Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
De novo, pesquisas mostram proporções singularmente altas de apoio ao governo e a Lula. Quase dois anos atrás, em agosto de 2007, motivado pela persistência desse apoio revelado em pesquisas análogas e pela retomada na imprensa da indagação de como interpretá-lo, dediquei um artigo desta coluna a explorar o assunto. Mas ele volta com os novos eventos e levantamentos, e assume feições também novas.
Um aspecto geral de importância diz respeito aos matizes da articulação entre interesses, de um lado, e, de outro, questões de identidade, de natureza mais difusa e simbólica, no condicionamento das simpatias e da eventual decisão de voto dos eleitores. Alguns desses matizes, evidenciados em pesquisas acadêmicas mais ambiciosas, podem ser resumidas como segue. Os interesses estão sempre presentes, naturalmente, e essa presença se dá de modo a respaldar, em boa medida, o bordão famoso de James Carville na campanha de Bill Clinton sobre o papel da economia. Mas não há como afastar o papel das questões de identidade, ou dos mecanismos que levam à identificação entre eleitores e líderes. Tais mecanismos podem operar de maneira mais tosca ou mais refinada, e os aspectos que determinam a diferença incluem justamente a medida em que a identificação com um líder ou outro (eventualmente com um partido ou outro) se associa com a percepção ou definição mais ou menos informada e sofisticada dos interesses em jogo, em contraste com o automatismo e o caráter emocional das "imagens" e da simpatia ou antipatia que as reveste. O que não impede que escolhas supostamente determinadas por interesses "racionais" acabem por cristalizar-se em identificações ou rechaços com forte carga emocional.
Lula é com certeza um caso de especial interesse a respeito. Tendo surgido como liderança "instrumental" de uma categoria sindical, sua afirmação como líder político obviamente contou com o apelo a uma imagem popular difusa de grande força potencial na desigualdade brasileira, a do operário imigrante que ascende e chega a pretender a Presidência da República. As bondades dos programas sociais (como quer que se queira qualificá-las, "dádivas" populistas e "compra de votos" ou inédita e bem-vinda redistribuição) trazem um claro componente de "interesse" ao apoio a Lula pelo eleitorado popular. Talvez o resultado mais notável seja algo que surgiu com nitidez - e tardiamente, diante dos séculos de desigualdade - na eleição de 2006: a "questão social" posta no foco da disputa eleitoral pela Presidência, com a forte correlação, particularmente clara no segundo turno, entre a posição socioeconômica dos eleitores e seu apoio a um ou outro candidato, bem como as projeções geográficas ou regionais daquela correlação. Não admira que a polarização sociopolítica que aí emerge (e que se reafirma depois na intensidade do continuado duelo PT-antiPT particularmente em São Paulo) se tenha feito acompanhar, como Maria Inês Nassif apontava no Valor de 4 junho, do "discurso errado", negativista e "udenista" adotado pelo principal partido de oposição a Lula nos enfrentamentos dos últimos tempos, o PSDB.
Mas é claro que temos agora algo que vai além da questão social e da polarização em torno dela. Por azeda que seja a disposição de boa parcela dos antilulistas, há certa impropriedade em falar de "polarização" se a aprovação a Lula oscila em torno ou acima do nível dos 80%. As razões de preocupação que se podem pretender ver aí parecem girar em torno da questão de até que ponto essa aprovação ampla significaria apoio e identificação de intensidade tal que pudesse talvez servir de suporte a cesarismos e aventuras autoritárias. Mas cabem duas ponderações: em primeiro lugar, a de que as pesquisas não deixaram de mostrar redução na aprovação quando a crise ameaçou nos atingir mais profundamente; em segundo lugar, a de que a condição em que o país se encontra é, de fato, inegavelmente excepcional, com boas notícias em diversas frentes, destaque internacional e expectativas positivas não obstante o ambiente externo economicamente favorável ter sido substituído pela crise mundial avassaladora.
De todo modo, a discussão em torno da introdução legal da possibilidade de nova reeleição para Lula é a face imediata que a preocupação tem assumido. À parte o que possa haver de fácil ou difícil, politicamente, quanto à aprovação a tempo da mudança constitucional necessária (e quem sabe também na revisão judicial da decisão), tem-se indagado sobre a sinceridade de Lula quando declara não desejá-la. Não me parece que o que há de bom para o país nos ineditismos até aqui envolvidos na experiência de Lula na Presidência justifique ver com olhos ingênuos seus motivos pessoais - mesmo se deixamos de lado coisas como, por exemplo, os traços decepcionantes da figura de Lula como líder revelados durante a crise do mensalão. Creio, porém, que basta atribuir a ele a capacidade de um cálculo político menos imediatista para que a recusa da nova reeleição com o casuísmo da mudança legal se mostre convincente: afinal, nas condições atuais, parecem muito boas as chances de se manterem até o fim do segundo mandato os níveis singulares de aprovação, que passariam a combinar-se com a exibição do perfil inquestionável de democrata - e com as duas coisas compondo um novo ineditismo de significação especial e um candidato formidável ao eventual retorno à Presidência mais adiante.
