sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Fernando Gabeira - As chamas da negação

- O Estado de S.Paulo

As gargalhadas diante do fogo no Pantanal revelam a pobreza da mentalidade dominante

As chamas ardem na Costa Oeste dos Estados Unidos e em dois importantes biomas nacionais, Amazônia e Pantanal. Debates essenciais nascem desses incêndios. O primeiro deles subiu para o topo da agenda na campanha para a presidência dos EUA: o aquecimento global. Lá, como aqui, há os que aceitam as evidências científicas e os que as negam.

Um segundo debate decorre do próprio princípio de precaução. Se há realmente mudanças climáticas, os incêndios serão mais intensos a cada ano. Logo, é razoável nos preparamos melhor, em vez de sermos anualmente derrotados por eles.

No Pantanal já foram destruídos mais de 22 mil km2 de vegetação, uma área do tamanho de Israel. Serpentes e jacarés carbonizados estão por toda parte, o refúgio das araras azuis está ameaçado, chamas em Porto Jofre, onde se concentra uma centena de onças-pintadas.

O desastre neste ano é muitas vezes maior que o do ano passado, que tive a oportunidade de documentar. Muito possivelmente, a julgar pelas notícias, a maioria dos focos de incêndio foi provocada. Talvez por pessoas que sonham com um Pantanal transformado apenas em pastagens e campos plantados. Ignoram a riqueza que estão destruindo. São os mesmos que sonhavam em transformar a região em grandes canaviais. Não percebem que ao destruir a vegetação arruínam todo o ecossistema, os próprios peixes que se alimentam de pequenos frutos tendem a desaparecer.

Essa incompreensão básica está também no Palácio do Planalto. Bolsonaro sonha com campos de soja, muito gado, o que na cabeça dele significa aumento da produção. Deve ser por isso que todos riram no palácio quando uma jovem blogueira perguntou pelo incêndio no Pantanal.

Bolsonaro nega o aquecimento global. E pratica sua negação. As verbas para a prevenção de incêndios caíram sistematicamente de 2018 para cá. As destinadas a brigadas, que eram de R$ 23 milhões, foram reduzidas a R$ 9, 9 milhões.

Ele caminha decisivamente na contramão das tendências climáticas. Acha que seu voluntarismo pode afrontá-las com a mesma naturalidade com que muda as regras de trânsito. Em ambos os casos colheremos mortes e destruição.

Cessado o fogo, será difícil articular um projeto de replantio. Os bichos e a mata atrapalham a produção. A ajuda internacional será vista como ameaça à soberania nacional.

Apesar do negacionismo de Trump, o horizonte no Brasil é mais sombrio. Bolsonaro representa um tipo de pensamento que existe também em parte dos fazendeiros e amplamente nas Forças Armadas. Esse tipo de pensamento relaciona destruição ambiental com progresso. O próprio ministro Paulo Guedes disse que os americanos tinham destruído suas florestas e acabado com índios.

É o tipo de argumento clássico do pensamento dominante no governo brasileiro, hoje uma estranha amálgama de generais do Exército e pastores evangélicos. Não há outro caminho senão tentar convencê-los, antes que consigam destruir o País na suposição de que fortalecem a soberania terrena e nos aproximam do reino dos céus.

A produtividade de agrofloresta é um exemplo na Amazônia. Os lucros da exploração sustentável de açaí e castanha são outro. O potencial turístico do Pantanal, a própria capacidade do bioma de atrair investimentos, tudo isso tem de ser repetido à exaustão.

As gargalhadas diante das chamas que devoram um bioma como o Pantanal revelam apenas a distância entre a pobreza da mentalidade dominante e a riqueza de nossos recursos naturais. A utopia de um mundo plantado de soja, subsolo revolvido em busca de minérios, gado pastando na relva – tudo guardado por um exército vigilante, que pinta de branco as poucas árvores que restam, é, na verdade, um pesadelo. Seríamos uma nação que construiu com tenacidade um imenso deserto, teríamos transformado o mundo no espelho do nosso universo mental.

Quem acompanha o desastre do Pantanal desejaria que Bolsonaro tivesse uma ideia mínima do que está acontecendo. Com um pouco de humildade, ele se arrependeria de chamar as ONGs de um câncer que gostaria de extirpar. São as ONGs que se põem em campo, salvando grande parte dos animais feridos, sem nenhuma estrutura ou base financeira além da cooperação voluntária.

Quando cobri um desastre na Galícia constatei que o próprio governo pôs à disposição um pequeno hospital para as aves marinhas atingidas. Comparadas com a fauna do Pantanal, as aves marinhas da Galícia são só um pequeno grupo.

Aqui, no Brasil, o trabalho é feito pela sociedade. Não importam os insultos vindos do mundo oficial, a esperança de reduzir o impacto destrutivo dessa passagem do fundamentalismo pelo poder ainda se baseia em solidariedade e trabalho voluntário. E tudo isso nos alcança num momento de pandemia, em que a capacidade de reação é limitada.

Ao intenso ataque do vírus soma-se a fumaça que atinge as grandes cidades da região. Restou-nos apenas a negação da dupla negação do governo: coronavírus e aquecimento global. Em ambos os casos, resistimos. Mas é impossível deixar de sonhar com um país em que governo e sociedade enfrentem juntos os desastres naturais e sanitários. A vida seria menos difícil.

Merval Pereira - "Autofagia" no STF

 

- O Globo

Eliane Cantanhêde - O preço da reeleição

- O Estado de S.Paulo

Para Renda Brasil e Pró-Brasil, tem de atingir aposentados, Educação e Agricultura?

É curioso como o “novo” Renda Brasil repete a novela da “nova” CPMF. O presidente Jair Bolsonaro jura que os dois estão enterrados e não se fala mais nisso, mas, mais dia, menos dia, o ministro Paulo Guedes desenterra a CPMF e o relator do Orçamento no Congresso, senador Marcio Bittar, ressuscita o Renda Brasil, tenham lá que nome tenham as duas “novidades”. E fica tudo no ar. Ou seja: Bolsonaro confunde de propósito, para testar a opinião pública e jogar a responsabilidade no colo alheio.

Essas idas e vindas do presidente ilustram algo que está escancarado, à vista de todos: Bolsonaro parou de fingir que apoia seu Posto Ipiranga incondicionalmente, que encampou o liberalismo e que está governando o País para valer. Caiu a máscara e ele assume o seu verdadeiro eu e a sua candidatura (muito) antecipada à reeleição.

