sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Merval Pereira - O que é, o que é?

- O Globo

O ministro da Economia, Paulo Guedes, volta e meia se arrisca a uma análise política, e quando o faz costuma tecer conceitos elásticos sobre o conjunto ideológico. Ontem, ele disse que “a mesma aliança de centro-direita que ganhou as eleições em 2018 continuou ampliando seu espectro de votos” nas eleições municipais. Quase a mesma análise do pastor Silas Malafaia, que também ontem esteve com o presidente para fazer um balanço do resultado, garantindo que quem perdeu a eleição foi PT e PSDB, Bolsonaro saiu vencedor.  

Também o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, festejou a vitória dos partidos do Centrão como sendo do governo. Para combater o que chamam de “narrativa da esquerda”, vários governistas têm insistido nessa outra “narrativa”.

Guedes considera que a “centro-direita” aumentou seu poder, colocando essa avaliação na conta do grupo de apoio ao governo Bolsonaro. O Centrão agradece, e vai cobrar mais espaço no governo, mas PSD já quer ocupar lugar próprio e DEM e MDB saíram do Centrão.

Na campanha de 2018, Guedes insistia em colocar no mesmo balaio PT e PSDB, atribuindo a eles mais de 20 anos de domínio da social-democracia no Brasil, todos governos de esquerda que estariam sendo substituídos por um governo de direita.

César Felício - Esteios da governabilidade

- Valor Econômico

Partidos que crescem não vão disputar Presidência

As eleições municipais registraram crescimento dos seguintes partidos na malha de prefeituras espalhada pelo país: PP (de 495 para 682), PSD (de 537 para 650), DEM (de 266 para 459), PL (de 294 para 345) e Republicanos (de 103 para 208). Estes cinco partidos somaram 1.695 conquistas em 2016. Foram 2.344 agora, ou 38% a mais.

Em comum, estes partidos têm a característica de estarem vocacionados para as eleições de caráter local e parlamentar. Não são legendas para disputar a Presidência, salvo às vezes fornecendo o nome para vice em alguma chapa, como fez o PP em 2018 e o DEM em 2010, acompanhando os candidatos tucanos. O PP não lança candidato próprio à Presidência desde 1994, quando ainda se chamava PPR. o DEM não o faz desde 1989, ocasião em que era o PFL. PSD, PL e Republicanos jamais o fizeram. São, portanto, coadjuvantes, e não protagonistas do jogo presidencial.

Os partidos que tradicionalmente são atores da eleição maior tiveram encolhimento de malha. O MDB (candidaturas próprias em 1989,1994 e 2018) caiu de 1.035 para 773. O PSDB minguou de 785 para 512. O PDT deslizou de 331 para 311. O PSB despencou de 403 para 250. E o PT saiu de 254 para 179. Somados, recuaram de 2.808 para 2.025, queda de 28%. A conta pode mudar um pouco com o segundo turno, mas nada que altere o eixo da Terra.

Fernando Abrucio* - Lições para além da vitória do centro

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Muitos creem que as eleições, nos EUA e aqui, apontam um novo caminho de centro para 2022. Faz sentido, porém, é preciso destacar que moderação política não significa inação

Marco Maciel, um dos políticos mais experientes do país, já dizia que uma eleição começa quando acaba a outra. No momento atual, o debate brasileiro multiplica esse provérbio: duas eleições recentes estão alimentando a discussão política, a presidencial americana e a municipal daqui. Inspirados pelo enredo e resultados de ambas, muitos acreditam que elas apontam um novo caminho para o pleito de 2022, no qual um novo centro teria grande espaço para conquistar a Presidência da República. A ideia faz sentido, mas é preciso evitar que ela não se transforme numa fácil e falsa fórmula eleitoral.

Inspirar-se efetivamente nessas duas últimas eleições seria buscar o seu sentido mais profundo, e não ficar na superfície do fenômeno. Se isso for feito, as descobertas irão além de um receituário para o novo centrismo, em contraposição ao Centrão e à polarização Bolsonaro versus Lula. Trata-se de entender os contextos, atores e projetos que deram materialidade à vitória de Joe Biden e Kamala Harris nos Estados Unidos, bem como as razões do triunfo dos políticos pragmáticos vencedores das eleições municipais de 2020.

