Valéria Lima Guimarães. O PCB cai no samba: os comunistas e a cultura popular (1945-1950). Rio de Janeiro: Arquivo Público, 2009.
A presença e importância do Partido Comunista na vida política brasileira têm sido um tema recorrente nos estudos de historiadores ou cientistas sociais que há algumas décadas vêm sendo publicados no Brasil. Uma revisão bibliográfica facilmente arrolaria cinquenta títulos fundamentais, excluídos autores memorialistas e a produção considerada pecebista. Atualmente, estes estudos têm convergido para uma abordagem renovada que implica necessariamente um levantamento das dinâmicas culturais e das relações recíprocas com a política, como foram expostas por René Remond na década de 1980, cujo livro, publicado no Brasil quase dez anos depois, tem contribuído para enriquecer os enfoques sobre a história política brasileira [1].
Este livro de Valéria Lima Guimarães se inscreve nessas novas perspectivas. Trata-se de pensar qual a política cultural do PCB e, mais especificamente, a apreciação do partido sobre a cultura popular — dois temas de grande envergadura. Como deixa claro a autora, ela quer fugir da história institucional do partido, sem deixar de enfatizar a importância desta na delimitação de seu estudo. Ao circunscrever sua análise da cultura popular à questão do samba, a autora busca primeiramente delinear o espectro de autores que contribuem, no seu estudo, para pensar as relações culturais.
Três autores são escolhidos para sua definição de cultura popular: Mikhail Bakhtin, Carlos Ginsburg e Roger Chartier, apontando para uma noção de hibridismo, de trocas, que não poderia ser esgotada numa oposição binária entre erudito e popular. Arrematando este esforço analítico, a autora lembra a noção thompsoniana de cultura, fundamente arraigada na concepção da experiência concreta de lutas sociais. Se bem que o estudo não pretenda deter-se nesta discussão, sentimos a ausência de uma menção a Gramsci, autor que foi central na conformação do conceito de cultura popular dos historiadores por ela elencados. A alusão ao pensador italiano é feita, quando autora se detém na análise da compreensão que alguns intelectuais do partido tinham a respeito das tarefas que deveriam cumprir, apropriando-se nesse momento da categoria de “intelectual orgânico”.
O cuidado em esclarecer os usos de categorias que serviram de base para sua análise estende-se ao capítulo 2, no qual situa as apropriações do samba nos anos 1940 pelo Estado Novo, transformando-o em ritmo tipicamente nacional. A autora detém-se na análise, apontando as críticas, muitas vezes nostálgicas, que consideravam a transformação do samba como um processo de perda de suas tradições ou raízes. A transformação do samba em símbolo nacional não se fazia sem a consequente padronização e enquadramento num modelo de cultura considerado, na época, adequado e de bom tom. Vargas buscava investir no carnaval, subvencionando as recém-criadas escolas e patrocinando concursos. Será precisamente na década de 1940 que, segundo a autora, mais se produziram enredos de samba ufanistas.
Os dois primeiros capítulos, como se vê, darão suporte para compreender o contexto em que o PCB procura uma aproximação com as massas. Qual seria a estratégia política do partido, especificamente quando este registra um momento de intensa atividade? Com o fim do Estado Novo, desfrutando de uma curta e relativa liberdade, visto que as perseguições a militantes em protestos e manifestações seriam frequentes, o partido teria uma expansão significativa, tornando-se uma das maiores organizações comunistas da América Latina. A sua legalidade dará impulso à mutação, ampliando suas bases sociais. O desempenho dos intelectuais aqui será marcante especialmente quando lembrados os nomes daqueles filiados mais proeminentes do mundo intelectual, como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Caio Prado Jr., Oscar Niemeyer, etc. A eles será dada a função de desenvolver um projeto cultural entre as massas, colocando-se a serviço da educação política do povo, como a autora bem intitula um dos tópicos do texto: “Intelectuais e artistas a serviço da educação política do povo”.
