1. Para a Itálía, existe uma perspectiva. A ideia de uma aliança das forças progressistas aberta aos moderados, sob a direção de Pier Luigi Bersani, surge como a única proposta capaz de responder à exigência de uma reconstrução democrática. Com a disputa das primárias, esta perspectiva tomou corpo e se impôs no centro do debate público.
Um projeto que se apresenta, hoje, como um retorno da política na direção do país. A centro-esquerda estará à altura? A pergunta é legítima, depois das derrotas e das desilusões do passado. Até por isso, não é inútil reconsiderar a experiência destes últimos vinte anos. Jamais apreciei plenamente a expressão “Segunda República”, que é plena de ambiguidades e contém, talvez, um reconhecimento excessivo prestado ao vintênio que se encerra hoje e que começou com a crise de início dos anos 1990.
Certamente, parece-me apropriado destacar o período marcado pelo papel e pelo protagonismo de Silvio Berlusconi, pelo seu estilo, por um modo de fazer política, por um bloco de forças sociais e interesses em torno dele. O sucesso de Berlusconi, o fato de ser capaz de interpretar vinte anos de vida nacional nascem muito além da sua capacidade pessoal e da força do seu poder midiático e financeiro. Na realidade, ele personificou uma espécie de revanche do poder econômico e dos espíritos animais da sociedade civil contra a “República dos partidos”, a revanche de um liberalismo econômico grosseiro e individualista contra os vínculos que os solidarismos de matriz católica e socialista impuseram ao capitalismo italiano. Um projeto de modernização — o berlusconiano — que vinha de longe, certamente desde os anos 1980. E, em definitivo, a versão italiana daquela hegemonia mais geral de uma visão neoliberal que viu 1989 não como o fim do comunismo, mas também o fim da história e o definitivo acerto de contas com as ideologias e as grandes narrativas do século XX.
2. Como em outros momentos da trajetória do nosso País, os saltos de qualidade mais radicais ocorrem sob a pressão de eventos internacionais. A crise da “República dos partidos” nasce com os fatos de 1989, a queda do comunismo e o fim da Guerra Fria. Do mesmo modo, o fim do berlusconismo precipita-se na grande crise que nestes anos atinge o capitalismo financeiro globalizado. A Itália chega fragilizada nesta circunstância. Um dos países mais vulneráveis, antes de mais nada por fragilidades profundas, acumuladas no tempo: o peso da dívida pública, a discrepância entre Norte e Sul, o desmantelamento da administração, a ineficiência da máquina da justiça, a fragmentação da estrutura produtiva. A isso se acrescentam os problemas acumulados nestes anos nestes anos com as debilidades de uma centro-esquerda que não foi capaz de completar sua obra reformadora e com os efeitos devastadores dos anos de governo de Berlusconi e da Liga Norte. Não só sobre as contas públicas, a economia e a sociedade, mas sobre a ética pública e a própria credibilidade das instituições e do sistema político-democrático.
O País chegou realmente à beira do colapso, ainda que a memória curta dos italianos ameace cancelar esta realidade. Mario Monti interpretou verdadeiramente aquele papel de responsabilidade e salvação nacional a que foi convocado pelo chefe de Estado, Giorgio Napolitano. Ele interpretou com energia a emergência através de medidas dolorosas, em parte inevitáveis, ainda que nem sempre atentas a uma exigência de equidade social. Mas, em definitivo, a tarefa do governo era evitar o desastre, e o País escapou disso.
Acredito que o mérito maior de Monti tenha sido o de restituir voz e credibilidade à Itália na cena europeia e internacional, depois de um período de marginalidade e profunda humilhação. Bastaria isso para justificar a gratidão que todos devemos ao primeiro-ministro e também, seja-nos permitido, a quem o quis e sustentou com lealdade, deixando de lado a exigência legítima de um voto imediato e a provável conquista antecipada do governo. Tal como em outros momentos cruciais da história do País, à esquerda prevaleceu o sentido de dever em relação à Itália, e acredito que esta escolha legitime agora, junto com a força do consenso popular, a candidatura de Bersani à direção de governo. Pois agora há necessidade de uma virada. E não porque a camada política pretenda recuperar o lugar dos técnicos, como se escreve com desprezo, indicando o retorno da política como a alvorada de um novo período de corrupção e incompetência. Não penso que se deva passar por alto que esta não é só uma campanha contra a política, é uma campanha contra o direito dos cidadãos de escolher por quem querem ser governados, isto é, contra a democracia e contra a esquerda.
Por certo, a crise e a decadência da política estão sob os olhos de todos, mas, se se quiser tomar o caminho de uma regeneração até moral e não de uma inflexão tecnocrática, é preciso ver em profundidade motivos e causas. Não vivemos o tempo do domínio dos partidos e da política sobre a sociedade e a economia. Ao contrário, aquilo a que assistimos é um declínio progressivo e que vem de longe. A decadência do partido de massas, ideológico, caracterizou toda a história europeia dos últimos trinta anos. Seria impensável negar os efeitos devastadores de perda de credibilidade do sistema político e institucional, mas o problema é que os impulsos dominantes na opinião pública e no senso comum caminham para uma desestruturação, privatização e personalização adicionais da política. Portanto, rumo a um agravamento dos danos e não à sua correção. E, o que talvez seja até mais grave, rumo a uma restrição das bases sociais do agir político. Para dizer em termos grosseiros, a política dos partidos pessoais, dominada pela mídia, carente de apoio e financiamento público, é uma política para ricos ou, pelo menos, dominanda pelos ricos.