Há, assim, um embate sem solução entre política e economia, eleição e governança, populismo e pragmatismo, gastança e contas públicas, responsabilidade e inconsequência. O resultado é complexo, mas fácil de explicar pela aritmética: as contas precisam fechar. Para gerar despesas, é preciso providenciar receitas. Nunca é simples, mas fica muito mais complicado com pandemia e recessão.

É aí que a porca torce o rabo, porque Bolsonaro exige que o Ministério da Economia garanta despesas que ele considera fundamentais para sua popularidade, hoje, e sua reeleição, amanhã. E Guedes e a equipe esbarram em limitações práticas, técnicas e até políticas para arranjar receitas e sustentar a ambição política do chefe: dinheiro curto, teto de gastos, resistência de ministros e da sociedade.

As opções são questionáveis sob vários ângulos e duplamente prejudiciais às próprias pretensões de Bolsonaro. O cobertor é curto: para ganhar votos com o Renda Brasil, tem de perder com congelamento de pensões e aposentadorias? Para ganhar votos com o Pró-Brasil, tem de perder com cortes em áreas estratégicas como Educação, Cidadania e Agricultura? Para manter votos com isenção das igrejas evangélicas, tem de perder dos tantos que são contra?

Renda Brasil e Pró-Brasil são os carros-chefes da campanha de Bolsonaro. Um é dinheiro na veia do eleitor, mas a opinião pública deu um pulo e Bolsonaro ameaçou a equipe econômica de “cartão vermelho” diante da ideia de congelar por dois anos os reajustes da Previdência para financiar o programa. Tira daqui, põe dali, é soma zero para popularidade e voto.

Já o Pró-Brasil é obra, inauguração, viagem, chapéu de vaqueiro e criança no colo, particularmente no Nordeste, tão populoso quanto oposicionista. Mas, quando o Estadão informa que o dinheiro pode sair da Educação e da Agricultura, não é só a opinião pública que se espanta, são os próprios ministros.

O da Educação, Milton Ribeiro, até agora um fantasma que fala em zumbis, explica que ele não tem culpa se os antecessores – Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub, de triste memória – deixaram sobras porque não sabiam o que fazer com o dinheiro. E a da Agricultura, Tereza Cristina, avisou ontem mesmo, no Live Talks A Retomada da Economia, do Estadão, em parceria com a Tendências Consultoria: “Eu sou pequenininha, sou quietinha, mas eu brigo duro”. Bolsonaro sabe disso.

E daí? Chama o Centrão! Se for um sucesso, os louros serão do presidente, como no auxílio emergencial. Se for um desastre, a culpa será do Congresso – e do Supremo, da mídia. Assim, Bolsonaro vai ajustando sua estratégia e as contas públicas para conquistar o voto dos pobres e manter o dos ricos. Com uma carta na manga após jogar fora o liberalismo e o combate à corrupção: Lula. Se algo de 2018 sobrevive para 2022, é: “ou eu ou o PT, o que vocês preferem?”

Bernardo Mello Franco - Dia ruim para a política de toga

 - O Globo

Luiz Carlos Azedo - Supremo depoimento

 

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Tudo o que Bolsonaro não quer é ser ouvido presencialmente, isso permitiria aos delegados buscar contradições entre suas declarações e os fatos já apurados. O depoimento foi suspenso

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello suspendeu, ontem, a tramitação do inquérito que apura se o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal. O decano da Corte, ministro Celso de Mello, licenciado por motivos de saúde, havia decidido que Bolsonaro faria um depoimento presencial, sendo inquirido pelos delegados que investigam o caso, mas a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu da decisão, solicitando que o depoimento fosse por escrito, como aconteceu com o ex-presidente Michel Temer. O ministro Marco Aurélio decidiu que caberá ao plenário do STF apreciar a questão.

A decisão mexe com o espírito de corpo da Corte, porque a reversão da decisão de Celso de Mello empana a saída do decano do Supremo. Na sua decisão, Marco Aurélio, que será o novo decano, antecipou seu voto como relator, que faculta ao presidente da República enviar um depoimento por escrito ou, se preferir, escolher o melhor dia para ser ouvido. Tudo o que Bolsonaro não quer é ser ouvido, porque isso permitiria aos delegados buscar contradições entre suas declarações e os fatos já apurados. Caberá ao presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, pôr na pauta do plenário a apreciação do caso. Até lá, o inquérito fica paralisado.

O maior constrangimento do presidente Bolsonaro, acusado pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro de tentar interferir na atuação da Polícia Federal, é o caso Fabrício Queiroz, o ex-assessor parlamentar de seu filho Flávio Bolsonaro (Republicano-RJ), senador eleito pelo Rio de Janeiro, investigado no escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O empresário Paulo Marinho, que participou da coordenação da campanha de Bolsonaro e é o primeiro suplente de Flávio, denunciou à Polícia Federal o vazamento de informações sobre o caso Queiroz e seu envolvimento com as milícias fluminenses, às vésperas da sucessão presidencial.

Celso de Mello, em licença médica até o dia 26 de setembro, havia negado pedido para que as respostas ao depoimento fossem dadas por escrito. Bolsonaro teria que comparecer à Polícia Federal como investigado, porém, com direito a permanecer em silêncio. O decano também decidiu que os advogados de Moro poderiam acompanhar o depoimento. Entendeu que os chefes dos Três Poderes, constitucionalmente, só podem depor por escrito como testemunhas ou vítimas, não quando são investigados ou réus por atos cometidos no exército do mandato.

Essa decisão esticou a corda das tensões entre o Executivo e o Supremo. Entretanto, a liminar de Marco Aurélio desanuviou a situação, ao invocar o precedente do ex-presidente Michel Temer, em decisões dos ministros Edson Fachin, que é o relator da Lava-Jato, e Luís Roberto Barros, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seriam três votos favoráveis ao pleito de Bolsonaro, supõe-se. O ex-presidente da Corte, Dias Toffoli, sempre foi um conciliador, e o ministro Luiz Fux, que acabou de assumir, devem acompanhar Marco Aurélio. Outro que pode atuar para distensionar as relações do Supremo com o presidente da República é o ministro Gilmar Mendes, que já deu liminares favoráveis ao senador Flávio Bolsonaro no caso Fabrício Queiroz. O único constrangimento é a revisão da liminar do decano Celso de Mello, na sua despedida do Supremo.