De maneira sucinta, cinco elementos advêm dessas duas experiências eleitorais como lições para os que pretendem vencer o presidente Bolsonaro. O primeiro deles é que o desempenho do governante de plantão é a baliza básica do jogo político, especialmente quando ele busca a reeleição. No caso americano, a principal escolha estratégica de Biden foi mirar nos principais erros de Trump, colocando-se como o seu oposto nestes pontos, algo que foi facilitado pelo rotundo fracasso federal no combate à covid-19.

“Fim das coligações produziu o melhor sistema eleitoral da história”, diz Nicolau

Votação por aplicativo, tese levantada pelo presidente do TSE, ameaça o sigilo, diz professor

Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico

SÃO PAULO - Debruçado há três décadas sobre o sistema eleitoral brasileiro, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio, Jairo Nicolau, diz que as eleições municipais se realizam sob as melhores regras da história. Não tem dúvidas de que o fim das coligações nas eleições proporcionais oferecerá um maior controle do eleitor sobre o resultado das urnas e depuração do quadro partidário no Legislativo. A maioria das Câmaras de Vereadores do país reduziu o número de partidos lá representados. E, com isso, a hiperfragmentação da Câmara dos Deputados, quesito em que o Brasil se mantém no pódio mundial há muitos anos, também deve se reduzir. Por isso mesmo, já se iniciou um movimento para ressuscitar as coligações proporcionais.

Presença frequente em todas as discussões de reforma política no Congresso Nacional nos últimos anos, onde sempre advogou pelo fim das coligações proporcionais, Nicolau não acreditava mais que o dispositivo cairia quando, finalmente, em 2017, sua extinção foi constitucionalizada. Por isso, não se surpreendeu ao saber do movimento, liderado pelos pequenos partidos, pela volta do mecanismo. É a sobrevivência de sua representação na Câmara dos Deputados que está em jogo - “É um vexame nacional se vier a acontecer”.

Entrevista | José Álvaro Moisés: Centro moderado volta à cena e esquerda se recupera

José Álvaro Moisés identifica refluxo da onda da “nova política”

 Por Robinson Borges | Valor Econômico (16/11/2020)

 SÃO PAULO - O principal fator político da corrida eleitoral é a reemergência do centro moderado e da esquerda. Em São Paulo, a ida de Bruno Covas (PSDB) e de Guilherme Boulos (Psol) para o segundo turno, além do derretimento de Celso Russomanno (Republicanos), apoiado por Jair Bolsonaro (sem partido), mostram o refluxo da onda da “nova política”.

Esse é o diagnóstico do cientista político José Álvaro Moisés. Para o professor titular da USP, há uma reacomodação dos partidos e de lideranças que têm tradição política. “A pandemia levou a perceberem que você precisa do Estado, da política”, afirma.

Valor: Qual é a avaliação que o senhor faz da eleição no geral e em São Paulo, em particular?

José Álvaro Moisés: Não apenas a onda conservadora e da nova política perdeu impulso, como há reacomodação dos partidos, entre os quais o PSDB, o DEM, o MDB, o PSD. Nessa reacomodação, lideranças que têm tradição política, ao contrário de 2018, têm sucesso. É nesse contexto que vejo o desempenho de Covas. Ele tem se beneficiado pelo que fez em vários aspectos, mas, principalmente, no que diz respeito ao papel da prefeitura no caso da pandemia. E a performance de Boulos foi muito boa. Ele se torna muito competitivo. O resultado tem uma vantagem: vai exigir que o debate sobre o destino da cidade se aprofunde.

Valor: Como o senhor vê a chegada de Boulos ao segundo turno, com um desempenho surpreendente, se consideradas as pesquisas?

Moisés: Boulos cresceu no voto jovem. É provável que Covas tenha perdido parte dos votos dos mais velhos por causa da pandemia. Significa também que se restaura o confronto entre uma posição de centro moderado e de esquerda, como existia entre PSDB e PT. O Psol é uma opção que busca se consolidar na direção da esquerda, sem o ranço hegemonista que caracterizou o PT.

Valor: Covas vai ter de caminhar para a direita?

Moisés: Vai ter que buscar novos segmentos do eleitorado, de Russomanno e de [Márcio] França [PSB].

Valor: Boulos e Manuela D’Ávila (PCdoB), que foi ao segundo turno em Porto Alegre, adotaram tom moderado. Isso os torna mais competitivos?

