Ex-presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) critica a retenção de recursos pelo governo federal
Carolina Brígido e Francisco Leali
BRASÍLIA - O ministro, que ajudou a criar os mutirões carcerários quando estava à frente do CNJ, cobra uma atitude, principalmente do governo federal, para acabar com o caos no sistema prisional e diz que contingenciar recursos do setor, em meio à crise atual, “é caso de se pensar em crime de responsabilidade”. O Fundo Penitenciário (Funpen) tem um estoque de quase R$ 2 bilhões, mas o governo impede que boa parte seja gasta.
Como o senhor vê o sistema penitenciário brasileiro?
Nós temos aumentado significativamente o número de presos. Hoje falamos mais ou menos em 550 mil presos para 340 mil vagas. Só isso já mostra um descompasso. Estamos falando apenas do regime prisional completo. Falta aí talvez 25, 30 mil vagas para o semiaberto. Faltam vagas, há presos amontoados em delegacia, o que é flagrantemente ilegal. Em suma, temos todo um quadro preocupante.
O Judiciário tem parcela de culpa?
Os governadores, os gestores reclamam que a Justiça não consegue dar fluxo. Prende provisoriamente e depois não decide. No caso de homicídio, demora para fazer júri, demora nos julgamentos. Por isso, o tema tem que ser tratado de uma forma integrada, tem que ter uma estratégia global, holística para tratar do tema. Não pode ser nem só o Judiciário, nem só o Executivo, as defensorias públicas, o Ministério Público. Precisaria ter uma estratégia global para tratar dessa temática.
Depois das notícias de mortes bárbaras no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, o senhor considera a situação do estado mais grave que a de outros?
Os fatos ocorridos são de extrema gravidade. Mas, por exemplo, na audiência pública que nós tivemos (no STF) sobre o regime semiaberto, o juiz da Vara de Execuções Penais de Porto Alegre disse que ninguém mais tem comando sobre o Presídio Central. Tem um preso que fica encarregado de fechar a sala, e este é um candidato a morrer daqui a pouco, porque está de alguma forma prestando serviço. Acredito que, de alguma forma, um quadro de desorganização, de caos, de falta de controle existe em vários lugares do Brasil.
Falta dinheiro para o sistema carcerário?
Esse tema exige a participação da União. E a União faz um jogo aqui um pouco farisaico. No que diz respeito, por exemplo, à construção de presídios, libera os recursos e depois contingencia. Aconteceu na minha gestão (na presidência do CNJ e do STF). Houve um gesto do ministro Paulo Bernardo, que era ministro do Planejamento, liberando R$ 400 milhões, que criaria 70 mil vagas. Portanto, resolveria parte séria do problema. Em seguida, veio uma crise e esse recurso foi contingenciado. Hoje fala-se que no Funpen (Fundo Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça) existiria algo em torno de R$ 2 bilhões, que estariam sendo contingenciados. No que diz respeito na liberação desses recursos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), os secretários de Justiça dizem que as exigências burocráticas são tão onerosas, tão pesadas, que dificulta imensamente o atendimento.
O senhor acha que a atuação do governo federal deve se limitar à liberação do dinheiro?
Tem que ser muito mais do que isso. A União tem uma série de responsabilidades em matéria de segurança pública. É ela que legisla sobre direto penal, sobre processo penal, sobre execução penal. Portando, é ela que fixa inclusive as condições de regimes prisionais. Ela que mantém e controla a Polícia Federal, ela que tem as Forças Armadas. O crime organizado, em geral, é interestadual. Me parece que já passou da hora da gente discutir um sistema integrado de segurança pública. Um SUS (Sistema Único de Saúde) de segurança pública. Por outro lado, é inequívoco que é a União que detém hoje, nesse sistema federativo brasileiro assimétrico, a concentração de recursos. Com exceção de um ou outro estado, esses recursos estão concentrados no âmbito da União.
Há resistência por parte dos estados em relação à atuação da União, especialmente dos secretários de segurança? Não seria uma forma de dizer que os estados não são competentes neste setor?
