O Globo, 7/6/2018
Quando comecei a trabalhar em jornal, época em que os dinossauros caminhavam felizes sobre a Terra e vocês ainda não eram nascidos, havia censura. Havia departamentos de censura, um conselho superior de censura e um monte de censores para povoá-los e brandir a tesoura: cidadãos que acordavam de manhã cedo, tomavam banho, tomavam café, escovavam os dentes e iam para o escritório para censurar o trabalho alheio. Ganhavam bem para fazer o que o povo faz hoje de graça na internet. Eu não tenho nenhuma saudade daqueles tempos mas, pensando bem, acho que preferia aqueles censores estatutários às hordas linchadoras do Facebook.
Aquela censura era escancarada e despertava o melhor em todos nós, que a desafiávamos escrevendo nas entrelinhas, buscando figuras de retórica e modos de dizer as coisas sem dizer. Enfrentá-la era um desafio cotidiano, uma adrenalina constante. Descobrir as pistas espalhadas pelos jornais em forma de receitas de bolo e previsões do tempo era emocionante, romances e filmes censurados ganhavam o tempero apimentado da proibição.
Havia heroísmo em desafiar a censura, não em exercê-la.
Dona Solange, aquela, que chegou a inspirar música do Leo Jaime, mudou de sobrenome e foi viver no interior, zero orgulho da sua profissão. Os vizinhos, que a consideravam uma senhora reservada porém gentil, jamais desconfiaram do que ela fazia antes de se aposentar.
Os censores de redes sociais, ao contrário, se acham os reis — e rainhas — da cocada preta. Estão convencidxs da grandeza da sua missão, certxs de que lincham por motivos nobres. Seu ódio é puro e benfazejo, e suas vítimas deveriam se sentir gratas pelas lições. Só falam no imperativo:
— Calaboca!
— Leia!
— Estude!
— Aprenda!
— Silencie e respeite!
— Peça desculpas!
— Deixe de se fazer de vítima!
Palavras não tiram pedaço — mas tiram. O corpo sai inteiro de um ataque, mas a alma sai em frangalhos. E aí entra em cena algo muito pior do que a dona Solange: a autocensura. Nos tempos da censura, lutava-se para que opiniões e ideias sobrevivessem; hoje elas são abortadas antes de nascer. Não há glória em desafiar militantes raivosos, não há heroísmo em enfrentar ofensas disparadas por trás da tela.
A internet é um vasto território de absurdos sem resposta e de pensamentos silenciados, porque qualquer pessoa menos beligerante — quero crer a maioria de nós — prefere ficar calada a externar uma opinião que pode eventualmente ser mal interpretada — e será: na internet tudo o que pode (e tudo o que não pode) ser mal interpretado será sempre mal interpretado. Para que despertar as bestas do apocalipse? Melhor levantar e ir tomar um café, dar um telefonema, regar as plantas, passar batido.
Um dos documentos importantes desse Museu da Intolerância é o texto em que Fabiana Cozza renuncia ao seu papel no musical sobre Dona Ivone Lara, e que acabou dando panos para as mangas até aqui no jornal. Ela foi massacrada por ativistas de movimentos negros por não ser suficientemente escura para o papel, e abre o seu desabafo, dirigido “aos irmãos”, com as suas credenciais genéticas: “Mãe: Maria Ines Cozza dos Santos, branca, Pai: Oswaldo dos Santos, negro, Cor (na certidão de nascimento): parda”.
Fabiana escreveu com sentimento e expôs as suas feridas, dilacerada pelo linchamento sofrido ao comemorar, dias antes, a felicidade com o convite para a produção:
“Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro.”
Ler o que escreveram os inquisidores na sua página é de assustar mesmo, fere e ofende até a quem não tem nada a ver com a história. Não consigo imaginar o quanto aquelas palavras não magoaram Fabiana. Mas renunciar ao papel não pôs fim à violência — agora ela está sendo acusada de ter denunciado a agressividade dos agressores.
“Irmã vírgula, não somos irmãos. E nós pretos vírgula, pq vc não é preta. E pare de colocar os negros como raivosos por exigir que o certo fosse feito. Tinha mais q sair mesmo.”
Fiquei horrorizada em ver tanta gente se sentindo autorizada a dizer quem o outro é, como o outro é, como o outro pode ou não se sentir. A Arte, enquanto isso, escondida num canto, cobrindo a cabeça de cinzas. Como se Dona Ivone Lara fosse só uma cor, como se o delicado trabalho de representá-la em toda a sua grandeza não envolvesse tanto mais. Fabiana Cozza conheceu Dona Ivone, cantou com ela, foi escolhida pela família para o papel. É negra, mas não é Pantone 321-2 C. Todos a ela. Sou branca (Pantone 58-6 C) e desqualificada de saída para entrar nessa discussão.
Mas aí é que está: todos deveríamos poder discutir tudo. Racismo não pode ser discutido só entre pretos ou só entre brancos, como feminismo não pode ser discutido só por mulheres. Ou lutamos pela inclusão de todos, e por todos os lados, ou vamos nos afastar cada vez mais, fechados nas nossas bolhas, ouvidos tapados para o outro, fervendo cada qual na sua ilha de ódio.