Diogo Tourino de Sousa[1]A recente atenção voltada para o estudo do pensamento social brasileiro, por um grupo notadamente heterogêneo de pesquisadores nas ciências sociais, tem procurado mapear a existência de famílias intelectuais ou seqüências que estruturam histórica e analiticamente o pensamento político no país, identificando continuidades e descontinuidades possíveis, exercício capaz de incorporar de maneira igualmente esclarecedora a produção intelectual anterior à própria institucionalização acadêmica da disciplina, seja ela ensaísta ou mesmo literária (Botelho, 2007; Brandão, 2007; Weffort, 2006). Curioso notarmos como as ciências sociais se consolidaram de maneira relativamente autônoma no Brasil apenas na segunda metade do século XX, em evidente hipoteca a um trajeto de “disputas” desenhado pelos “clássicos” da disciplina – uma linhagem que se prolonga pelo menos até o século XIX –, precisamente o que não impede que os estudos sobre sua constituição e desenvolvimento identifiquem estruturas intelectuais e categorias teóricas – com base nas quais a realidade é percebida –, cristalizadas ao longo da nossa formação, recurso fecundo no próprio exame do conteúdo substantivo de suas formulações e na defesa de modelos normativos para a “correção” presente da democracia brasileira e suas correlatas instituições.
Certamente a capacidade de produção da “boa teoria” pela ciência política no país vem, cada vez mais, sendo questionada por sua crescente capitulação diante do objeto de pesquisa, o que impede a construção de explicações que dêem conta da totalidade do fenômeno político, suas relações sociais e recortes históricos possíveis, com evidentes aportes normativos: a negação da validade interpretativa do ensaio, o “culto” ao método, o avanço dos estudos institucionais descolados da dimensão sócio-histórica, o abandono da atividade negadora e imaginativa própria do pensamento filosófico, todos esses fatores prejudiciais à possibilidade de encontrarmos respostas para os “novos” e “velhos” problemas da sociedade brasileira, aprisionando o pensamento em barreiras disciplinares que obscurecem o movimento da sociedade no seu conjunto, tornando infecunda a atividade de reflexão teórica nacional (Brandão, 2007; Lessa, 2003).
Todavia, o esclarecimento das nossas lutas do passado por meio de um inventário do debate intelectual durante o Império, inaugurado inequivocamente pela Assembléia Constituinte de 1823 e sua discussão sobre as “modernas” instituições política a serem implantadas no país, até a primeira metade do século XX, embate protagonizado muitas vezes por atores políticos que eram, ao mesmo tempo, autores da política, expõe mais o confronto entre visões de mundo radicalmente antagônicas do que meramente a adoção de estratégias distintas ante os problemas enfrentados nos contextos específicos – seguramente ponto não pacífico nas interpretações em curso (Ferreira, 1999; Santos, 1978) –, o que nos permite enxergar o trajeto próprio que forma e conforma de maneira inventiva a reflexão nacional como possível instrumento na reconstrução dessa astúcia teórica perdida.
Fato é que a imaginação aqui em movimento se propunha algo além da simples constatação da “falta”, buscando, efetivamente, atingir uma imagem forjada de “boa sociedade” ao inventar o país por meio de referenciais teóricos apropriados para a interpelação do existente, como percebermos na conhecida descrição de Euclides da Cunha sobre a singularidade de um mundo que encontrou na teoria política o lugar da sua nacionalidade, sendo empurrado em ritmo acelerado para a “civilização” por meio da ação incisiva de sua intelectualidade criadora e por um Estado confessadamente demiurgo: não éramos inautênticos, mas sim singulares, e dessa conclusão derivariam nossas instituições políticas (Cunha, 1909).
Resta apenas percebemos como os problemas apontados nesse processo continuaram auxiliando a compreensão subseqüente, servindo inclusive de fonte para as ciências sociais institucionalizadas, o que conferiu um importante papel para os seus “clássicos” enquanto pressupostos necessários para a formulação de estratégias de intervenção presente, sem deslegitimar o percurso único pelo qual a imaginação nacional passou em prol de modelos “arbitrariamente” reproduzidos, polêmica ilustrada no debate entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos no início da década de 1960. Precisamente aqui se inscreve a exemplaridade de Linhagens do Pensamento Político Brasileiro, recente trabalho de Gildo Marçal Brandão (2007), momento inescapável à qualquer aproximação justa do pensamento político que aqui se deu.
