Além do Instituto de Filosofia, outro departamento da Academia de Ciências Sociais de Xangai participou do seminário sobre as relações da China com a América Latina realizado ontem aqui em Xangai: o Instituto de Marxismo Chinês, cujo sentido deu o tom das palestras dos vários scholars chineses.
Todos procuraram justificar o que chamam de "modelo chinês" de socialismo, que se diferencia nestes 30 anos de experiência de todas as formas de socialismo experimentadas em vários países do mundo, que não seria simplesmente um "capitalismo de Estado" como comumente é conhecido no Ocidente, mas também uma organização social que lida com valores específicos.
Até o momento o modelo chinês não leva em conta "valores universais" tais como liberdade, direitos humanos, democracia, fraternidade, mas lida com "valores fundamentais" como estabilidade, harmonia e desenvolvimento.
Conforme explicou Chen Xiangqin, do Instituto de Filosofia, o sucesso do modelo depende de como ele lida com as relações entre mercado e governo, assim como entre a sociedade e o governo, tentando evitar, de um lado, os prejuízos do totalitarismo e do fechamento social, mas também o risco de que o sistema organizacional do Partido Comunista e do Estado seja afetado pela desunião, pelo suborno ou cooptação por classes privilegiadas ou grupos de interesse.
Já Xuan Chuanshu, do Centro para o Socialismo Internacional, abordou mais diretamente o tema do socialismo, analisando por que há muito ceticismo, dentro e fora da China, sobre a genuinidade do modelo socialista adotado.
Ele admite que, devido ao que chama de "alto preço" pago pelo rápido desenvolvimento, como destruição ecológica, corrupção e especialmente a grande distância entre ricos e pobres, há uma impressão generalizada de que o socialismo na China se degenerou, seja pelo fato de que alguns de seus valores simbólicos não foram alcançados, como a igualdade, seja porque o crescimento econômico dá a sensação de que o modelo chinês apenas copiou o caminho de modernização do Ocidente.
Segundo Chuanshu, o socialismo tornou-se nos últimos tempos um conceito familiar, mas ao mesmo tempo estranho à maioria das pessoas. Mas ele defende que o que está acontecendo na China está além das teorias de Marx e outros escritores clássicos, vai além das experiências ocidentais como as que existem nos países escandinavos e muda o tradicional socialismo que vigorava na antiga União Soviética.
Para ele, há dimensões do desenvolvimento que são inerentes a qualquer sistema socialista e que a China vem conseguindo atingir: rapidez de crescimento econômico e sustentabilidade; paz e cooperação; prosperidade comum repartida por todos e um amplo e livre desenvolvimento.
O professor Chuanshu define o caminho da China para o socialismo como fundamental para o mundo moderno, como uma ponte entre as civilizações Oriental e o Ocidental, integrando visões e conhecimentos tradicionais com os modernos, reduzindo a distância entre o capitalismo e o socialismo.
Todos os trabalhos sobre o estágio atual do modelo chinês são claramente orgulhosos do que foi alcançado. Fong Songhua, do Instituto de Marxismo Chinês, por exemplo, num trabalho em que destaca principalmente os desequilíbrios do processo de desenvolvimento, ressalta que as mudanças em curso jamais foram vistas na História humana, pois a China, em uma ou duas gerações, alcançou resultados que as culturas ocidentais levaram dois ou três séculos para conseguir.
Embora a linguagem acadêmica seja mais liberada, assim como o debate é mais amplo, nota-se que os trabalhos escritos são mais cuidadosos do que a defesa verbal das teses.
E muitas perguntas que não podem ser feitas em público aparecem nos seminários. Ontem, depois de minha palestra sobre a situação da imprensa na América Latina, na qual citei os problemas de liberdade de imprensa que países como Argentina, Equador e Venezuela vivem, e apontei que no Brasil, mesmo tendo perdido força pelo posicionamento claro da presidente Dilma Rousseff a favor da liberdade de expressão, ainda há grupos políticos empenhados em fazer aprovar medidas de controle da mídia, uma estudante me perguntou o que achava da situação da China, onde há censura aos meios de comunicação.
Disse a ela que havia tentado acessar o Facebook e o YouTube sem sucesso, pois estavam bloqueados, e que era impossível ter-se um sistema de informação que seja útil à cidadania se ele é baseado apenas em notícias oficiais.
E que era um paradoxo querer ser um país economicamente eficiente e moderno sem um sistema de informação aberto a todos os lados que permita inclusive a atualização dos conhecimentos necessários para a competitividade da nação. A China, com a censura à internet, estava abrindo mão de tecnologias modernas que certamente seriam úteis para seu desenvolvimento.
Pensei cá comigo que o fato de o ambiente acadêmico permitir esse tipo de questionamento é um primeiro passo para uma maior abertura política, que, aliás, foi defendida em alguns trabalhos apresentados por scholars chineses.
Foi o caso de Fong Songhua, que, em seu balanço sobre os desequilíbrios do modelo chinês, destacou que o tema mais urgente na China contemporânea é começar uma reforma política progressiva.
No passado, disse ele, foi fundamental a união de poder e capital para promover o crescimento econômico rápido da China, mas agora têm de ser reexaminadas as relações entre os direitos e o capital, retomados os valores de liberdade e democracia, correção e justiça, para construir fundações para um projeto de longo prazo que abranja o desenvolvimento social, assim como o econômico.
"Não queremos que a China seja um gigante econômico, mas um anão cultural no futuro", disse Fong Songhua.
FONTE: O GLOBO