Posse radioativa
Tudo indica que a cerimônia de posse do ministro Luiz Fux na Presidência do Supremo, de caráter presencial, mesmo com todas as cautelas, foi um fator disseminador da covid-19 na cúpula dos Poderes, embora os organizadores do evento tenham observado o protocolo de segurança sanitária estabelecido pelo Departamento de Saúde do STF. Além do ministro Fux, que contraiu a doença, o procurador-geral da República, Augusto Aras, anunciou que está com o vírus. Antes, já haviam comunicado que se contaminaram a presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria Cristina Peduzzi, e os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luís Felipe Salomão e Antônio Saldanha Palheiro, além do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Todos estavam na posse de Fux, que ofereceu uma espécie de coquetel aos convidados.

Em nota divulgada ontem, o STF recomendou a todos os convidados do evento que fizessem o teste de coronavírus. O mesmo procedimento foi adotado em relação aos servidores do tribunal. O Brasil registrou, ontem, 134 mil mortes e 4, 4 milhões de casos. A média móvel nas últimas duas semanas, porém, continua em queda, com 789 mortes, uma redução de 8%. No mundo, a aceleração do número de casos na Europa, que registrou novos 54 mil contaminados nas últimas 24 horas, provocou um alerta da Organização Mundial de Saúde (OMS), que teme uma segunda onda à medida que, nas cidades, volta-se à vida normal.

Bruno Boghossian – Animador de tragédias

- Folha de S. Paulo

Presidente joga confete nas queimadas do Pantanal e distorce história da pandemia

Jair Bolsonaro anda fazendo bico como animador de tragédias. O governo fez pouco caso da devastação das florestas na atual temporada de seca e viu o Pantanal bater recordes de queimadas nos últimos meses. Ainda assim, o presidente tentou jogar confete no desastre.

“O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente”, celebrou, durante um evento nesta quinta (17). “O Brasil está de parabéns pela maneira como preserva o seu meio ambiente.”

Bolsonaro desmontou a gestão ambiental, perseguiu fiscais, protegeu madeireiros e quis maquiar números do desmatamento. Recentemente, ele atribuiu as queimadas à população indígena e à geração espontânea. Só não demonstrou grande interesse em combater o fogo.

O presidente tomou gosto por comemorar os resultados de sua própria omissão. Para isso, vale distorcer informações, esconder problemas e até reescrever os fatos a seu favor.

Nas últimas semanas, Bolsonaro lançou uma campanha nas redes e em eventos oficiais para tentar convencer a população de que o governo fez tudo certo na pandemia que matou mais de 130 mil pessoas no país.

Depois de ter deixado o Ministério da Saúde sem titular por três meses, o presidente usou a posse de Eduardo Pazuello no cargo, na quarta (16), para aplaudir a si mesmo. Ainda que tenha previsto menos de 800 mortos na crise, Bolsonaro falava como se tivesse dado todas as respostas.

A cloroquina foi a estrela do discurso. O presidente voltou a fazer propaganda do remédio e disse que o governo se baseou na agência reguladora dos EUA para recomendá-lo. Bolsonaro só esqueceu que a própria FDA lançou em julho um alerta sobre os riscos do medicamento.

Ele também recordou, em tom laudatório, o pronunciamento de TV em que comparava a Covid-19 a um “resfriadinho”, em março. O presidente disse ter avisado que era preciso combater a doença e o desemprego. Naquele mesmo dia, porém, ele afirmou que o vírus passaria “em breve”. Só faltou dar parabéns a si mesmo por não ter feito quase nada.

Reinaldo Azevedo - TRF-2 diz que democracia ainda respira

- Folha de S. Paulo

Órgão Especial do tribunal deu um pequeno passo em favor do resgate do decoro do Poder Judiciário

Num país em chamas, em que o devido processo legal está sendo esturricado junto com as onças e os jacarés —enquanto doutores do punitivismo pisam nos astros desastrados—, o Órgão Especial do TRF-2 deu um pequeno passo em favor do resgate do decoro do Poder Judiciário. Decoro! Gosto dessa palavra nas lentes do direito ou em Paulo, o apóstolo. “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém.”

Por 12 votos a 1, com um impedimento, os juízes federais aplicaram a pena de censura ao juiz Marcelo Bretas, triunfando, por quase unanimidade, o voto do relator, Ivan Athié, que viu “superexposição e autopromoção” na conduta do chamado “juiz da Lava Jato do Rio” ao participar de eventos públicos, no dia 15 de fevereiro, em companhia do presidente da República e de outros políticos.

Em seu voto, Athié citou trechos de um texto que publiquei em meu blog, apontando a desconformidade da atuação de Bretas com o que dispõe resolução do Conselho Nacional de Justiça, que recomenda ao juiz “evitar expressar opiniões ou compartilhar informações que possam prejudicar o conceito da sociedade em relação à independência, à imparcialidade, à integridade e à idoneidade do magistrado ou que possam afetar a confiança do público no Poder Judiciário”.

O mesmo texto alerta que o magistrado deve “evitar manifestações que busquem autopromoção ou superexposição”. Os leitores desta coluna certamente conhecem ao menos parte das minhas reservas à atuação judicial e extrajudicial de Marcelo Bretas. De seu particularíssimo entendimento do artigo 312 do Código de Processo Penal, por exemplo, que regula a prisão preventiva, à exibição narcísica de sua, digamos, musculatura jurídica, não me parece que ele seja um bom discípulo de Paulo.

Seja no entendimento da Constituição, seja na interpretação que faz do Evangelho, entendo que o juiz é mais um a ignorar a letra explícita das leis, dos códigos e mesmo das escrituras. E o faz em favor do solipsismo estridente, de modo que seu subjetivismo e seu personalismo, embora alinhados com a metafísica influente destes tempos, atuam contra as garantias do devido processo legal e do Estado democrático e de Direito.

Não destaco por vaidade o fato de o juiz federal Athié ter citado um texto meu num voto que encontrou uma única dissensão, sendo referendado por 11 outros. Eu o faço em homenagem a uma postura —hoje minoritária no país e na imprensa—, que reconhece não haver saída para o Brasil fora do ordenamento legal e da prevalência das instituições.

E assim é porque vivemos num regime democrático, ainda que literalmente sufocado por fumaças, imposturas e omissões. Numa ditadura, numa tirania, a subversão é um dever moral e um imperativo ético. E me orgulho muito de, dentro das limitações do que me permitia a juventude, ter atuado para sabotar o estado ditatorial. Na democracia, um conservador preserva instituições. Se em desconformidade com elas, força os limites da moldura em favor de mudanças.

Considero inaceitável, aí sim, que quadros que integram o aparato da ordem —devendo, pois, atuar em defesa da sua permanência, assegurando, por óbvio, a eficácia dos mecanismos que lhe permitem a mudança— atuem como subversivos de toga, de sorte que as garantias que a própria Constituição assegura à magistratura ou ao Ministério Público são postas, então, a serviço da corrosão da institucionalidade.

