Merval Pereira
DEU EM O GLOBO
Do desarmamento nuclear à substituição do dólar como moeda de reserva internacional; da reorganização dos organismos internacionais ao papel do G-20, todos esses assuntos estarão na mesa de negociação em junho, quando haverá um encontro de chefes de Estado dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) em Yekaterinburgo, na Rússia. Para prepará-la, começa hoje em Moscou uma reunião com os responsáveis pelos assuntos estratégicos dos quatro países.
Já há reuniões de chanceleres e dos ministros da Fazenda, mas esta é a primeira vez em que se reúnem os estrategistas daqueles quatro países apontados como os líderes futuros do mundo para tratar de uma agenda geopolítica muito ampla, inovadora e de longo alcance.
A Rússia será representada pelo general Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança da Federação Russa; a Índia, por M.K. Narayanan, conselheiro de Segurança Nacional; a China, por Dao Bingguo, um dos cinco conselheiros de Estado da China e o responsável por supervisionar as relações da China com o mundo. Mangabeira Unger, ministro de Assuntos Estratégicos, representará o Brasil.
Cinco temas básicos estarão em discussão:
O que fazer com o G-20 e o G-8 + 5. Antes de qualquer coisa, segundo Mangabeira Unger, é importante decidir a forma de regulamentar estruturalmente tais uniões como o G-20, que é um fórum muito amplo, ou G-8, se reunindo com os líderes de China, Índia, México, Brasil e África do Sul. E qual deve ser a relação desses novos organismos com a ONU.
Como podemos evitar que as regras e as organizações existentes tendam a impor, em nome da abertura econômica e da estabilidade política, uma determinada fórmula institucional.
Para Unger, o regime mundial do comércio tem evoluído para um maximalismo institucional, que tende a impor aos países comerciantes, em nome do livre comércio, não só o compromisso com a economia de mercado, mas com uma determinada variante da economia de mercado.
"Tende a proibir, sob o rótulo de subsídios, todas as formas de coordenação estratégica entre governos e empresas que os países hoje ricos usaram para enriquecer", resume Mangabeira Unger.
Essa fórmula, segundo ele, provoca resistências entre os Brics, que querem cada vez menos se sujeitar a ela.
Os estrategistas dos Brics discutirão também o papel do dólar como moeda de reserva internacional. A discussão surge com a China, que tem enormes reservas de dólar e teme que seu tesouro se desvalorize, e já propôs trocar o dólar pelo Direito de Saque Especial, do FMI.
Mas o tema é mais amplo, adverte Mangabeira Unger. Ele diz que, embora seja muito comum se comparar o dólar com o padrão ouro, há uma grande diferença: o ouro não estava sob o comando de um Estado.
Ele lembra que nas transações comerciais já há uma evolução empírica e bilateral: Brasil e China organizam um sistema administrado pelos dois bancos centrais para toda noite fazer um balanço em yuan e em reais, sem passar pelo dólar. O desejo de começar a encontrar uma alternativa ao dólar deve evitar, no entanto, que se caia em uma burocracia pesada, como a do Banco Central Europeu.
Segundo Mangabeira, ninguém nos Brics quer uma nova autoridade monetária internacional: "Não queremos substituir a ditadura do dólar pela ditadura de uma burocracia internacional".
As opções mais aceitas seriam ou uma cesta de moedas, de maneira que a dependência de qualquer uma delas fosse atenuada, ou uma "quase-moeda", organizando um sistema o mais simples e mecânico possível, de maneira a reduzir os poderes discricionários das autoridades que o manejassem.
O tema mais delicado para Mangabeira Unger é como fortalecer o único sistema oficial de segurança que existe, o do Conselho de Segurança da ONU.
"Um sistema frágil e falho, um sistema defeituoso", na definição de Unger, mas que é a "única alternativa à anarquia internacional".
Quando os Estados Unidos e seus aliados se julgam ameaçados no seu interesse vital, e julgam não receber da ONU o apoio necessário, eles simplesmente saem do sistema, fazendo com que "o único sistema de segurança que temos seja como um balão, que às vezes é cheio de gás, outras vezes é esvaziado".
Segundo Mangabeira Unger, há uma convicção crescente de que são necessárias duas séries de iniciativas convergentes: reforçar o sistema oficial de segurança para que seja mais eficaz, e aumentar o preço político que uma potência teria que pagar se decidisse atuar por fora dele.
Por fim, o desarmamento nuclear, "que é do interesse especial do Brasil". O Brasil é, sob muitos aspectos, o menos poderoso dos Brics, ou pelo menos assim é percebido, embora o nosso PIB e a nossa população sejam maiores do que o da Rússia. Isso ocorre, na visão de Unger, por havermos solitariamente renunciado aos armamentos nucleares. "O Brasil renunciou duas vezes, por adesão a tratados e por mandamento constitucional. Ao reafirmar essa posição no recente tratado estratégico nacional, o país expressa sua decisão de estar na vanguarda da ciência e da tecnologia nucleares, por conta do amplo espectro do uso pacífico da energia nuclear, mas também porque queremos que a nossa renúncia seja sempre a expressão da nossa vontade política, e não a conseqüência de uma incapacidade científica ou tecnológica".
A premissa maior do tratado de não proliferação nuclear é o desarmamento progressivo, e até agora essa premissa não foi honrada, o que cria uma situação crescentemente perigosa, avalia Unger.
Temos agora o governo dos Estados Unidos disposto a retomar a agenda do desarmamento nuclear, e essa é uma oportunidade que o Brasil quer levar para a mesa dos Brics.