Isso porque, a reflexão sobre a permanência de determinados “dissensos” – colocados e recolocados na agenda pública em diferentes contextos da história do país –, e suas visões de mundo correspondentes manifestas na prática de atores políticos efetivos, ao mesmo tempo em que expostas por autores criativos – ambos, quando não em simbiose, empenhados na “solução” dos problemas e concretização de um projeto particular de Brasil –, nos mostra, sobretudo, como o imaginário nacional incorporou ao seu arsenal interpretativo o que havia de mais aprimorado no pensamento político ocidental, interpelando a realidade imediata a partir de experiências refletidas e manipuladas dentro de uma tradição intelectual mais vasta, momento em que ensinamentos extraídos da literatura estrangeira estariam a serviço da justificação de afirmações sobre nossa (má)formação e correlata necessidade de (novos)arranjos institucionais adaptados ao “descompasso” brasileiro, índice da maturidade da reflexão nacional (Werneck Vianna, 2004).
Trata-se, dentro da proposta desenvolvida em Linhagens, de percebermos no olhar retrospectivo sobre a “teoria social” produzida no Brasil, e ao mesmo tempo produtora de “um” Brasil, nos dois últimos séculos como, inequivocamente, o pensamento nacional foi capaz de incorporar elementos “sofisticados” da tradição teórica ocidental, comprando o debate acerca da democracia liberal e seus reflexos institucionais para realidade do país, como no exemplo da disputa entre centralização e descentralização da organização política e administrativa, “dissenso” que ocupou o centro da agenda pública durante os principais momentos de formulação e reformulação das instituições no Império – a Assembléia Constituinte de 1823, a elaboração do Código de Processo e do Ato Adicional de 1834, no imediato Regresso Conservador –, assim como na construção da República em 1889 e sua primeira Constituição de 1891, sempre tentativas “revolucionárias” de acertar nosso passo com o moderno (Carvalho, 1999).
Com efeito, a distinção entre cidadãos ativos e passivos, presente na Constituição Francesa de 1791, e seus desdobramentos normativos diante das possibilidades e cobranças colocadas pelo movimento revolucionário francês para o mundo moderno – a imposição de novos imperativos morais, liberdade, igualdade e fraternidade, compondo o passaporte inescapável para a “civilização” –, reverberou com vigor no pensamento da elite política nacional – sem dúvida um segmento pouco representativo na sociedade brasileira como um todo
[2] –, ainda que sua efetivação esbarrasse em obstáculos outros àqueles existentes no mundo europeu. Nesse sentido, Brandão nos mostra, por meio da incorporação dos “tipos” idealista orgânico e idealista constitucional, como tais idéias decantaram em prismas muito desiguais, cobrando adaptações por vezes inventivas que teriam, em anos recentes, se perdido na ciência política brasileira (Brandão, 2007).
A assimilação, ainda que instrumental, de momentos significativos do pensamento político ocidental perpassou a tensão entre correntes opostas sobre a relação entre federalismo e centralização, liberdade e despotismo, “civilização” e “barbárie”, ocasionando um rico, e talvez inconcluso, debate em solo nacional sobre o sentido e a direção da institucionalidade democrática. Polêmica essa que envolveu uma discussão sobre a estrutura do Estado e sua influência na sociedade, fazendo com que o imaginário nacional repensasse o andamento “moderno” do país, suas particularidades e as vicissitudes dos modelos políticos importados em função, sobretudo, da precedência da Sociologia sobre a Política, ou vice e versa, para o nosso encaixe nesse campo semântico específico (Werneck Vianna, 2004).
Dessa forma, o ferramental analítico desenvolvido pela pesquisa “genética” acerca do pensamento social e político brasileiro apresentado por Brandão em Linhagens nos permite a elaboração de algumas hipóteses de investigação capazes de jogar luz na relação entre a “constelação de idéias” que povoou o imaginário nacional passado, que ainda habita os exercícios interpretativos do presente, e seus problemas históricos específicos, seguramente evitando o erro de reduzir completamente as idéias ao seu contexto. Esse esclarecimento produz linhas de interpretação determinadas, a saber, a existência de aproximações e distanciamentos entre argumentos polares sobre o papel do Estado no funcionamento da democracia, e na própria feição da democracia a ser aqui sustentada – uma discordância recorrente em relação aos pressupostos individualistas que acompanhavam a democracia liberal –, argumentos tributários de momentos mais amplos da teoria política no Ocidente.