Infelizmente, essa visão intervencionista, subversiva e corrosiva da Justiça já chegou às cortes superiores. Para quem sabe ler as linhas e as entrelinhas, o discurso de posse de Luiz Fux como presidente do STF acena para a condescendência com os métodos ilegais e heterodoxos da Lava Jato. A substituição da política pela polícia —de sorte que se pode falar hoje, em certos casos, de uma polícia política— abriu o caminho para o triunfo dos “hooligans” contra a ordem democrática.

Estão por aí, a crestar, real ou simbolicamente, tudo o que encontram pela frente: Constituição, bicho ou gente. Em meio à fumaça e à cultura da morte, o TRF-2 emprestou um respirador à democracia.

Ignácio de Loyola Brandão* - Ardem florestas, corações e mentes

- O Estado de S.Paulo

Quero abrir uma seita, igreja, quero dízimos, não quero pagar nada, imposto, boleto

Enquanto Roma ardia em pavoroso incêndio, Nero tocava lira ou outro instrumento. Como saber? Agora, enquanto o Pantanal arde e a Amazônia segue o mesmo caminho, Bolsonaro toca o quê? Nada. Não toca nem o governo. Cuidado, não mostrem ignorância confundindo Amazônia com Mata Atlântica nem com o Parque do Ibirapuera, Zona da Mata, Cerrado Brasiliense ou Floresta da Tijuca como faz o inescrutável Ricardo Boiada que Passa. Passa um, passa dois, passa três, passa quatro, passa cinco, passa seis. 

E passando, passando pode até passar a Damares para dentro do Supremo Tribunal Federal, este que não chove nem molha em relação ao foro privilegiado de Flávio Rachadinha, filho amado. Imaginemos Damares junto com o Fux e o Toffoli Bolsonaro Nunca Praticou Qualquer Ato Antidemocrático. Periga de vir também o Mendonça, habilmente desenhado por Mario Sergio Conti como protótipo de nazista gestapo cristão.

Ardem as matas, ardem as mentes, arde meu coração nesta primavera em que um dia é quente, o outro gelado, semelhante a Bolsonaro e suas decisões, um dia diz, no outro desdiz, diz que não disse, rejeita o dito, o que foi dito não é confirmado. O homem acusa o palerma do Guedes, que suporta em nome do quê? Qual a ambição deste que leu Keynes no original?

Disse. Não disse. Claro que disse. Quando criança lá em Araraquara, quando você dizia e não sustentava era definido por uma palavra que hoje faz parte do politicamente incorreto, mas vou citar: mariquinha. Roma ardia, Nero tocava lira, romanos morriam sob o fogo, mas também eram mortos na arena, comidos por leões, hienas ou crucificados assim como agora somos cancelados pelas redes. Bolsonaro solta rajadas de tiros, enquanto aposentados morrem à medida que seus vencimentos vão minguando, idosos fenecem porque não fazem falta nenhuma, os carentes, os indigentes, os deficientes, os índios, os negros morrem porque, como dizia Josef Mengele, não contribuem com nada para a pureza da raça.

Por que não impichamos Bolsonaro, colocando em seu lugar o embaixador norte-americano? Os mais velhos se lembram da frase que correu o País na década de 60: “Eliminemos os intermediários, Lincoln Gordon para presidente do Brasil”. Passadas décadas, não elegemos Gordon, mas elegemos um comandatário, vassalo, flâmulo, varlete, armígero, colomim, mirmidão, I Love You Trump. De onde vieram as ideologias dele? Do astrólogo Olavo de Carvalho, de Steve Bannon agora na prisão como corrupto, de Ryan Hartwig com seu Projeto Veritas que andou aqui pelo Brasil.

Olhando o cenário, o que vemos? Trump pede uma base militar e o Brasil dá. Em troca de quê? De uma banana. Trump pede que os EUA nos mandem etanol sem tarifas, o Brasil concorda, esperando que o indicado para o BID seja um brasileiro. Trump nem ouviu, c... e andou, como se diz. Nomeou um dele. Trump determinou que a cloroquina era o medicamento, compramos, e ainda produzimos bilhões de comprimidos, que formariam uma montanha do tamanho do Pão de Açúcar. Ou do Dedo de Deus, já que Deus está acima desta lesa-pátria. Única reação que o Brasil teve foi mandar Weintraub para desmoralizar o Banco Mundial. Por que não elegemos Melania Trump para presidente do Brasil? Seria nossa segunda mulher presidente. Ligação direta. Finais de semana no condomínio da Barra cercado de seguranças milicianos. Ou nos campos de golfe de Trump. Será que teríamos de fazer depósitos em dólares na conta de Melania? Inexplicados 89 mil dólares que o Guedes pagaria? 

Sabem por que não temos ainda embaixador nomeado nos Estados Unidos? Por que não precisamos. As ordens vêm por um telefone direto ou por e-mails redigidos pelos 01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08, 09, 0120, 0 mil, 0 um milhão, 0 milhões e milhões que puseram esse homem no poder.

Ardeu Roma, arde a Califórnia, ardem os Estados Unidos, arde minha cabeça, queima meu coração, arde a Hungria, arde Belarus, os nossos mortos decresceram, mas voltaram a subir, todo mundo aglomerado nas ruas, bares, praias, baladeiros ao sol, felizes, roleta-cloroquina, se o outro vai morrer que me importa? 2022 vai chegar, a grande questão é saber quem estará vivo para votar. 

Estou dando entrada na Associação Comercial ao meu pedido de abertura de uma seita, uma igreja, quero dízimos, muitos dízimos, não quero pagar nada, imposto, taxa, boleto. Passa boi, passa boiada. A democracia começa a arder, ardem nossos corações e mentes. Não nos calemos.

*É jornalista e escritor, autor de ‘Zero’ e ‘Não verás país nenhum’

Míriam Leitão - Fogo no Pantanal e as nossas aflições

- O Globo

O Pantanal é uma lindeza. Quem vê não quer parar de olhar aquela beleza de alagado, aquela multidão de pássaros. Há pontos do Pantanal que se a gente admirar bem cedinho fica pensando que deve ter sido assim o começo do mundo. São 150 mil km2 no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Até o dia 13, estavam queimados 29 mil km2. Isso é um quinto do bioma. Mas o fogo avança um pouco mais a cada dia. No Parque Estadual Encontro das Águas, 85% da área está queimada e lá moram onças pintadas. O Pantanal é a maior planície alagada do mundo. O Brasil tem tudo imenso quando o assunto é ativo ambiental. É dono da maior parte da maior floresta tropical do planeta. Tem a maioria das águas da maior bacia hidrográfica do mundo. Que tamanha insensatez a nossa.