Moisés: Reflete visão crítica em relação às coisas que aconteceram com o PT. Não adianta radicalizar numa posição que afasta os candidatos de esquerda da mediana dos eleitores. Nesses dois casos, identifico preocupação de deixar claro um compromisso com a democracia. Além dessa marca, [apresentam] uma retomada do objetivo de enfrentar as desigualdades sociais.

Dora Kramer - No balanço das ondas

- Revista Veja

As derrotas eleitorais são como desastres aéreos: têm várias causas

O ambiente adverso que se formou em torno do presidente Jair Bolsonaro ante o mapa do primeiro turno das eleições municipais serve como projeção certeira (e definitiva) para o cenário da presidencial de 2022? No mundo político a concordância geral é de que não, não serve, mas produz importantes indicadores para os dois campos, pró e contra Bolsonaro.

Os adversários enxergam um bom momento para reação, mas admitem que isso terá prazo de validade curto se não souberem dar o aproveitamento adequado. Reconhecem que as derrotas ocorreram mais em decorrência dos equívocos cometidos pelo presidente do que por méritos da oposição a ele à esquerda, ao centro ou à direita.

Fiz uma lista dos tropeços presidenciais, cruzei com impressões de gente experiente nos diferentes grupos ideológicos e chegamos aos seguintes pontos em comum sobre as causas, que, à semelhança dos desastres de avião, são várias.

Luiz Carlos Azedo - Decifra-me ou te devoro

- Correio Braziliense

A política no Brasil está no campo da moderna complexidade. As eleições municipais são um momento decisivo desse processo de ordem-desordem das relações políticas

Quem foi aluno de cursinho do falecido professor Manoel Maurício de Albuquerque, um expurgado do Instituto Rio Branco pelo regime militar, antes de qualquer aula sobre História do Brasil, aprendia a diferença entre uma totalidade simples e uma totalidade complexa. Ele desenhava um círculo com quatro traços verticais e pedia que um dos alunos o descrevesse em voz alta. Depois, desenhava o mesmo círculo e dispunha os demais elementos na posição da boca, do nariz e dos olhos. O primeiro representava a totalidade simples; o segundo, a complexa. Mais Paulo Freire, impossível.

Na sociologia moderna, a discussão é mais complicada. Newton consolidou o paradigma cartesiano de totalidade complexa a partir da lei da gravitação universal. Daí resultam conceitos que buscam separar a mente e o corpo, a verdade objetiva externa do observador, a estrutura dividida em parcelamentos e a noção de tempo flecha, entre outros. Trata-se da ideia de que a natureza tem uma ordem dada e, para decifrá-la, é preciso esquartejá-la em pequenos pedaços, mensuráveis.

Ricardo Noblat - Rio, São Paulo e Recife – Uma eleição liquidada, duas indefinidas

- Blog do Noblat | Veja

O peso do imprevisto

Uma das marcas das eleições no segundo turno é o tempo curto de campanha. Outra, que o candidato que sai na frente nas pesquisas de intenção de voto quase sempre vence. São raras as exceções.

Um caso: em 1994, o jornalista Hélio Costa disputou o governo de Minas Gerais e só não se elegeu no primeiro turno porque lhe faltaram 1,2% de votos. Acabou derrotado no segundo.

Outro caso: em 2.000, prefeito do Recife, Roberto Magalhães foi candidato à reeleição. Não venceu no primeiro turno à falta de 0,5% dos votos. Perdeu no segundo por uma diferença de 0,4%.

Salvo um imprevisto de grande dimensão, a eleição para prefeito do Rio está liquidada em favor de Eduardo Paes (DEM). Na nova pesquisa Datafolha, ele bate Marcelo Crivella por 71% a 29%.

Apenas no segmento dos evangélicos é que Crivella derrota Paes por 45% a 34%. Há 4 anos, Crivella elegeu-se fugindo do rótulo de bispo da Universal. Agora, agarra-se ao rótulo. Não tem salvação.

Crivella desembarcou em Brasília para pedir ao presidente Jair Bolsonaro que gravasse mais um vídeo recomendando o voto nele, e que o acompanhasse em uma caminhada no Rio.

Bolsonaro topou gravar o vídeo, mas caminhar ao lado de Crivella, não. Era só o que lhe faltava. O Rio é o berço político de Bolsonaro e ali, este ano, ele foi amplamente derrotado.

Eliane Cantanhêde - ‘Não levamos nada’

- O Estado de S. Paulo

Mário Villalva: ‘A diplomacia brasileira foi ingênua, amadora ou imprudente?’

