O Globo / O Estado de S. Paulo
Com o passar do tempo, tudo isso vira
memória, e o que conta são os laços mais permanentes, que se formam quando se
tem amizade
Sempre achei ruim morrer em dia triste,
chuvoso. Morrer é sempre desagradável, já escreveu um poeta. Pois não é que
nestes últimos tempos sombrios de São Paulo já perdi dois amigos, e dos mais
queridos, José Arthur Giannotti e Leôncio Martins Rodrigues?
Procurei na memória, que ainda não
desapareceu, mas me obriga a recordar fatos do passado com alguma dificuldade,
quando e como os conheci. Giannotti foi colega de minha irmã, Gilda, na
Faculdade (obviamente a de Ciências e Letras, da USP). Estudavam Filosofia.
Como eu entrei nela em 1950 para fazer o curso de Ciências Sociais, devo tê-lo
conhecido em 1951. Já Leôncio foi meu aluno no colegial, quando eu ainda era
estudante. Eram aulas de História (não me lembro se do Brasil ou Geral) no
colégio Fernão Dias Paes, que era em Pinheiros, como permanece até hoje. Eu e
Ruth obtivéramos uma oportunidade para ensinar de quem era, na época,
secretário de Educação do estado de São Paulo e se casara com uma de suas tias.
Com o passar do tempo, tudo isso vira
memória, e o que conta são os laços mais permanentes, que se formam quando se
tem amizade. Como foi o caso com Leôncio e com Giannotti.
Os dois eram muito diferentes e não se
conheciam quando os conheci. Só se haviam encontrado (se é que) ocasionalmente.
Leôncio na época era trotskista. Giannotti estudava e tinha pouco interesse por
política, menos ainda a “operária”. Ambos gostariam de mudar o mundo: um era
mais socrático, perguntava sem parar; outro, mais dogmático, sabia onde
encontrar o Paraíso terrestre: nos ombros da classe operária. Eu mais ouvia do
que falava. Talvez por temperamento quisesse mudar menos o mundo...
Não se preocupe o leitor. Não contarei 70
anos de nossa história. Meu senso de oportunidade o impediria. Recordarei
apenas alguns fatos que nos levaram a viver experiências em comum, a principal
das quais foi ler “O Capital”, de Marx, na tradução de Venceslau Roces, editado
pelo Fondo de Cultura Económica, do México. Lemos os quatro volumes inteiros,
durante vários anos; a tal leitura seguiu-se outra, também exegética dos
imensos volumes da “História Crítica da Mais Valia”, do mesmo autor. Cada um de
nós lia o texto em uma língua: alemão, francês, espanhol. Inglês, para cotejar
e tirar dúvidas... Entretanto, como fui obrigado a ir para o Chile, deixei o
grupo logo no começo das leituras da História Crítica.