— A gente está assistindo a uma tragédia anunciada e crescente. No começo do mês, eram 12% do Pantanal afetados e agora aumentou para 19%. A fauna está sendo muito atingida, os animais estão desidratados e sem comida e isso vai acabar afetando todo o ciclo de reprodução de animais listados em situação de extinção. A gente está vendo também um impacto econômico imenso — diz a cientista política Alice Thuault, diretora adjunta do Instituto Centro de Vida (ICV).

Nossas aflições se somam. O que afeta a Amazônia agrava o problema no Pantanal, que precisa do Cerrado. Os biomas se falam.

— O nível dos rios está muito baixo. Isso é cíclico, mas o desmatamento da Amazônia está impactando o equilíbrio do Pantanal. Eu digo que é tragédia anunciada porque todo mundo viu o que estava acontecendo, e a gente não deu conta, como sociedade, de colocar isso na agenda pública, dos tomadores de decisão — diz Alice Thuault.

Os tomadores de decisão no Brasil estão empurrando o país para o abismo ambiental. Este governo desprezou todos os alertas, desmontou o Ibama e o ICMBio, tirou dinheiro dos seus orçamentos, não liberou os recursos que tinha em caixa, estimulou insistentemente o crime ambiental por atos, por palavras, por portarias e instruções, passando sempre a boiada nas leis. Espantou até os países que estavam doando para o Brasil proteger suas riquezas.

— Pelo corte de recursos, a máquina pública não está presente. O dinheiro do Fundo Amazônia está fazendo falta nas ações de preservação. O Mato Grosso tem um Corpo de Bombeiros antigo, mas que está sem orçamento. O Prevfogo, do Ibama, este ano não fez a qualificação de brigadistas, por causa da Covid — diz a diretora do ICV.

Perto do Parque Encontro das Águas fica a Baía do Guató, última terra indígena demarcada. Todas as aldeias dos Guató foram destruídas pelo fogo que não começou lá, mas sim em terras vizinhas:

— Hoje recebi a imagem da água que eles têm para beber, parece barro. Na Baía dos Guató foram protocolados vários pedidos para montar brigadas. Estão todos esquecidos do poder público. Primeiro é preciso apagar o fogo, depois será necessário socorrer as comunidades. Os indígenas e também os quilombolas que perderam toda a sua produção de subsistência.

Uma tragédia que se desdobra em várias. De onde veio o fogo? As investigações mostram que 67% da destruição foi consequência de incêndios que começaram em nove pontos, cinco deles em áreas que têm cadastro ambiental rural de fazendas dedicadas à pecuária.

O Pantanal é muito específico. Quem vê tanta água, na época da cheia, acredita que ela sempre estará lá. Mas o bioma é frágil. As águas estão de visita, precisam do Cerrado preservado, porque no Cerrado, que parece seco, é onde nascem as águas. Se a Amazônia arde, o Pantanal fica mais seco. A fragilidade da vida se vê, por exemplo, na Arara Azul. Grande e linda e vulnerável. Ela tem suas exigências. Precisa de uma árvore, o manduvi (Sterculia apetala) para sobreviver. E faz seus ninhos nas árvores velhas que já têm um oco, onde elas se instalam na reprodução. Por um trabalho de 30 anos do Instituto Arara Azul a população dessas aves começou a aumentar. O que será delas ao fim dessa devastação?

O Pantanal é uma das preciosidades do Brasil. A flora é resiliente, ela pode voltar devagar, e com a ajuda de viveiros para o replantio, pensa a diretora do ICV. Mas a fauna está morrendo. Há organizações que estão saindo para hidratar os animais. A natureza do Brasil está pagando um preço alto demais.

Flávia Oliveira - O pesadelo da fome

- O Globo

Vulnerabilidade social escancarada pela pandemia encontrou combustível nefasto na escalada de preço dos alimentos

A face mais dramática de qualquer crise econômico-social se abateu sobre o Brasil ainda no biênio 2017-2018. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apurou na última Pesquisa de Orçamentos Familiares, fundamento da composição dos índices de inflação, que naquele biênio 10,3 milhões de brasileiros sofreram com privação grave de alimentos. Sem eufemismo, passaram fome. Foi resultado da recessão aguda do período 2014-2016, que desaguou, nos anos seguintes, em aumento do desemprego e da desigualdade, precarização do mercado de trabalho, achatamento da renda e congelamento no valor dos benefícios do Bolsa Família. Assim, o país que ousou sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas voltou ao patamar século XX de pobreza e indigência.

O IBGE investiga desde 2004 a situação alimentar das famílias brasileiras. Naquele ano, 34,9% dos lares enfrentavam algum nível de privação. Há três escalas. Na mais branda, batizada de leve, sobra preocupação com a possibilidade de não poder comprar comida e falta qualidade na alimentação. É quando a dona de casa substitui por macarrão o “arroz nosso de cada dia pela hora da morte”. No nível moderado, já considera alguma restrição a alimentos; no grave, falta comida. Na série oficial, a insegurança alimentar caiu até 2013, quando bateu 22,6%. Dois anos atrás, chegou a 36,7% dos lares, pior nível já registrado — comparável aos índices de pobreza de meados dos anos 1990, segundo cálculos da economista Sonia Rocha no artigo “Pobreza e indigência no Brasil” (IETS, 2006). Significa que 84,9 milhões de brasileiros viviam entre o medo de não conseguir comprar e a realidade de não ter o que comer. Qualquer semelhança com os 67 milhões de beneficiários das cinco primeiras parcelas de R$ 600 do auxílio emergencial não é coincidência.

A miséria faz mais vítimas no Nordeste, que abriga 1,3 milhão dos 3,1 milhões de domicílios com alguma privação alimentar. Há dificuldades, sobretudo, em áreas rurais, lares chefiados por mulheres ou por pessoas autodeclaradas pardas. Metade dos brasileirinhos com menos de 5 anos — 6,5 milhões ao todo — crescia em residências com algum grau de insegurança alimentar. É informação preocupante, quando sabemos que alimentação adequada aumenta a capacidade de aprendizado e melhora o desempenho escolar. Torna-se desesperadora à sombra de uma crise sanitária que deixou crianças e adolescentes sem aulas e sem merenda. Outra pesquisa do IBGE, a Pnad Covid-19, mostrou que, dos 46 milhões de estudantes matriculados em escolas ou universidades, 7,3 milhões não tiveram atividades na terceira semana de agosto. Também no mês passado, o Datafolha apurou que mais da metade (53%) das pessoas que receberam o auxílio emergencial usou o dinheiro para comprar alimentos.