Depois de ser alvo de todas as críticas e de o Brasil sofrer todo o desgaste, o presidente Jair Bolsonaro está prestes a reconhecer finalmente, talvez ainda hoje, a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Desta vez, porém, os últimos não serão os primeiros, serão os últimos mesmo, para desconforto de diplomatas, militares, empresários, exportadores e analistas. Mas o “capitão” é o “capitão”, o que fazer?

É agora que vai ficar mais evidente ainda a tragédia da política externa brasileira que, segundo o embaixador Mário Villalva, “jogou todas as fichas numa só cesta, transformou os EUA na única referência”. Isso, destaca, “não combina com o nosso DNA, a nossa índole, a nossa tradição de política externa, que sempre foi ecumênica e universal”.

Diplomata de carreira, ex-embaixador no Chile, Portugal e Alemanha, Villalva presidiu a Apex no início do governo Bolsonaro, mas saiu três meses depois, botando a boca no trombone contra o aparelhamento político. Ainda “na ativa”, está licenciado e se soma a ex-chanceleres e a mentes brilhantes da história do Itamaraty na crítica à atual política externa.

Ignácio de Loyola Brandão* - Maricas é quem me xinga

- O Estado de S. Paulo

Entre os machões estava um de apelido Chola. Feroz, mandão, humilhava o tempo inteiro

Quando criança, lá em minha terra, um dos piores xingamentos era o de maricas. Significava que você era covarde, fraco, desprezível. O maricas – ou mariquinha – era ninguém, via-se isolado, fora do grupo. Naquela época ainda não existia o politicamente correto, os machões dominavam, ser macho era ser mandão, prepotente, dono do território, do falar e pensar, líder, chefe. Quanto mais arrogante alguém era, mais admirado. Ninguém queria ser maricas, homem-mulher. 

Para um menino, ser chamado de mariquinha era um terror. Carimbava. Fosse hoje seria demolido pela rede social, imaginem um efeminado, bicha, pederasta, guaxeba, boneca, jiló, gobira, viado, 3x8. O 24 era o viado no jogo de bicho. Todos tinham pavor de ser o 24 na lista de chamada da escola, virava motivo para bullying, era pior do que ter tuberculose, lepra ou gonorreia. Era ser humilhado com o riso das jovens, levava surra dos pais, ouvia o choro das mães. Fosse religioso, não obtinha a absolvição na confissão, não podia comungar. Ser maricas era um pecado.

Ser maricas ou mariquinha era tormento, a vida tornava-se um inferno. Tive vários amigos assim rotulados. Alguns deixaram a cidade, formaram-se, fizeram carreira. Outros foram destruídos, “carimbados” que estavam. O mundo masculino era implacável. Entre os machões estava um de apelido Chola. Nunca soube seu nome. O pai tinha abandonado a mãe, ele fora expulso da escola. Sua avó comandava o jogo do bicho no bairro. Feroz, mandão, humilhava o tempo inteiro. Ele tinha determinado dezenas de garotos como maricas, dizia que não servem para nada, não enfrentam uma briguinha de fim de aula, se pegam sarampo ou resfriadinho se apavoram com medo de morrer. Certo dia, quando a situação chegou ao insuportável, uniram-se os maricas e os supostamente mariquinhas, porque muitos dos não maricas assim tinham sido rotulados em algum momento de suas curtas vidas. A quadrilha do ódio era ativa. O grupo se armou com pedras, estilingues, cabos de vassoura com pregos e folhas serrilhadas de abacaxi, que cortam dolorosamente. Cercaram Chola no jardim. Intimidado, ele “pulou” para trás, deu o falado por não falado. Chola era conhecido, dizia sim, depois dizia não. Falava pau e depois dizia que era pedra, galo virava galinha. Dizia e desdizia. Atemorizado, ele negou:

Elena Landau* - Memória tumultuada

- O Estado de S. Paulo

Ministro Guedes marcou sua gestão por tentar adaptar a realidade a seus devaneios

Controladoria-Geral da União (CGU) organizou um seminário sobre Os Desafios da Desestatização há poucos dias. Uma das estrelas do evento foi Paulo Guedes, que se confessou frustrado por não ter vendido nada, apesar das promessas de campanha. De fato, é inexplicável que um governo eleito com uma pauta de desestatização tão clara e com metas tão ousadas tenha feito tão pouco.

