por bajuladores, o racismo, a xenofobia e todos os preconceitos que antes não se manifestavam se tornaram “normais”. O passo seguinte, inevitável, era o ataque às instituições mais centrais do sistema democrático, culminando, agora, com o próprio sistema eleitoral.

Humberto Saccomandi - Trump leva a negação do outro ao limite

- Valor Econômico

Ao acusar regularmente Joe Biden e os democratas de quererem “destruir tudo o que amamos e estimamos”, Trump preparou o terreno para deslegitimiar o outro lado e contestar, sem provas, o resultado eleitoral

 “A esquerda radical está empenhada em destruir tudo o que amamos e estimamos”, disse o presidente Donald Trump num comício na Flórida, em 12 de outubro. O atual ciclo eleitoral nos EUA é mais um exemplo gritante desse tipo de retórica excludente, na qual só um lado se vê legitimado a vencer. É um jogo de soma zero que ameaça a democracia. As próximas semanas serão decisivas.

Trump passou a campanha usando esse tipo de retórica. Biden e os democratas “vão matar nossos empregos, desmantelar nossa polícia, dissolver nossas fronteiras, libertar criminosos estrangeiros, elevar nossos impostos, confiscar nossas armas (...), destruir nossos subúrbios e tirar Deus do espaço público”, tuitou ele em outubro.

O presidente costuma usar uma linguagem hiperbólica. Quase tudo o que ele faz é “tremendous”. O que outros fazem ou fizeram é um “disaster”. É um mundo anedótico em preto ou branco. Mas, à parte o aumento de impostos (que parece inevitável devido ao aumento dos gastos com a epidemia), nada do que ele tuitou constava do programa do democrata Joe Biden, que é basicamente um moderado, que seria um centrista em qualquer país europeu. O objetivo desse tipo de discurso é incutir a suspeita, o medo, o ódio ao outro.

Celso Ming - Mesmo com vacina, retomada pode demorar

- O Estado de S.Paulo

É incerta a recuperação em 'V' da economia

A disponibilidade da vacina pode fazer toda a diferença, mas é preciso evitar deduções apressadas. Uma coisa é a capacidade de imunização da maioria da sociedade à contaminação. E outra, bem diferente, é a capacidade de recuperação da atividade econômica e do emprego.

Mesmo que a vacina fique disponível no Brasil ainda no primeiro trimestre de 2021, é improvável que a população possa ser imediatamente imunizada. Isso levaria alguns meses mais. Portanto, é incerta uma retomada em “V”, como mostram algumas apostas.

Os setores da economia a se recuperarem mais rapidamente têm sido objeto de considerações intuitivas. São os de viagens, energia, petróleo e o ramo do entretenimento. Ainda assim, convém cercá-las de cautela.

Rogério F. Werneck - Bolsonaro sem Trump

- O Globo | O Estado de S. Paulo

Planalto sabe que a eleição de Biden tornará descaso com a Amazônia mais custoso

Ainda é cedo para vislumbrar com nitidez todos os complexos desdobramentos da vitória de Joe Biden. Mas, mundo afora, governos de nações democráticas festejam, aliviados, a perspectiva de voltar a contar, em Washington, com um presidente que possa restaurar o papel crucial dos EUA na cooperação multilateral que se faz necessária para a boa governança do planeta. Do combate à pandemia ao aquecimento global. Dos esforços concertados de recuperação da economia mundial ao controle eficaz da proliferação nuclear.

Em Brasília, contudo, o governo não esconde sua contrariedade. Não bastasse já se ter permitido indecoroso alinhamento explícito ao candidato republicano durante a campanha presidencial nos EUA, o Planalto fechou-se em copas. Impôs ao governo silêncio fechado sobre o resultado da eleição. E proibiu que órgãos governamentais divulguem projeções econômicas que levem em conta a vitória do candidato democrata. Até o início da tarde de ontem, Bolsonaro ainda não se dignara a reconhecer a vitória de Joe Biden. Mais constrangedor, impossível.

Míriam Leitão - Além da moeda instantânea

- O Globo

No dia da eleição americana, havia uma animação no Banco Central brasileiro. Nada a ver com o que se passava nos condados azuis e vermelhos. Era o primeiro dia de testes de um sistema de pagamentos que começou a ser arquitetado há cinco anos. Para o cliente, o pagamento instantâneo, chamado de PIX, pode parecer apenas uma comodidade, mas, segundo o diretor do BC João Manoel Pinho de Mello, ele levará a mais competição, menores custos e mais inclusão no sistema financeiro. A nova forma de pagar começa a operar na segunda-feira com a expectativa de mudar a relação que o brasileiro tem com o dinheiro. Se conseguir diminuir a concentração do nosso mercado bancário já terá provocado um efeito importante.

O objetivo do PIX, como todo mundo entendeu, é que o dinheiro e a informação trafeguem de forma imediata. Cerca de 10 segundos, em média, segundo o Banco Central. E sem custos para pessoas físicas. Os clientes que pagam taxas em transferências terão redução de despesas, os credores terão menos riscos porque saberão na hora que as dívidas foram quitadas.