Por um lado, podemos identificar no liberalismo atual uma continuidade entre autores – como Tavares Bastos, Raymundo Faoro e Simon Schwartzman
[3] –, que mesmo guardadas as suas especificidades teóricas e contextuais, coincidem no diagnóstico comum sobre os problemas do país e sua solução possível, compondo um programa de pesquisa amplamente conhecido na defesa da democracia liberal e adoção de práticas próximas ao liberalismo econômico na consolidação do seu “projeto”: a “proposta de (des)construção de um Estado que rompa com sua tradição ‘ibérica’ e imponha o predomínio do mercado, ou da sociedade civil, e dos mecanismos de representação sobre os de cooptação, populismo e ‘delegação’” (Brandão, 2007, p. 33-34).
Por outro lado, encontramos argumentos contrários ao programa liberal acima mencionado, também inseridos numa corrente de idéias de longa duração na história brasileira, defendidos por autores dispersos em nossa formação e com graus significativos de influência sobre a dimensão estatal – como Visconde do Uruguai, Alberto Torres, Oliveira Vianna e Francisco Campos –, que compactuam de um programa de pesquisa comumente denominado conservador, franco em atribuir um papel distinto ao Estado no desenvolvimento da política brasileira, conferindo predominância à autoridade sobre a liberdade: a partir da imagem de um Brasil fragmentado, povoado por indivíduos atomizados, amorfo e inorgânico, o diagnóstico encontra uma sociedade desprovida de solidariedade que depende do Estado para manter-se unida. Nesse contexto, a liberdade não sobreviveria sem um Estado forte e tecnicamente qualificado, soberano ao localismo das “facções”, capaz de subordinar o interesse privado ao nacional, controlando os efeitos perniciosos do individualismo possessivo, próprios do funcionamento do mercado, ao adaptar a democracia ao contexto local (Brandão, 2007).
Fato é que transcorridos quase duzentos anos da “solução da independência”, ponto de partida para o debate em questão ao colocar a realidade do país e suas instituições imaginadas “fora do lugar” (Schwarz, 1977), podemos identificar aqui, sem dúvida um dos êxitos de Linhagens do Pensamento Político Brasileiro, o uso de uma terminologia comum a uma tradição teórica mais vasta, incorporada de maneira não ortodoxa pela elite política nacional na descrição da formação “particular” do povo brasileiro e na proposição de modelos normativos “adequados” ao contexto local. Através deles, a questão de ser a democracia liberal e seus mecanismos um artefato “exótico”, ou o caminho mais próximo para a instauração do modelo de sociabilidade anglo-saxônico tão admirado pelos intérpretes liberais
[4] salta aos nossos olhos como o epicentro da polêmica que ocupou a intelectualidade nacional, particular por sua constante vocação pública, tanto no trato como na escolha dos temas.
Tal particularidade sobressai no exame dos temas que ocuparam a inteligência nacional, conformada segundo a íntima proximidade estabelecida com o público e as discussões acerca do interesse comum. Mesmo tendo que se adaptar a diferentes soluções institucionais ao longo da trajetória de modernização do país – como as Academias e as Universidades –, a organização da atividade intelectual no Brasil demonstrou um interessante padrão de continuidade
[5]: ao passo em que a monarquia brasileira a adotou como parte constitutiva do seu poder, conferindo-lhe uma evidente dimensão pública e destaque para os “temas da política, da institucionalização dos mecanismos de poder e de ordenação do mundo público”, a república voltou-se “para a sociedade, para as relações mediadas pelo mercado e para os padrões de diferenciação social que operam na estrutura da ordem moderna”, sem, no entanto, extrair “a experiência dos publicistas, (...) cuja autonomia derivava de sua peculiar inscrição social, como membros de uma elite sem amarras no mundo mercantil (...) portadores de uma representação do país fortemente encapsulada por categorias e esquemas mentais do período anterior” (Carvalho, 2007, p. 20-21).