Claro, o imediatismo pode prevalecer na perspectiva de um PT afeito ao governo e sem um candidato alternativo de chances mais claras, o que se aplicaria a Dilma Rousseff mesmo com boa saúde e a especial plataforma de lançamento. Para o próprio Lula, contudo, a melhor aposta parece ser outra. Que acontece ser também institucionalmente a melhor para o país.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
De novo, pesquisas mostram proporções singularmente altas de apoio ao governo e a Lula. Quase dois anos atrás, em agosto de 2007, motivado pela persistência desse apoio revelado em pesquisas análogas e pela retomada na imprensa da indagação de como interpretá-lo, dediquei um artigo desta coluna a explorar o assunto. Mas ele volta com os novos eventos e levantamentos, e assume feições também novas.
Um aspecto geral de importância diz respeito aos matizes da articulação entre interesses, de um lado, e, de outro, questões de identidade, de natureza mais difusa e simbólica, no condicionamento das simpatias e da eventual decisão de voto dos eleitores. Alguns desses matizes, evidenciados em pesquisas acadêmicas mais ambiciosas, podem ser resumidas como segue. Os interesses estão sempre presentes, naturalmente, e essa presença se dá de modo a respaldar, em boa medida, o bordão famoso de James Carville na campanha de Bill Clinton sobre o papel da economia. Mas não há como afastar o papel das questões de identidade, ou dos mecanismos que levam à identificação entre eleitores e líderes. Tais mecanismos podem operar de maneira mais tosca ou mais refinada, e os aspectos que determinam a diferença incluem justamente a medida em que a identificação com um líder ou outro (eventualmente com um partido ou outro) se associa com a percepção ou definição mais ou menos informada e sofisticada dos interesses em jogo, em contraste com o automatismo e o caráter emocional das "imagens" e da simpatia ou antipatia que as reveste. O que não impede que escolhas supostamente determinadas por interesses "racionais" acabem por cristalizar-se em identificações ou rechaços com forte carga emocional.
Lula é com certeza um caso de especial interesse a respeito. Tendo surgido como liderança "instrumental" de uma categoria sindical, sua afirmação como líder político obviamente contou com o apelo a uma imagem popular difusa de grande força potencial na desigualdade brasileira, a do operário imigrante que ascende e chega a pretender a Presidência da República. As bondades dos programas sociais (como quer que se queira qualificá-las, "dádivas" populistas e "compra de votos" ou inédita e bem-vinda redistribuição) trazem um claro componente de "interesse" ao apoio a Lula pelo eleitorado popular. Talvez o resultado mais notável seja algo que surgiu com nitidez - e tardiamente, diante dos séculos de desigualdade - na eleição de 2006: a "questão social" posta no foco da disputa eleitoral pela Presidência, com a forte correlação, particularmente clara no segundo turno, entre a posição socioeconômica dos eleitores e seu apoio a um ou outro candidato, bem como as projeções geográficas ou regionais daquela correlação. Não admira que a polarização sociopolítica que aí emerge (e que se reafirma depois na intensidade do continuado duelo PT-antiPT particularmente em São Paulo) se tenha feito acompanhar, como Maria Inês Nassif apontava no Valor de 4 junho, do "discurso errado", negativista e "udenista" adotado pelo principal partido de oposição a Lula nos enfrentamentos dos últimos tempos, o PSDB.
Mas é claro que temos agora algo que vai além da questão social e da polarização em torno dela. Por azeda que seja a disposição de boa parcela dos antilulistas, há certa impropriedade em falar de "polarização" se a aprovação a Lula oscila em torno ou acima do nível dos 80%. As razões de preocupação que se podem pretender ver aí parecem girar em torno da questão de até que ponto essa aprovação ampla significaria apoio e identificação de intensidade tal que pudesse talvez servir de suporte a cesarismos e aventuras autoritárias. Mas cabem duas ponderações: em primeiro lugar, a de que as pesquisas não deixaram de mostrar redução na aprovação quando a crise ameaçou nos atingir mais profundamente; em segundo lugar, a de que a condição em que o país se encontra é, de fato, inegavelmente excepcional, com boas notícias em diversas frentes, destaque internacional e expectativas positivas não obstante o ambiente externo economicamente favorável ter sido substituído pela crise mundial avassaladora.
De todo modo, a discussão em torno da introdução legal da possibilidade de nova reeleição para Lula é a face imediata que a preocupação tem assumido. À parte o que possa haver de fácil ou difícil, politicamente, quanto à aprovação a tempo da mudança constitucional necessária (e quem sabe também na revisão judicial da decisão), tem-se indagado sobre a sinceridade de Lula quando declara não desejá-la. Não me parece que o que há de bom para o país nos ineditismos até aqui envolvidos na experiência de Lula na Presidência justifique ver com olhos ingênuos seus motivos pessoais - mesmo se deixamos de lado coisas como, por exemplo, os traços decepcionantes da figura de Lula como líder revelados durante a crise do mensalão. Creio, porém, que basta atribuir a ele a capacidade de um cálculo político menos imediatista para que a recusa da nova reeleição com o casuísmo da mudança legal se mostre convincente: afinal, nas condições atuais, parecem muito boas as chances de se manterem até o fim do segundo mandato os níveis singulares de aprovação, que passariam a combinar-se com a exibição do perfil inquestionável de democrata - e com as duas coisas compondo um novo ineditismo de significação especial e um candidato formidável ao eventual retorno à Presidência mais adiante.
Claro, o imediatismo pode prevalecer na perspectiva de um PT afeito ao governo e sem um candidato alternativo de chances mais claras, o que se aplicaria a Dilma Rousseff mesmo com boa saúde e a especial plataforma de lançamento. Para o próprio Lula, contudo, a melhor aposta parece ser outra. Que acontece ser também institucionalmente a melhor para o país.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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