Infelizmente, não ouvimos um mea-culpa. Sem um bom entendimento dos desafios, não se consegue traçar um plano para superá-los. Repetindo a cantilena de sempre, atribui aos acordos políticos no Congresso a responsabilidade da tibieza do programa. Mas não disse em que exatamente nossos parlamentares estão atrapalhando.

Como não há desejo de vender PetrobrásCaixa ou Banco do Brasil, muito pouco depende de anuência do Legislativo. Só a Eletrobrás está pendente. A lista de intenções do governo chama atenção pela ausência das empresas que não precisam de autorização específica, como EBC, EPL, Infraero ou Valec. Ou mesmo, a liquidação de outras, como Hemobrás.

Enquanto o ministro falava, o Gabinete de Segurança Institucional enviava para publicação no DOU uma resolução recomendando a criação da Alada – Empresa de Projetos Aeroespaciais SA. Já será a segunda estatal criada neste governo.

Míriam Leitão - Uma nova onda e o mesmo tormento

- O Globo

Nós brasileiros estamos submetidos a longo sofrimento, a uma dor que se desdobra em várias aflições neste ano em que “distopia” deixou de ser forte o suficiente para descrever o que vivemos, virou uma palavra pálida. Quando o país achava já ter vivido tudo, começam os sinais de que a pandemia vai se agravar. Mais mortes, mais doentes, mais saudades, mais erros do governo. Como o presidente se atreve a ser assim tão desrespeitoso com a vida humana, por tanto tempo? Como o ministro da Saúde consegue ser tão servil a um presidente que ameaça a saúde pública, pela qual ele deveria zelar?

Quando o Ministério acerta em uma postagem breve, o recado é censurado. Na quarta-feira, às 10h44, o aviso do Ministério da Saúde foi de que “não há vacina, substância ou remédio que previnam” a Covid-19. Portanto, “a nossa maior ação contra o vírus é o isolamento social e a adesão das medidas de proteção individual”. O recado foi retirado e substituído por postagens recomendando apenas o “tratamento precoce”. Pode-se imaginar o que houve. O presidente enquadrou o ministro. E o general mostrou de novo que para ele obedecer a uma ordem é mais importante do que cumprir seu dever. Ele está no comando da área da Saúde no meio de uma pandemia que sangra o país, mas para Pazuello o importante é o lema: “Ele manda, eu obedeço.”

Hélio Schwartsman - O futuro da esquerda

- Folha de S. Paulo

Se quiser assegurar um lugar no futuro, PT precisará superar Lula

Como epidemias em países continentais, resultados eleitorais precisam ser analisados com cautela. São várias coisas diferentes acontecendo ao mesmo tempo, o que tende a produzir miragens.

Se olharmos para o número absoluto de prefeituras, o bloco dos partidos considerados de esquerda, PT, PDT, PSB, PCdoB, Rede e PSOL, perdeu posições em relação ao ciclo anterior. Em 2016 eles haviam conquistado 1.088 paços municipais. Neste ano, foram, até aqui, 795.

O problema de olhar apenas para os números absolutos é que homegeneizamos coisas muito diferentes. Nessa métrica, Serra da Saudade, com 781 habitantes, vale tanto quanto São Paulo, com mais de 12 milhões. Grotões tendem a responder com muita lentidão às mudanças políticas. Se quisermos ter uma ideia mais precisa de para onde os ventos sopram, devemos dirigir o olhar para os maiores centros urbanos. E neles a esquerda parece retomar protagonismo.

Bruno Boghossian – O partido do eu sozinho

- Folha de S. Paulo

Convites para filiação refletem fragilidades, desconfiança e projeto personalista

Um feirão partidário se abriu para Jair Bolsonaro depois de seu papelão no primeiro turno das eleições municipais. Líderes de siglas do centrão enxergaram um presidente enfraquecido pela falta de estrutura política e fizeram convites de filiação ao chefe do Planalto.

Até agora, os acenos partiram de legendas que passaram a compor o núcleo da nova base de Bolsonaro no Congresso: o PP do senador Ciro Nogueira, o PL do ex-deputado Valdemar Costa Neto e o Republicanos, que atualmente hospeda dois dos três filhos políticos do presidente.

O caminho escolhido por Bolsonaro deve fazer pouca diferença por enquanto, assim como não foi determinante sua passagem pelo partido de aluguel que serviu de veículo para a candidatura de 2018. Ainda que seja alvo de assédio de algumas siglas, seu projeto de poder é individual.