Não acredito que haja esse tipo de resistência, desde que haja disposição de colocar recursos. Desde que as pessoas não cheguem para dar conselhos apenas. Até porque muitos não estão nem em condições de dar conselhos.
O senhor acha que a União também tem responsabilidade na gestão dos presídios? Seria o caso de privatiza-los, como já foi feito com alguns?
Há boas experiências. Minas Gerais têm alguma experiência no sistema de terceirização, entidades sem fins lucrativos assumiram. Mas o importante é que haja gestão. Hoje o modelo é caro, fala-se de um custo de R$ 3 a R$ 5 mil por preso e é absolutamente ineficiente.
Por que o senhor acha que esse setor está tão esquecido?
A rigor, a sociedade devota a esse assunto, quando muito, um sentimento de indiferença. Quando não de claro repúdio. ‘Melhoria de sistema prisional, quando a gente já tem caos na saúde, no transito, no sistema escolar? Se alguém fez algo, está preso, é porque realmente precisa ser punido.’ Esse sentimento, de alguma forma, se transfere também para o aparato estatal como um todo. No nosso trabalho no CNJ, isso ficou evidente. Juízes de execução penal que nunca tinham visitado o presídio. Isso mostra o tamanho desprezo. O episódio de Abaetetuba, que uma menina foi colocada num presídio com homens, é a revelação cabal de que não se acompanhava este quadro. Prisões provisórias que se alongam indefinidamente. Pessoas que ficam 12, 14 anos presas provisoriamente, sem sentença. Certamente já cumpriram a pena nesse quadro, entre aspas, provisório. Isso é de responsabilidade do Judiciário. A rigor, não há ninguém, não há nenhuma instituição que esteja isenta de responsabilidade.
Para o senhor, a prisão dos condenados no mensalão acendeu o debate sobre as condições em que vivem os presos?
Eu tenho a impressão de que teve esse mérito, permitiu que se deitasse um olhar sobre esse sistema. Começaram a falar das condições dos presídios a partir da declaração do ministro da Justiça. Deitou-se luz sobre esse sistema, que só vem piorando nos últimos anos com o descontrole e com o aumento do número de presos e com a falta de investimento. Não há planejamento nenhum. O Ministério Público, o CNJ, o Ministério da Justiça, com todos os seus órgãos, atuam todos de forma muito desarticulada, é um quadro de muita desfuncionalidade. É necessário construir-se uma estratégia. Eu tenho a impressão de que há recursos e de que, com algumas medidas simples de gestão, poderíamos ter ganhos significativos. Porque estamos com esse déficit nas vagas do semiaberto? Notório que é por falta de investimento.
Para o senhor, as penas alternativas ainda são pouco aplicadas no Brasil?
Esse quadro de descoordenação que se manifesta no sistema prisional também tem a ver com as medidas alternativas como um todo. Aprovamos a lei das medidas cautelares, alternativas à prisão, com o colar, a pulseira eletrônica, o monitoramento eletrônico. Alguém está cuidando de comprar esse material e de coordenar a aplicação dessas medidas? Evitaria em muitos casos a prisão provisória. Alguém está coordenando isto? Se os estados não têm hoje recursos para comprar marmita para preso, eles vão comprar sistema de monitoramento eletrônico? Isso é um quadro de vergonha. Mas não é por falta de recursos. É por falta de gestão.
Quem deveria conduzir a organização desse quadro caótico?
São atores plurais. Agora, no que diz respeito a provimento de recursos, o papel central, de protagonista, é do Ministério da Justiça, é da União.
Para o senhor, os agentes públicos têm disposição e vontade para fazer isso?