A política de transferência de renda montada às pressas (por sociedade civil, Congresso Nacional e Executivo) em resposta à pandemia devolveu poder de compra às famílias mais pobres, durante a devastação do mercado de trabalho. Na esteira do isolamento social, necessário para conter a transmissão do novo coronavírus, ocupações com e sem carteira assinada foram varridas. Milhões de vagas desapareceram no trabalho doméstico, no comércio, no setor de serviços e na construção, junto com elas refeições servidas em refeitórios e cozinhas dos empregadores. Na metade mais pobre da população, a perda de renda individual do trabalho bateu 27,92%, calculou o economista Marcelo Neri, da FGV Social: “Os pobres foram ao inferno com o desemprego e chegaram ao céu com o auxílio emergencial. A redução do valor (de R$ 600 para R$ 300 nas quatro últimas parcelas) e o fim do programa (em dezembro) tendem a agravar a crise. Se o IBGE fosse a campo em 2021, encontraria um cenário ainda pior em insegurança alimentar”.

A vulnerabilidade social escancarada pela pandemia encontrou combustível nefasto na escalada de preço dos alimentos. Os itens mais presentes na mesa dos brasileiros começaram a subir em março, início do isolamento social, e não pararam mais. Em agosto, o grupo Alimentação e Bebidas registrou a maior variação (0,78%) desde 2012 no IPCA. Nos últimos 12 meses, enquanto a inflação oficial do país subiu 2,44%, o leite ficou 23% mais caro, o arroz 19%, o óleo de soja 18%, o feijão 12%, o frango em pedaços 7%. O preço da cebola disparou 50%, do alho 16%, das frutas 14%, do tomate 12%. As cotações das commodities agrícolas saltaram no mercado internacional e, com a alta do dólar, empurraram preços no atacado e no varejo brasileiros. A conjuntura encontrou o governo despreparado. De 2016 para cá, o país deu as costas à política de formação de estoques reguladores em prol da racionalidade econômico-financeira. A mão invisível do mercado é capaz de garantir preços mínimos a produtores, mas não põe comida na mesa.

Rogério L. Furquim Werneck* - Já não há plano de jogo

- O Estado de S.Paulo / O Globo

A falta de um plano de jogo claro e que faça sentido, num quadro de grave deterioração fiscal, exacerba o clima de alta incerteza do País

Em meio à colossal crise que o País enfrenta, só se pode ver com muita apreensão a forma cada vez mais confusa com que a política econômica vem sendo formulada e conduzida, em Brasília. A verdade é que está difícil de discernir algo que se assemelhe a um plano de jogo.

O que se vislumbra, com muito esforço, são pelo menos três planos distintos. Embora sejam todos eles pouco nítidos, parece mais do que claro que o que o ministro da Economia contempla já não é o que o Planalto tem em mente. Nem tampouco o que acalenta a recém-empoderada base parlamentar que o governo recrutou às pressas no Centrão.

Agastado com parlamentares, Paulo Guedes decidiu deixar a negociação da pauta econômica do governo com o Congresso por conta do ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, e das lideranças das bancadas governistas na Câmara e no Senado. “Acabou meu voluntarismo”, anunciou o ministro da Economia. O que se teme é que, junto com o voluntarismo de Paulo Guedes, tenha também acabado a garantia de que o que for negociado com o Congresso estará alinhado com o que o ministro entender que deva ser acertado.

No Planalto, o capitão e seus generais já não se pautam pelo que lhes recomenda o Posto Ipiranga. Sem ir mais longe, para assegurar “desempate”, o general Luiz Eduardo Ramos passará a integrar a Junta de Execução Orçamentária (JEO), colegiado responsável pelas principais decisões do Orçamento, do qual, antes, só faziam parte os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Casa Civil, general Walter Braga Netto.

A proposta orçamentária enviada ao Congresso é sabidamente uma peça de ficção. Não inclui itens importantes da lista de gastos prioritários do Planalto para 2021, como projetos de investimento do Plano Pró-Brasil, preconizado pela ala desenvolvimentista do governo, e o programa Renda Brasil, que turbinaria o Bolsa Família e substituiria o Auxílio Emergencial com algum sucesso político. Ou alguém acredita, mesmo, que Bolsonaro de fato desistiu do Renda Brasil? O presidente bem sabe que, se, a esta altura, desistir, não terá como evitar que o Congresso tome a iniciativa de criar programa similar, como bem entender.

Há, ainda, outras contas vultosas em aberto. Não se sabe em que medida o enorme aumento de dispêndio ensejado pela pandemia será, de fato, revertido em 2021. Ou qual será o custo fiscal da saraivada de derrubadas de vetos presidenciais engatilhadas no Congresso. Como poderá tudo isso ser acomodado sob o Teto de Gastos? Em que déficit primário o governo terá de incorrer em 2021?

Setembro está ficando para trás e o início da campanha eleitoral nos municípios, dia 27, tornará ainda mais difícil a tramitação no Congresso das medidas que supostamente abririam algum espaço fiscal. Às voltas com mais reformas do que terá condições de aprovar, o governo precisa se concentrar no que lhe é de fato essencial.

Na semana passada, parecia que o governo decidira centrar esforços na PEC do Pacto Federativo, fiando-se nas promessas um tanto róseas do seu relator, no Senado, de aprovação de avanços significativos na agenda de desvinculação de receitas e desindexação de gastos. Só que não. Correndo contra o tempo e acossado como está, o ministro da Economia não teve melhor ideia do que anunciar que o fundamental, agora, é viabilizar a aprovação de seu desajuizado projeto de recriação da CPMF.

A falta de um plano de jogo claro e que faça sentido, num quadro de grave deterioração fiscal, exacerba o clima de alta incerteza em que o País está imerso. Sem redução substancial do risco fiscal será difícil de destravar investimentos que ainda permanecem viáveis, em setores que não padecem de excesso de capacidade, como os de infraestrutura, óleo e gás e agronegócios. E, sem retomada do investimento, a reativação da economia e a recuperação da receita fiscal estarão fadadas a ser muito mais lentas do que o governo espera.

A verdade é que, por enquanto, está difícil vislumbrar redução palpável dos efeitos paralisantes do risco fiscal.