Angela Alonso - Vitória da urna

- Folha de S. Paulo

Eleitores encontraram opções, à esquerda e à direita, adeptas da etiqueta democrática

O mundo era outro, mas a eleição era a mesma, municipal. A candidata do PC do B amparou concorrente que desfalecia, em meio a debate. Era a disputa pela Prefeitura do Rio de Janeiro, e foi ao vivo que Flávio Bolsonaro passou mal. Boa tampouco foi a recepção à solidariedade da médica. O pai do moço disse que comunista não tocava em filho seu. Um gesto miúdo de civilidade rechaçado.

Bolsonaro nunca assimilou a etiqueta do respeito ao adversário. Mas sua postura era incomum. Frequentes eram ações como a de Jandira Feghali. Lula confortou Fernando Henrique Cardoso, quando da morte da esposa, ato retribuído anos adiante. Circula por aí foto de José Serra vacinando Lula, nos tempos em que a credibilidade do conhecimento científico era ponto pacífico. Quando do acidente de Eduardo Campos, políticos de todos os matizes prestaram homenagens.

A política nunca foi, nem aqui, nem na China, isenta de truculência e ignorância. Mas, nas democracias, a civilidade é a regra. Ela prevaleceu entre nós por bastante tempo.

O bolsonarismo é um barbarismo, mas não uma revolução. O mundo da polidez política foi indo abaixo antes dele, de grão em grão. Aécio Neves questionou no TSE a lisura da reeleição de Dilma. As urnas, acusadas de resultado desagradável, viram-se desclassificadas como porta-vozes da democracia.

Reinaldo Azevedo – Corrija a vontade com inteligência

- Folha de S. Paulo

Eleitor recusou a estupidez antipolítica, mas a esperança precisa aprender a fazer conta

Saúdo alguns sinais que vêm das urnas como auspícios de sanidade. Mas estamos ainda lendo o voo das aves e fazendo interpretações. Convém não confundir presságios com realidade, bom augúrio com antevisão do futuro. “O mundo é para quem nasce para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.”

Os versos pertencem ao poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, no heterônimo Álvaro de Campos. Não se trata de autoajuda para tontos, mas de autoironia para sábios. No verso seguinte, escreve: “Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez”. O poeta conquistou o mundo como inapto e sonhador. A literatura, felizmente, consagra o erro porque não é tabela trigonométrica. A política é quase.

O eleitorado, na média, manteve distância da estupidez encarnada pelo presidente da República. O sobrenome “Bolsonaro” agregado a candidatos (re)elegeu apenas o vereador Carlos, que obteve 35.657 votos a menos do que em 2016, quando Jair era só um postulante à Presidência, de sucesso então improvável. O poder do pai tirou votos do filho.

Até o bolsonarismo Nutella do Novo levou uma sova. Os laranjas que faziam a dança do acasalamento da antipolítica com férias em Miami não conseguiram eleger nem um miserável prefeito. Seus candidatos obtiveram menos de 392 mil votos no país. Ou mudam o CEO ou chamam de volta o antigo, sei lá.

Vinicius Torres Freire - Apagão na escuridão do governo

- Folha de S. Paulo

Por ação ou omissão, é hora de decidir por arrocho ou avacalhação do teto

Existem três hipóteses para o começo de 2021: 1) um arrocho por inércia dos gastos do governo federal; 2) um arrocho conflituoso, que depende de mudanças da Constituição; 3) uma avacalhação do limite de gastos federais, o “teto”. O ritmo de despiora da economia e a popularidade de Jair Bolsonaro dependem da decisão que será tomada (por ação ou omissão).

Se vier uma vacina no início do ano, haverá um choque favorável de expectativas, claro. Seus efeitos práticos, ao menos econômicos, apareceriam na segunda metade do ano, porém. Nem é bom pensar no que aconteceria em caso de repique relevante do número de infecções, agora ou até o Carnaval mudo de 2021. Mesmo no melhor cenário para a epidemia, o gasto do governo terá papel dominante.

Faz meses que esse é o assunto maior e mais urgente da economia, discussão empurrada com a barriga pelo governo, em particular desde o início de outubro. Passada a distração das eleições, o muro do final do ano parlamentar e do problema do gasto estará a palmos dos nossos narizes. Qual o risco de quebrarmos a cara?