Flávia Oliveira - Vejam lá o que vão fazer

- O Globo

Brasileiros têm votado com o fígado, metáfora para a força do ódio, e colhido retrocesso

Da última vez em que votaram para prefeito, em 2016, os cariocas elegeram Marcelo Crivella, ora rejeitado por seis entre dez moradores. Os brasileiros, dois anos atrás, legaram o Palácio do Planalto àquele que, sem justificativa para a coleção de fracassos econômicos e sociais, compra briga com vacina e ameaça com pólvora o presidente eleito dos EUA, o democrata Joe Biden, a quem, em negação, ainda se refere como candidato. Sem falar em Sérgio Cabral, dois mandatos no Guanabara, hoje condenado a quase três séculos de prisão; e Wilson Witzel, governador escolhido em 2018, afastado em agosto passado, despejado da residência oficial no início da semana. Domingo é dia de voto. Vejam lá o que vão fazer.

Os institutos de pesquisa têm indicado que, Brasil afora, eleitores andam reticentes à tal da nova política na corrida municipal deste 2020 de pandemia da Covid-19, desemprego galopante, inflação de alimentos, recrudescimento da fome. No Rio de Janeiro, quatro nomes conhecidos — além de Crivella (Republicanos), o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM), a deputada federal Benedita da Silva (PT), a deputada estadual Martha Rocha (PDT) — encabeçam as consultas de intenção de votos desde o início da campanha, em setembro. Um deles receberá uma cidade completamente entregue às baratas.

Nelson Motta - Nas entranhas do poder

- O Globo

Samuel Wainer sacrificou valores em suas relações com políticos e empresários

Não tenho diploma de jornalista. Mas tive a sorte de fazer um intensivão de dois anos como colunista de Samuel Wainer, que revolucionou a imprensa brasileira no século passado e foi um personagem de grande influência política nos governos Vargas e João Goulart.

Samuel era um colosso de charme e simpatia, cabeleira prateada, inteligência rápida e aguda, e inesgotável capacidade de trabalho, movido a anfetaminas, que dedicou sua vida, sua saúde e sua integridade a seu jornal “Última Hora”, estabelecendo novos padrões de qualidade de textos e fotos e novos patamares salariais de jornalistas, mudando o rumo da imprensa no Brasil. Tão poderoso foi Samuel em seu tempo, que teve relações quase carnais com o poder, como conselheiro influente de Getúlio Vargas e João Goulart e apoiado por financiamentos eternos do Banco do Brasil.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

O voto e suas consequências – Opinião | O Estado de S. Paulo

Sendo um direito, o voto é também responsabilidade. Não há forças ocultas. Não há geração espontânea. Há o voto e suas consequências.

É frequente ouvir a reclamação de que “nenhum deputado no Congresso me representa”. Ainda que seja habitual, quase um lugar-comum, incapaz de surpreender quem quer que seja, essa crítica tem sérias implicações. Ela não significa, por exemplo, que o Legislativo está distante ou que as leis aprovadas refletem pouco as preferências políticas pessoais. A frase “nenhum parlamentar me representa” estabelece uma radical – e absolutamente irreal – separação entre eleito e eleitor.

Como diz a Constituição, todo o poder emana do povo. No Congresso, nas Assembleias Estaduais e nas Câmaras Municipais, não há ninguém ocupando uma cadeira por sucessão hereditária, patrimonial, cultural ou intelectual. Todos estão lá pela mesma e única razão: receberam votos do eleitor. É verdade que, em muitos lugares, a posse de determinado sobrenome facilita a eleição, mas o critério decisivo e determinante continua sendo o voto, a vontade do eleitor.

E se foi o voto que colocou todos os membros do Poder Legislativo em seus respectivos cargos, é preciso reconhecer uma consequência insofismável – todos, sem exceção, são representantes dos eleitores. Todos, de fato e de direito, representam a população, que os escolheu.

Num regime onde todos os cidadãos maiores de idade têm o direito de votar é falso dizer que “ninguém me representa”. Talvez isso seja verdade num país em que, por questão de sexo, raça, religião ou outro critério de discriminação, determinadas pessoas são excluídas do direito de votar. Nesse caso, quem foi privado do voto pode, com inteira razão, dizer que os eleitos não o representam. No entanto, onde o direito de voto, além de ser assegurado a todos, é obrigatório, essa afirmação não tem respaldo na realidade.

Música | Marisa Monte e Paulinho da Viola -Dança da Solidão, em São Paulo

 

Poesia | Joaquim Cardozo -O Relógio

Quem é que sobe as escadas
Batendo o liso degrau?
Marcando o surdo compasso
Com uma perna de pau?

Quem é que tosse baixinho
Na penumbra da ante-sala?
Por que resmunga sozinho?
Por que não cospe e não fala?

Por que dois vermes sombrios
Passando na face morta?
E o mesmo sopro contínuo
Na frincha daquela porta?

Da velha parede triste
No musgo roçar macio:
São horas leves e tenras
Nascendo do solo frio.

Um punhal feriu o espaço...
E o alvo sangue a gotejar;
Deste sangue os meus cabelos
Pela vida hão de sangrar.

Todos os grilos calaram
Só o silêncio assobia;
Parece que o tempo passa
Com sua capa vazia.

O tempo enfim cristaliza
Em dimensão natural;
Mas há demônios que arpejam
Na aresta do seu cristal.
No tempo pulverizado
Há cinza também da morte:
Estão serrando no escuro
As tábuas da minha sorte.