*Economista, doutor pela universidade harvard, é professor titular do departamento de economia da PUC-Rio

Vinicius Torres Freire – A gangorra de pobres e paupérrimos

- Folha de S. Paulo

Lideranças de governo e Congresso voltam a discutir como tirar de uns para dar a outros

O congelamento do valor das aposentadorias, dos benefícios assistenciais e provavelmente do mínimo de gasto federal em saúde e educação ainda está nos cálculos do Orçamento para o ano que vem. É daí que pode sair algum dinheiro para encorpar o Bolsa Família Verde Amarelo.

Congelamento quer dizer que esses valores não serão reajustados nem pela inflação, como manda a Constituição. Caso não exista reajuste de aposentadoria, BPC e do piso de saúde e educação e a inflação (INPC) seja de 2,4%, como prevê o Ministério da Economia, o governo deixaria de gastar cerca de R$ 20 bilhões em 2020. É o número que Paulo Guedes tem apresentado ao Congresso.

Com esse dinheiro extra, seria possível pagar cerca de R$ 226 por mês a 20 milhões de famílias. Antes da epidemia, o Bolsa Família pagava R$ 190 mensais a pouco mais de 14 milhões de famílias. No fim das contas, o valor total dos benefícios anuais seria um pouco maior do que se paga atualmente em um mês de auxílio emergencial.

Vai acontecer? Um ministro com sala no Planalto diz que isso é o que está sendo combinado com o relator do Orçamento e da emenda constitucional do “pacto federativo”, senador Márcio Bittar (MDB-AC), mesma informação que vem de líderes formais e informais do governo no Congresso.

No entanto, a crise da semana foi o “cartão vermelho” de Bolsonaro para ideias de “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”. Dessa vez, tratava do congelamento do valor do Benefício de Prestação Continuada (o BPC), pago a 4,9 milhões de idosos e deficientes muito pobres, e das aposentadorias e outros benefícios do INSS, pagos a 30,9 milhões de pessoas (das quais 19,2 milhões ganham um salário mínimo ou um pouco menos).

Nesta quinta-feira (17), em uma live de uma instituição financeira, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), disse o seguinte: “Se não houver desindexação, não haverá recursos para o Renda Brasil [ou equivalente]”. “Sem uma coisa não tem a outra”, afirmou na live, explicação que deu também para o método da redução de impostos sobre a folha de salários das empresas (que não ocorrerá sem a compensação da receita criada por um imposto sobre transações eletrônicas). Barros enfatizou que “nenhum setor” vai perder recursos ou renda —congelamento é isso mesmo.

A este jornalista Barros diz que não sabe o que será o projeto de Bittar para o equivalente do Renda Brasil ou do Bolsa Família encorpado. Afirma que vai conhecer o relatório apenas no começo da semana que vem, talvez na segunda-feira (21).

O Congresso ou o governo vão bulir com cerca de 35 milhões de pessoas para beneficiar talvez umas 6 milhões? De resto, além do problema político e da provável insuficiência social desse Bolsa Família encorpado, há um provável problema econômico, ao menos de demanda (consumo).

Em tese, o governo vai cortar gastos no valor de mais de meio trilhão de reais de 2020 para 2021, o equivalente à redução das despesas extraordinárias do “Orçamento de guerra” deste ano de calamidade.

Nesse pacote, corta também o auxílio emergencial inteiro, gasto que pode chegar a R$ 250 bilhões. Não vai ser tudo isso. Mas o Bolsa Família encorpado teria apenas mais R$ 20 bilhões, que, enfim, não seriam “dinheiro novo”, mas recurso drenado de aposentadorias e BPC (cerca de R$ 16,6 bilhões), e o restante, de saúde e educação.

As conversas sobre a mágica orçamentária continuarão pelo final de semana. No começo da que vem, algum pobre ou paupérrimo terá perdido dinheiro ou deixado de ganhá-lo.

Maria Cristina Fernandes - O discurso de Guedes aos intocáveis do Executivo

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Ao dizer que os salários da alta administração são baixos, o ministro da Economia dá discurso a categorias aquinhoadas que aprofundam a desigualdade no serviço público

 “Os salários da alta administração são baixos. Vejo aqui o ministro Bruno Dantas, que em qualquer banco pode ganhar US$ 4 milhões por ano. Vai ser difícil convencê-lo a ficar no TCU [Tribunal de Contas da União]. Ele vai receber muitas propostas. Já levaram o [Nelson] Jobim [ex-ministro do STF, hoje diretor do BTG Pactual]. Vão levar todo mundo.... Estou vendo aqui Ana Carla Abrão, que tentei manter mas foi abduzida pelo Santander. Tá ganhando cinco vezes mais do que ganharia aqui, certo?”.

Errado. Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman, corrigiu educadamente o ministro da Economia. Paulo Guedes entrou e saiu tão de supetão numa “live” promovida na semana passada pelo Instituto de Direito Público (IDP), do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que confundiu Ana Carla com Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro e hoje economista-chefe do Santander.

O ministro da Economia, que não ouviu a preleção de nenhum dos outros participantes da “live”, nem ficou para o debate depois que acabou de falar, chegou mesmo a dizer que o funcionalismo tinha uma distribuição salarial “quase socialista”. Nos últimos meses, o ministro perdeu vários colaboradores, como o ex-secretário do Tesouro Mansueto de Almeida, hoje economista-chefe do BTG, e o ex-diretor da Secretaria Especial do Ministério da Economia Caio Megale, hoje economista-chefe da XP. A mágoa parece ter enviesado sua visão sobre o tema.

Mal Guedes desapareceu da tela, Ana Carla, uma das economistas de mais longeva militância pela reforma administrativa no país, tomou a palavra e analisou os males da desigualdade no serviço público que o ministro demostrara ali firme disposição em aumentar.

Ana Carla citou pesquisa do economista Ricardo Paes de Barros que, baseado em dados de salários públicos e privados entre 2001 e 2015, concluiu que o coeficiente de Gini (índice de concentração de renda) do setor privado havia caído 0,44 para 0,37. No mesmo período, o Gini do setor público permanecera quase estagnado, passando de 0,48 para 0,46.

O descasamento entre a desigualdade do setor privado e a do setor público aconteceu, principalmente, ao longo dos governos petistas, quando houve a recomposição salarial de carreiras, inclusive na elite do funcionalismo, como a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Receita Federal. Esse divórcio, que começou na administração Lula, foi preservado na gestão Temer e encontrou porto mais do que seguro sob Jair Bolsonaro.

O governo que acaba de enviar uma proposta de reforma administrativa com a qual pretende cortar R$ 300 bilhões da máquina pública em dez anos é o mesmo que mandou para o Congresso a regulamentação do bônus de produtividade da Receita e resistiu a limitar o da AGU e da PGFN ao teto constitucional.