Flávia Oliveira - Eleger e proteger

- O Globo

Novos eleitos incomodam quem está nos lugares de poder

As mesmas urnas que empurraram para o Centrão a representação política brasileira legaram um traço de diversidade a um ambiente legislativo, ainda, predominantemente masculino, branco, heterossexual. Nas horas seguintes ao domingo cívico, de abstenção recorde, organizações da sociedade civil contabilizavam o saldo da profusão de candidaturas identitárias, como é classificada a luta por direitos de quem não faz parte da minoria que, desde sempre, manda. Brasil afora, chegarão às Câmaras Municipais em 2021 mulheres negras, pessoas LGBTIs, indígenas e quilombolas. Num país que é território fértil de extremismo e violência política, tão importante quanto festejar a ascensão desses quadros é zelar pela segurança física e pelo exercício pleno das funções para as quais foram escolhidos.

Estudo da Terra de Direitos e Justiça Global mostrou que, a cada 13 dias, há pelo menos um caso de ataque à vida de políticos eleitos, candidatos ou pré-candidatos no Brasil; em dois terços dos casos, não houve identificação de criminosos. As organizações mapearam 327 casos de violência política entre janeiro de 2016 e setembro deste ano. Foram 125 assassinatos e atentados (18 no Estado do Rio), 85 ameaças, 33 agressões, 59 ofensas, 21 invasões. Nas situações de ofensa, mulheres foram 76% das vítimas. Cientista político e coordenador-adjunto do CESeC, Pablo Nunes monitorou 84 casos de políticos assassinados somente este ano. “É muito impressionante como a violência é ferramenta política no Brasil. E está aumentando. Certamente, os grupos de minorias que, em alguns casos, estão sendo representados pela primeira vez nos municípios incomodam os que já estão nos lugares de poder. É uma preocupação importante de ter. Há que construir iniciativas para coibir a violência e modos de responsabilizar os autores. A impunidade é muito ruim”, resume.

Bernardo Mello Franco - Duelo em família no Recife

- O Globo

Para quem gosta de acompanhar uma disputa em família, a eleição do Recife é diversão garantida. Os primos João Campos e Marília Arraes travam uma batalha renhida pela prefeitura. Eles duelam pelo espólio político de Miguel Arraes, governador de Pernambuco por três mandatos.

O filho de Eduardo Campos é candidato pelo PSB. Ele encarna o papel do príncipe herdeiro. Sua coligação reúne uma dúzia de partidos e conta com as máquinas do estado e da prefeitura.

Marília, a ovelha desgarrada, rompeu com o pai do rival em 2014. Acusava Eduardo de controlar a legenda com “mão de ferro” e de fazer tudo pelo poder. Ele se aliou a adversários históricos do avô e chegou a governar praticamente sem oposição.

Depois do acidente que matou o presidenciável, a dinastia acelerou a preparação do sucessor. Aos 22 anos, João virou chefe de gabinete do governador Paulo Câmara. Aos 24, tornou-se o deputado mais votado do estado. Aos 26, tenta se eleger prefeito.

Nelson Motta - Depois da chuva

- O Globo

As pessoas estão exaustas de tanto antagonismo e intolerância

Posso estar errado, pode ser só um wishfull thinking, um otimismo vocacional, mas tenho a impressão de que muitas coisas mudaram no Brasil e nos Estados Unidos. Ou melhor, começaram a mudar. A maioria dos americanos se cansou da grosseria, do autoritarismo e do egocentrismo patológico de Trump, embora mais de 70 milhões ainda acreditem nele. Já é um adianto, pequeno mas animador. No Brasil, os candidatos apoiados por Bolsonaro fracassaram, o que parecia apoio era o beijo da morte. Não há fake news capazes de reverter o banho de realidade a que o Brasil assistiu ao vivo, com o Centrão, o DEM e o PSDB ganhando as capitais e a esquerda no segundo turno em Belém, Fortaleza, Recife, São Paulo e Porto Alegre. Aleluia, irmãos!

José de Souza Martins* - Militares e a questão ambiental

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O estudo da equipe de Mourão situa-se na linha desenvolvida em governos militares

Um estudo do Conselho da Amazônia sobre a possibilidade do perdimento da propriedade daqueles que fizerem desmatamentos, causando danos ambientais, incomodou o presidente da República. Classificou a proposta como comunista e socialista, coisa que ela não é. Desconhece o assunto. Decretou que a propriedade é sagrada, coisa que nunca foi. A equipe do vice-presidente, o general Hamilton Mourão, está certa e no marco da lei e da tradição.