A permanência dessa vocação, apontada na organização da inteligência brasileira, nos ajuda a compreender igualmente o papel desempenhado pela atividade intelectual nas importantes transformações ocorridas no país: ao abrigar o discurso dos publicistas a organização republicana abriu a possibilidade para que o projeto de 1891 fosse compreendido a partir da perda da “grande obra do Estado centralizador” – como na mencionada formulação de Oliveira Vianna sobre os idealistas constitucionais (1920), recuperada por Brandão –, gerando uma crescente hostilidade dos intelectuais em relação aos direitos individuais e promovendo, por fim, a defesa de um Estado intervencionista que se consolidaria em 1930 – ou efetivamente apenas em 1937, segundo a interpretação associadas à modernização conservadora (Werneck Vianna, 2004) –, subordinando os interesses individuais a uma “razão nacional”, o que nos permite dizer que “o Estado Novo recuperou a política imperial de fazer da cultura um assunto de interesse público e (...) conferiu a [sociologia] papel destacado na construção de consenso em torno dos objetivos da modernização” (Carvalho, 2007, p. 25).
As muitas marcações observadas na história do país sugerem, com efeito, a possibilidade de compreendermos nossa formação a partir do embate entre projetos políticos antagônicos, classificados em Linhagens como “famílias” liberais ou conservadoras a partir da discussão sobre os modos particulares de consolidação da América entre nós, tendo a institucionalidade democrática e os padrões de sociabilidade anglo-saxônicos como pontos de disputa. Seguramente, aqui se fez algo além da simples constatação da “falta”, mostrando uma inteligência capaz de articular com ardil conceitos e experiências de acordo com necessidades singulares, projeto exemplar de uma intelectualidade que nunca se eximiu do debate público e que obteve, com graus variados de sucesso, influência nas transformações observadas no cenário político brasileiro (Brandão, 2007).
Contudo, aquilo que ficou conhecido como via americana, em oposição a uma suposta tradição ibérica – salvo reconhecidas nuances interpretativas –, de implantação do liberalismo entre nós foi incapaz, ponto fraco de suas formulações, de tocar no efetivo enigma da situação social do Brasil: o problema da terra e a existência de um vasto domínio marcado por laços de dependência pessoal, contexto em que a inescapável condição da cidadania civil para a consolidação da democracia – passando inclusive pela universalização do sufrágio e autonomização dos interesses – seria inatingível (Werneck Vianna, 2004). De liberais conservadores a autoritários instrumentais, os modelos políticos que se sucederam não se propuseram a alterar essa condição fundamental para que a o liberalismo entre nós fosse além do “idealismo utópico” descrito por Oliveira Vianna no início do século XX em aberta insatisfação com a primeira constituição republicana (Brandão, 2007).
Ainda assim, mostrar, por meio do mapeamento de linhagens no pensamento político nacional como se estruturou uma “crítica” a democracia liberal no imaginário do país nos dois últimos séculos – especialmente dura no seio do pensamento conservador, mas não circunscrita exclusivamente a ele – a partir da descrição da singularidade do caso brasileiro, marcado por uma sociabilidade distante do individualismo anglo-saxônico e não afeita aos valores de mercado, carente ainda de intervenções políticas hábeis em conciliar ideais modernos ao contexto local, classificado amiúde e de maneira equivocada como o atraso, sugere como podemos recuperar na ciência política o exercício de produção da “boa teoria” talvez perdido em tempos recentes (Brandão, 2007). A construção de Oliveira Vianna na tentativa de reconciliar o Brasil real com o Brasil legal pode ser tomada como um paradigma desse movimento esquecido na reflexão nacional, o que manifesta a intenção modernizadora de nossa investida intelectual (Werneck Vianna, 2004).
O trabalho de Gildo Marçal Brandão vem, sem dúvida, cumprir a tarefa exemplar de reconstruir heuristicamente os passos do pensamento político no Brasil, permitindo que com isso recuperemos a tradição imaginativa que aqui se desenrolou, comprometida com o debate público e a construção da nação, evitando, ainda, a sedução pelo processo de produção teórica arbitrariamente “importado” que negligencia as particularidades do nosso mundo, em seus aspectos positivos e, por que não, negativos, capitulando em tempos recentes diante da “ilusão” do método.