Aprovado pelo Congresso no limbo entre os ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer, o bônus da Receita foi abraçado pelo ministro Paulo Guedes a despeito de contestações por todos os lados. O bônus já foi contestado pelo Tribunal de Contas da União tanto pela inexistência de previsão orçamentária quanto pela extensão a aposentados, condição em que, por óbvio, o funcionário deixa de ser produtivo para a instituição.

O acórdão do TCU não impediu o governo de enviar para o Congresso uma medida provisória (899) em que embutiu a regulamentação do bônus. A MP foi aprovada pela Câmara e, no Senado, ficou sem o jabuti sob a justificativa de que o bônus poderia levar a um acréscimo de até 80% nos vencimentos de mais de 15 mil funcionários. Salários de R$ 30 mil poderiam vir a ser acrescidos de mais R$ 21 mil, o que estoura o teto constitucional de R$ 39 mil

Enquanto não é regulamentado, os funcionários da Receita continuam a receber “apenas” R$ 3 mil de acréscimo. Desde que começou a ser pago, em 2018, o bônus tem levado a questionamentos sobre a procedência das autuações da Receita, uma vez que, quanto maior o valor cobrado, maior seria a vantagem auferida pelo auditor.

Com o discurso da meritocracia com o qual defende a reforma administrativa, Paulo Guedes pretende aliar o bônus por eficiência da Receita à sua visão de Estado. Sugere convergência ao que é, sobretudo, uma concessão a servidores cujas greves, como a de 2018, paralisou a arrecadação e implantou o caos nas aduanas.

O mesmo se aplica aos honorários de sucumbência que, previstos desde a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 2016, acrescentaram, por mês, a mais de 12 mil advogados da União e procuradores da Fazenda, uma média de R$ 6 mil a salários que chegam a R$ 27 mil.

Os honorários reproduzem, para o serviço público, a lógica inerente à advocacia privada, que cobra percentuais sobre causas ganhas. O benefício é de mão única. Não se aplica, com supressão de vencimentos, quando a União perde a causa e é obrigada a pagar à parte que a acionou na Justiça.

No ano passado, uma emenda do Novo à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) fez com que os honorários advocatícios se somassem aos vencimentos dos funcionários para efeito de aplicação do teto constitucional. O presidente Jair Bolsonaro resistiu, mas o Congresso driblou a indisposição do governo e o dispositivo limitante passou a valer a partir de janeiro. Como a LDO só tem validade de um ano, porém, a limitação acaba em dezembro.

Os penduricalhos dessas categorias foram instituídos numa época de baixo desemprego e forte valorização das carreiras públicas nos governos petistas, quando muitos servidores deixaram seus cargos atraídos por uma vaga no Ministério Público ou no Judiciário. A paralisação dos concursos públicos, o congelamento de salários e, principalmente, a crise no mercado de trabalho fez sumir as circunstâncias que, um dia, serviram de justicativa para os penduricalhos.

A proposta do governo os contorna, bem como deixa de lado os vencimentos de carreiras sobre as quais o Executivo pode legislar mas não o faz, como o Ministério Público - graças, em grande parte, ao crédito que o Procurador-Geral da República tem hoje no Palácio do Planalto - e a magistratura.

O argumento de que o Executivo não pode se debruçar sobre essas carreiras não se sustenta. O governo não teve o mesmo “pudor”, diz o consultor legislativo e professor da FGV, Luiz Alberto dos Santos, quando enviou a reforma da Previdência que alterou direitos previdenciários de servidores e magistrados, embora tenha preservado - e ampliado - as prerrogativas dos militares.

Foi por pressão de procuradores e magistrados que o Congresso congelou a proposta que tramita desde 2016 e regulamenta a submissão de todos os servidores públicos do país, de todos os Poderes e entes da Federação, ao teto constitucional dos vencimentos dos ministros do Supremo.

Já há, no entanto, gestões, no entorno do presidente, para que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, coloque em pauta o projeto que acaba com os penduricalhos gerais da nação. A iniciativa tende a indispor o governo e o Congresso com corporações poderosas. No Judiciário, por exemplo, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Luiz Fux, um dos dois únicos ministros da Corte que percorreu toda a carreira da magistratura (a outra é a ministra Rosa Weber), foi um baluarte na defesa do auxílio-moradia.

A magistratura, de acordo com Ana Carla Abrão, já rompeu o limite de gastos estabelecidos pelo Orçamento para o Judiciário e, apesar de ter salários médios que ultrapassam o dos ministros do Supremo, não sinaliza disposição de abrir mão de seus benefícios extra-teto.

Nem mesmo os ministros sem vínculos com a corporação, como Dias Toffoli, são capazes de impor uma agenda de enxugamento. No apagar das luzes de sua gestão no colegiado, Toffoli presidiu a sessão que aprovou um benefício equivalente a um terço dos vencimentos dos juízes para aqueles que forem responsáveis por mais de uma comarca. De acordo com o CNJ, a remuneração média dos magistrados brasileiros é de R$ 50 mil, 28% a mais do que o teto constitucional.

Relatora da comissão por onde tramitou a proposta que poda os benefícios extra-teto, a senadora Katia Abreu (MDB-TO) atribui a criação de penduricalhos à fixação de um salário alto para o ingresso em algumas carreiras públicas. A rápida progressão faria com que os funcionários atinjam o topo da remuneração com muitos anos de serviço pela frente, estimulando a busca por indenizações extraordinárias..

Se a desigualdade no serviço público é ainda maior do que aquela do setor privado, os penduricalhos puxam ainda mais o desequilíbrio na Federação. Nas contas de Katia Abreu, dos 11,4 milhões de servidores públicos do país, 57% (6,5 milhões) estão nos municípios, 32% (3,6 milhões) estão nos Estados e 11% (1,1 milhão) estão na União.

Esses servidores consomem R$ 928 bilhões em recursos, sendo que cada instância da Federação abocanha, grosso modo, um terço desse valor. Nas contas da senadora, os servidores municipais têm salários equivalentes aos da iniciativa privada. Os estaduais ganham de 35% a 40% a mais e aqueles da União têm vencimentos 98% superiores aos daquelas funções exercidas no mercado privado.

Todos, a princípio, concordam com a submissão ao teto constitucional, mas unicamente para consumo externo. Se presidente, equipe econômica e Congresso estivessem, de fato, empenhados em "não tirar dos mais pobres para dar para os paupérrimos" já teriam encarado a trama dos privilégios e prerrogativas das carreiras mais aquinhoadas da República.