No período colonial, a posse da terra não era propriedade. Somos herdeiros da Lei de Sesmarias, de Portugal, de 1375. As terras eram cedidas para seu uso produtivo, mantendo delas a Coroa, isto é o Estado, a propriedade eminente. Se o sesmeiro não a tornasse produtiva num prazo curto, a terra caía em comisso, considerada devoluta, isto é, devolvida ao Estado.

O regime de sesmarias foi revogado às vésperas da Independência do Brasil, permanecendo o novo país sem um regime fundiário próprio até setembro de 1850, quando o Parlamento brasileiro aprovou a chamada Lei de Terras. Por ela, os possuidores de terra a qualquer título que fizessem o respectivo Registro Paroquial se tornariam proprietários da terra possuída. É o regime que tem vigência, até hoje, com ajustes e correções.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O custo da pirraça – Opinião | O Estado de S. Paulo

Como sempre, Bolsonaro tentou transferir uma responsabilidade que é majoritariamente de seu governo. E ainda tratou países europeus como receptadores de produtos roubados.

O presidente Jair Bolsonaro usou a mais recente cúpula do Brics para atacar os países europeus que criticam a política ambiental de seu governo. Não eram nem a hora nem o lugar apropriados para isso, mas Bolsonaro jamais se preocupou com esses detalhes protocolares que regem a relação civilizada entre os países, especialmente quando se trata de exercitar sua diplomacia da pirraça. No entanto, é difícil saber que interesses do Brasil foram defendidos por Bolsonaro quando este, em seu dialeto peculiar e claramente de improviso, decidiu denunciar “países que tenham importado madeira de forma ilegal da Amazônia”, ressaltando que “alguns desses países são os mais severos críticos ao meu governo tocante a essa Região Amazônica”.

A manifestação de Bolsonaro, em lugar de aplacar as críticas, prejudica ainda mais o Brasil. Expõe a precariedade da fiscalização e da aplicação da lei sobre a extração de madeira, acentuada durante o atual governo – que trata a preocupação ambiental como entrave ao “progresso”.

Em primeiro lugar, a maior parte da madeira extraída da Amazônia, cerca de 90%, é vendida no próprio mercado brasileiro. Ou seja, o problema é majoritariamente local e demanda uma ação firme das autoridades daqui mesmo, e não de outros países, para combater os madeireiros ilegais. Em segundo lugar, foi o próprio governo de Bolsonaro que afrouxou a fiscalização e as exigências burocráticas sobre o comércio de madeira, o que facilitou sobremaneira a exportação irregular.

Os países importadores de madeira brasileira não têm como saber se o produto que estão comprando com papelada aparentemente em ordem é ilegal. Nenhuma tábua entra em navio sem documentação oficial do governo brasileiro, emitida pelos órgãos fiscais e ambientais competentes.

Música | O Poder da Criação (João Nogueira)

 

Poesia | Charles Baudelaire - A Beatriz

Num solo hostil, crestado e cheio de aspereza,
Enquanto eu me queixava um dia à natureza,
E de meu pensamento ao acaso vagando
Fosse o punhal no coração sem pressa afiando,
Em pleno dia eu vi, sobre a minha cabeça,
Prenúncio de borrasca, uma nuvem espessa,
Trazendo um bando de demônios maliciosos,
Semelhantes a anões perversos e curiosos.
Entreolham-se a mirar-me, aguda e friamente,
E, como o povo que na rua olha um demente,
Eu ps via rir, entre si cochichando,
Piscando os olhos e também sinais trocando:
“Contemplemos em paz essa caricatura
Que do fantasma de Hamlet imita a postura,
Os cabelos ao vento e o ar sempre hesitante.
Não causa pena ver agora esse farsante,
Esse idiota, esse histrião ocioso, esse indigente,
Que seu papel de artista ensaia à nossa frente,
Querer interessar, cantando as suas dores,
Os grilos, os falcões, os córregos e as flores,
E mesmo a nós, que concebemos esses prólogos,
Aos berros recitar na praça os seus monólogos?”
Com meu orgulho sem limite, eu poderia
Domar a nuvem dos anões em gritaria,
Deles desviando a fronte esplêndida e serena,
Caso não visse erguer-se, em meio à corja obscura
– Crime que até a própria luz do sol abala! –
A deusa a cujo olhar outro nenhum se iguala,
Que com eles de minha angústia escarnecia,
E às vezes um afago imundo lhes fazia.