3. É possível um outro caminho? Existe um caminho para a reconstrução democrática, para sair do berlusconismo, sem por isso cultivar a ilusão de um retorno ao passado? Este é o desafio que Bersani e toda a centro-esquerda vão enfrentar. Um desafio que hoje parece particularmente árduo e complexo.
Em outros momentos de crise, a Itália teve, na referência ao contexto internacional e particularmente à Europa, uma ancoragem sólida e também a indicação de um caminho de saída. Hoje, é a própria Europa que está no epicentro da crise. A Europa é a grande enferma da globalização, atravessada por impulsos populistas e riscos tecnocráticos, em vários casos não menos perigosos do que aqueles que atingiram nosso País. O cidadão americano pôde escolher entre um presidente que corta impostos, reduzindo a proteção dos mais pobres, e um que tributa os ricos para garantir a assistência sanitária. Ainda que condicionada pelos mercados financeiros e pelas agências de rating, a política americana, tal como a das outras potências emergentes, ainda parece capaz de tomar decisões. A Europa não.
O cidadão europeu, substancialmente, tem a percepção de não poder influir nas escolhas da União, que se apresentam como um conjunto neutro de vínculos e obrigações, devidos a razões técnicas. À política só resta fazer o “dever de casa”, isto é, executar as diretrizes que a racionalidade econômica dominante impõe. A política (politics), confinada nos limites das realidades nacionais, tem pouca possibilidade de incidir, se reduz a uma narrativa. Neste quadro se reforçam os impulsos populistas em nome do demos contra as elites tecnocráticas, invocando o ethnos nacional ou localista contra a globalização e a integração europeia. Assim, a democracia europeia corre o risco de ser esmagada entre o peso de uma tecnocracia necessariamente mais atenta aos vínculos postos pelos mercados financeiros e pelas forçosas compatibilidades que eles impõem, e um populismo cada vez mais antieuropeu, o qual dá voz ao mal-estar social e às identidades culturais que se sentem ameaçadas pela globalização.
4. Pode parecer paradoxal, mas as duas grandes tendências políticas que dominaram a cena europeia nos últimos dez anos são, ambas, expressão sobretudo da direita, ou melhor, de duas diferentes direitas que nascem da história da Europa: uma, liberal e liberista, ligada a poderes econômicos fortes, tendencialmente cosmopolita e favorável à globalização; a outra, nacionalista, localista, populista, ligada a valores tradicionais e a camadas atingidas ou apavoradas pela abertura dos mercados e pelos desafios do mundo global.
A esquerda europeia ficou desacreditada e em dificuldade. Dividiu-se entre componentes inovadores e neoliberais, que compartilharam com as elites econômicas uma visão substancialmente otimista da globalização, e forças mais tradicionais, que defenderam o histórico compromisso social-democrata e as conquistas que o caracterizaram, na ilusão de que tudo isso poderia ser protegido também nos novos cenários da competição mundial. O desfecho foi uma dupla, dolorosa derrota. Se pensamos que a Terceira Via de Tony Blair terminou por secundar a aventura de George Bush e dos neocons no Iraque, e que uma parte dos socialistas franceses apoiou o “não” no referendo sobre a nova Constituição europeia, podemos avaliar, em ambas as frentes, os riscos de ofuscamento ideal e de subalternidade.
Mas isso ocorreu no passado: àquele período político seguiu-se outro, dominado pelas versões da direita na Europa, que agora pode terminar. E não só na Itália. Agora, um novo período se abre para os progressistas. Não se trata só da França de François Hollande, mas de uma volta à cena mais significativa de forças de inspiração socialista e trabalhista. E não se trata só disso, mas também de alianças de centro-esquerda que vão além da tradição social-democrata. O que acontecerá na Itália e na Alemanha pode ser decisivo para modificar o cenário político europeu e escrever finalmente uma nova página. Por certo, as dificuldades que temos à frente são extremamente duras.
5. A centro-esquerda italiana, de Giuliano Amato, Carlo Azeglio Ciampi e Romano Prodi até hoje, tem uma história de forte e coerente compromisso em prol da Europa. Acrescento que a coerência europeísta foi por muito tempo, e ainda é, uma das linhas discriminantes básicas contra velhos e novos populismos na política italiana. Nisto consistem, seguramente, a convergência mais profunda entre o PD e Monti e o elemento mais significativo de continuidade com seu governo que a centro-esquerda deverá assegurar.
A obra para a reconstrução e o renascimento da Itália só pode estar ligada ao processo de relançamento europeu como dois aspectos do mesmo desafio que se ergue diante de uma nova classe dirigente. Também por isso é tão importante que à frente do do País esteja uma força como o PD, que — com sua original identidade — é parte integrante, respeitada e reconhecida do reformismo europeu.
Roma, 14 de dezembro de 2012.
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Massimo D‘Alema foi ministro das Relações Exteriores da Itália, no governo Prodi, e depois primeiro-ministro. É um dos dirigentes do Partido Democrático na Itália.
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: L’Unità & Gramsci e o Brasil.