O governo do Maranhão pareceu mais preocupado em criticar o CNJ do que em apresentar uma solução para o problema. Eu acredito que os agentes políticos têm mandatos claros e devem agir no sentido de sua consecução. Nós temos hoje quadros em todos os setores, temos gestores no Ministério da Justiça, no CNJ capazes de desenvolver esses projetos. É preciso apenas dar prioridade. É impensável que, no quadro atual de superlotação dos presídios, nós tenhamos contingenciamento de verbas do Funpen. É caso de pensar em crime de responsabilidade. Ou qualquer dificuldade burocrática na liberação desses recursos. Que nós tenhamos esse déficit enorme de vagas no sistema semiaberto, que é um regime de prisão, e tenhamos recursos? Há pouco tempo li um relatório que dizia que com R$ 400 e poucos milhões estaria resolvido o déficit de vagas do regime semiaberto. E nós temos R$ 2 bilhões!
O senhor considera eficaz a atual lei penal brasileira?
É uma questão passível de mudança, mas, a rigor, a lei não é causa direta da situação do sistema. Nós temos lei que permite reduzir o número de presos provisórios. Mas a estamos aplicando? Não. E por quê? Por uma certa desídia. Não se enfatiza a importância disso para o juiz. Falta essa integração. O juiz diz, por exemplo, que não dispõe do instrumento de monitoramento eletrônico. Fica esse jogo de culpas recíprocas.
Existe perspectiva para a ressocialização de presos hoje?
As cadeias hoje são escolas do crime, nós estamos vendo isso com as organizações criminosas. Se o Estado não propicia o mínimo de garantia, alguém propicia. A seu modo. E exige contrapartida. Isto precisa ser visto. Na questão da ressocialização, o Brasil tem um dos maiores quadros de reincidência. Alguém está cuidando disso? Não. Isso é difícil? Não é difícil buscar empregos para egressos do sistema prisional e para pessoas que já possam eventualmente trabalhar fora, esteja no regime semiaberto ou aberto. Tem o programa Começar de Novo, do CNJ. Mas isso precisa ser expandido. Isso é um programa de direitos humanos, é claro. Mas é de segurança pública, porque se trabalha a não reincidência. Numa economia com forte participação estatal não é difícil você determinar que um percentual de vagas dos terceirizados... Inventa-se mais uma cota. Há seleção. As fundações hoje determinadas fazem seleção aqui no Supremo.
Existem presidiários no gabinete do senhor?
Temos, continuamos tendo. E isso é possível. O Supremo continua tendo. Os terceirizados de prefeitura, do estado (poderiam ter). Nós não estamos falando de nada com custo extra. O que nós temos é uma péssima gestão. Esse sistema do jeito que está, para ficar ruim, tem que melhorar muito.
A situação dos menores internos parece a mesma dos presos, certo?
É a mesma coisa. Nós temos muito recursos hoje para o Sistema S. O treinamento dessas pessoas poderia ser uma parte da função desse sistema, a capacitação dessas pessoas, tanto do sistema prisional, quanto do sistema de reeducação. Esses recursos estão aí, é uma questão de alocação.
O senhor acha que o CNJ poderia atuar mais nesse setor?
O CNJ continua fazendo os mutirões carcerários e implementando as medidas previstas quanto ao acompanhamento das prisões provisórias. Mas poderia estar atuando mais na implementação da lei das medidas cautelares, das medidas alternativas, o que envolve o treinamento do próprio juiz. O monitoramento desse sistema de forma eletrônica, isso nós temos condições de fazer. A lei criou o departamento de monitoramento do sistema prisional no CNJ. O conselho dispõe de condições de fazer isso até de forma eletrônica hoje, tendo em vista os recursos disponíveis. Então, tem condições de fazer mais.
Como a defesa dos direitos dos presos poderia ser melhorada?
A gente detecta que uma série de violações aos direitos dos presos decorre da falta de advogados e de defensores públicos. Certamente, uma parte da resposta para esse déficit poderia vir de iniciativas ligadas à advocacia voluntária. E talvez pudéssemos criar a advocacia civil obrigatória, para quem se formou na universidade pública ou medidante auxílios públicos, como o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) e o Prouni (Programa Universidade para Todos).
Fonte: O Globo.