O papel dos comunistas em relação ao domínio da cultura é analisado, por um lado, a partir da ação dos intelectuais e de uma forte campanha nos diversos meios de comunicação, e, por outro, a partir da atuação da bancada eleita para a Constituinte de 1946. No primeiro exemplo, vale chamar atenção tanto para a importância do projeto do PCB de desenvolvimento de uma política cultural, quanto para o significado que teria este projeto em relação aos intelectuais, ao lhes proporcionar um espaço de atuação.
Este processo, entretanto, seguia também as diretrizes internacionais estabelecidas a partir de 1934 no I Congresso de Escritores Soviéticos por Andrei Zdanov. Tratava-se de imprimir uma perspectiva, na produção artística, de total comprometimento em torno das causas do Partido e sua orientação, seguindo o que era considerado uma cultura genuinamente proletária. O que ficou conhecido como realismo socialista significou, antes de tudo, censura e patrulhamento, ao qual alguns escritores, artistas e intelectuais em geral se negavam, como no caso, citado pela pesquisadora, de Graciliano Ramos. O escritor alagoano recusava abertamente a oposição entre uma suposta arte proletária e outra burguesa.
A ampliação do Partido Comunista nos anos 1940 reflete-se claramente na expressiva votação que seus candidatos obtêm nas eleições de dezembro de 1945. Elegem-se o senador Luiz Carlos Prestes e mais 14 deputados; além disso, o PCB obtém cerca de 10% dos votos para presidente, com Yedo Fiúza. Não obstante esse avanço, a participação da bancada será constantemente barrada, movendo-se num terreno bastante instável e sob forte pressão.
A autora chama a atenção também para a estratégia construída pelo partido de conquistar as massas através da difusão de escritos e periódicos. Tratava-se de ampliar a circulação dos jornais, especialmente com o sentido de difundir uma educação política de base marxista, atribuindo dessa forma ao intelectual funções essenciais. De forma inédita, cria-se a partir das bases do partido uma ampla malha de difusão com a utilização, além da imprensa, da edição de livros, panfletos, cartazes, comícios e palestras públicas.
Chegar às massas era, portanto, o objetivo central dessa campanha de difusão, e, nesse sentido, as escolas de samba se apresentavam como um espaço reconhecidamente importante de aproximação à cultura popular. Note-se que a pesquisadora retoma a discussão sobre as formas de apropriação da cultura popular pelas elites, aqui procurando confrontar, na sua análise da experiência do PCB, as categorias usadas tanto pela direita quanto pela esquerda para entender o que era considerado como símbolo de brasilidade.
Os comunistas vão identificar o sambista “como retrato de um povo sofrido, porém feliz, criativo e talentoso [...] e portador de um enorme potencial revolucionário” [2]. O diagnóstico seria o ponto de partida para o espaço que o samba ocupará no jornal a Tribuna Popular, que terá uma coluna intitulada “O povo se diverte”. O ano de 1946 seria também bastante particular, como fica demonstrado na pesquisa. Em termos das festividades carnavalescas, seria o ano da Vitória, com o fim da Guerra.
Com ampla documentação, a autora demonstra como o partido, atuando na legalidade, procura ir em busca daquele povo tantas vezes mencionado e cuja bandeira procura defender. O encontro da foice e do pandeiro é também construído em mão dupla. Se o partido faz uso de todos os recursos para difundir seus ideais e alcançar credibilidade junto à população, esse movimento não se faz possível sem a arte e a cultura, que teriam função educadora, promovendo os valores políticos através de uma considerável valorização da cultura popular. Era necessário consolidar uma identidade política, só possível de alcançar, segundo se afirmava, a partir de um movimento de maior aproximação e empatia com as simbologias e práticas culturais populares.
Finalmente, podemos afirmar que a autora, como muito bem afirma em suas conclusões, procura pensar as relações culturais a partir de um processo de trocas, de definições e redefinições, e nesse sentido indaga sobre o lugar e maneira como o Partido Comunista construiu um estreitamente de laços entre as agremiações sambistas e a entidade política, demonstrando os complexos meandros dessa troca sempre dialética.
Ana Amélia M.C. de Melo é professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará.
Notas
[1] Refiro-me ao livro Por uma história política, publicado pela primeira vez no Brasil em 1996 pela editora da Fundação Getúlio Vargas.
[2] O PCB cai no samba, p. 124.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.