Referências Bibliográficas:BOTELHO, André. (2007), “Seqüências de uma sociologia política brasileira”. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 50, no. 1, pp. 49-82.
BRANDÃO, Gildo Marçal. (2007), Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores.
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CUNHA, Euclides da. [1909] (2006). À margem da história. São Paulo: Martin Claret.
FERREIRA, Gabriela Nunes. (1999), Centralização e descentralização no Império: o debate entre Tavares Bastos e visconde de Uruguai. São Paulo: Editora 34.
LESSA. Renato. (2003), Agonia, aposta e ceticismo: ensaios de filosofia política. Belo Horizonte: Ed. UFMG.
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SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1978), Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Livraria Duas Cidades.
SCHWARZ, Roberto. [1977] (2000), Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34.
VIANNA, Oliveira. [1920] (2002), Populações Meridionais do Brasil. Rio de janeiro: Ed. Nova Aguilar. (Coleção Intérpretes do Brasil)
WERFFORT, Francisco. (2006), Formação do pensamento político brasileiro: idéias e personagens. São Paulo: Editora Ática.
WERNECK VIANNA, Luiz. (2004), A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan.
[1] Mestre e doutorando em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IUPERJ). (
dsousa@iuperj.br)
[2] O importante papel da elite política imperial na construção do Brasil independente, bem como a relação entre o êxito da revolução burguesa e a representatividade dessa elite, constitui um dos alicerces do argumento sobre a presença de um padrão de continuidade nos temas que habitaram reflexão política nacional. A descrição da composição social e econômica dessa elite e de suas transformações ao longo do Império demonstra, sem dúvida, particularidades que não podem ser ignoradas, principalmente com relação ao progressivo declínio de sua homogeneidade ideológica e de treinamento, fator central na sustentação do sistema político brasileiro no século XIX (Carvalho, 2006). Todavia, o elemento “esotérico” dessa intelectualidade, ponto de contestações sobre seu real alcance, pode ser diluído na aberta importância que suas formulações tiveram na construção do Estado nacional e subseqüente imaginação da nação.
[3] Conforme Brandão são significativos os trabalhos de Carvalho (1999), Mercadante (1972), Santos (1978) e Werneck Vianna (2004), para mencionar apenas alguns exemplos, no sentido de reconhecer a existência de tais linhagens intelectuais associadas a um programa liberal ou conservador de pesquisa.
[4] A adesão de um determinado conjunto de autores, freqüentemente agrupados sob o rótulo de liberais, ao modelo anglo-saxônico de sociabilidade pode, com efeito, esconder nuances na sua classificação ao longo do período histórico trabalhado, sem dúvida objeto de polêmica entre alguns intérpretes. Trata-se da possibilidade de matizarmos a dicotomia liberais/conservadores por meio de rótulos como conservadores liberais, liberais moderados ou ortodoxos, ou ainda autoritários instrumentais, encontrada em importantes estudos sobre o pensamento social e político no país (Carvalho, 2006; Santos, 1978; Werneck Vianna, 2004). Tal menção se justifica pela suposição nada pacífica de que liberais e conservadores discordariam apenas em relação aos meios com vistas à implantação do modelo anglo-saxão entre nós, finalidade essa que seria amplamente aceita por ambos, restando apenas a controvérsia sobre atingirmos a matriz por ela própria ou pela via autoritária. Contudo, a existência de visões de mundo inconciliáveis, contrapondo autores como Tavares Bastos e Oliveira Vianna, por exemplo, pode, segundo Brandão, ser tomada como ponto de partida para identificarmos a não aceitação geral da individualidade espontânea associada ao mercado (Brandão, 2007).
[5] Maria Alice Rezende de Carvalho trata dos temas sobre a organização dos intelectuais no Brasil identificando três eras organizacionais distintas: além das Academias e Universidades, a autora inclui as Organizações não-governamentais como mostra da tentativa contemporânea da inteligência nacional de se adaptar às exigências da nova ordem globalizada. Com isso, a autora defende a tese da permanência da vocação pública na atividade intelectual no país até os anos recentes, manifesta nas mutações organizacionais apontadas (Carvalho, 2007).