segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Ricardo Noblat - Presidente recomenda ao Congresso que anule o que ele decidiu

- Blog do Noblat | Veja

Que país é este?

Antes já se viu presidente da República orientar seus aliados no Congresso para votarem contra projetos que ele mesmo propôs. Alguns fizeram isso, mas de maneira discreta. Jair Bolsonaro é o primeiro a recomendar publicamente aos seus aliados que derrotem uma decisão que ele não gostaria de ter tomado.

Trata-se do veto à parte da anistia concedida pelo Congresso a tributos que deveriam ser pagos por igrejas, medida que poderia produzir um impacto de R$ 1 bilhão no Orçamento da União. Para superar o que ele sentiu-se obrigado a fazer, Bolsonaro mandará ao Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição.

Quer dizer: ele concorda em bancar o impacto R$ 1 bilhão no Orçamento. Só vetou porque o projeto de lei aprovado pelo Congresso “apresentava obstáculo jurídico incontornável”. Se o sanciona, poderia ser acusado de “crime de responsabilidade”. Bolsonaro escreveu nas redes sociais:

– Confesso. Caso fosse deputado ou senador, por ocasião da análise do veto que deve ocorrer até outubro, votaria pela derrubada do mesmo.

Bolsonaro não quer ficar mal com sua base de apoio evangélica. Vinha sendo pressionada por ela a não vetar. A Frente Parlamentar Evangélica do Congresso é composta por 195 dos 513 deputados e por oito dos 81 senadores. Esse pessoal tem muita bala na agulha – Isto é: muito voto a dar a candidatos necessitados.

O governo avalia que, apesar da revolta dos religiosos com o veto, eles dificilmente romperão com Bolsonaro porque não haverá em 2022 candidato mais afinado com suas ideias do que o atual presidente. Que trabalhem, pois, para derrubar o veto. E segue o baile. Situação sob controle, só não se sabe exatamente de quem.

Fernando Gabeira - Jabuti de Brasília e a fauna do Pantanal

- O Globo

São incapazes de perceber como o desmatamento influi no regime de chuvas

O jabuti foi adotado em Brasília com base nessa afirmação: jabuti não sobe em árvore, se está lá é porque alguém o colocou.

Jabuti numa lei é algo que não tem uma relação orgânica com o texto, é artificialmente introduzido para atender ao interesse de alguém. Em Brasília como na natureza, há jabutis vistosos e discretos. O que foi aprovado na Câmara é do tipo jabuti-piranga, que pode ser reconhecido de longe. O perdão de uma dívida de R$ 1 bilhão contraída por igrejas em suas transações comerciais foi aprovado pela maioria dos deputados.

Coube ao presidente rejeitar esse desafio de contrariar a Constituição para favorecer pastores que são também importantes cabos eleitorais.

Na mesma semana em que o imenso jabuti-piranga passeava pelo Congresso, houve uma estranha reunião no Palácio do Planalto com o presidente e ministros. Uma jovem, também estranha, perguntou se o Pantanal estava queimando. A resposta foi uma gargalhada geral. Em meio aos risos, alguém respondeu também sorrindo: sim, o Pantanal está queimando, mas o presidente já mandou dez aviões para combater o fogo.

Cacá Diegues - Depois da pandemia

- O Globo

Com as novas, claras e imensas telas de TV, teremos menos vontade de sair de casa para ver um filme

A cada dia, recebemos melhores notícias sobre a queda no número de vítimas da Covid-19. Mesmo que a vacina ainda demore, estamos aprendendo a lidar com os meios de controle parcial da pandemia. Com algum sucesso, tentamos descobrir modos de sobreviver ao vírus, sem nos deixarmos imobilizar pelo terror que sua existência nos provoca. As conversas privadas e os debates públicos sobre como seremos, nós e o mundo, depois da pandemia se multiplicam e são um sinal saudável de que o pânico passou, com o pessimismo que poderia nos paralisar. Agora sabemos que o mundo não vai acabar, embora se torne outra coisa. E discutimos planos para seu futuro, em cada uma de nossas atividades.

Embora novinho, inventado há apenas 125 anos, o cinema é o velho patriarca, o avozinho da família do audiovisual que inaugurou no final do século XIX. O mundo virtual, assim como qualquer outra novidade no gênero, tem sido um resultado do que ele começou em dezembro de 1895. Do som à cor, da televisão ao streaming, tudo o que, nesse universo, apareceu depois da invenção do cinema foi gerado por ele ou é uma consequência do que ele foi.

Não compreendo as críticas radicais, quase histéricas, de gente como Martin Scorsese ao streaming. Não compreendo por que um grande cineasta, com quem tantos jovens aprenderam tanto, se posiciona contra o desenvolvimento de sua atividade. Lembra os intelectuais reacionários que, em 1927, se negaram a assistir a “O cantor de jazz”, como uma manifestação contra o som no cinema.

Rosiska Darcy de Oliveira - Sobre Deus e pátria

- O Globo

Se pecado há, é o ódio contra as mulheres

Criança, estudei na escola pública. Boas notas me permitiram hastear a bandeira do Brasil enquanto cantávamos o Hino Nacional. Honra de que me orgulhava.

Ocupo na Academia Brasileira de Letras a cadeira que tem Evaristo da Veiga como patrono. Na contracapa dos cadernos escolares aprendi com ele, na letra do Hino da Independência, que os brasileiros eram uma brava gente. Acreditei e acredito. “Longe vá temor servil” sempre me pareceu uma boa divisa.

Ofende-me e revolta ver hoje uma escória, embrulhada na nossa bandeira, enxovalhando nossos símbolos, como se a eles pertencesse a pátria. Não pertence. A pátria e seus símbolos pertencem a todos os brasileiros.

Era gente dessa laia os que foram vociferar na porta de um hospital em que uma menina de 10 anos, grávida de um estupro perpetrado pelo tio, interrompia a gravidez, como lhe assegura a lei brasileira e a mais elementar lei moral.

Marcus André Melo* - Nabuco, Bolsonaro e a pandemia

- Folha de S. Paulo

O que teria acontecido na ausência da pandemia? O que vai ocorrer depois?

“Profetizar é tão difícil para trás como para diante. O que aconteceu esclarece-nos bem pouco sobre o que teria acontecido. Quando se diz que outra medida teria estas ou aquelas consequências, subentende-se que é tudo o mais se passando como se passou.”

O alerta de Joaquim Nabuco dizia respeito à dinâmica dos projetos de abolição da escravatura, mas joga luz sobre o que teria acontecido com o governo Bolsonaro se a pandemia não tivesse ocorrido. Nabuco raciocinava em termos de contrafactuais e mecanismos: para eventos singulares o suposto do ceteris paribus (“tudo o mais constante”) seria insustentável.

Feito o alerta, podemos fazer a conjetura que na ausência da pandemia o principal evento recente —a formação de uma base parlamentar do governo— teria ocorrido de qualquer forma, pois foi deflagrado em resposta à janela que se abriu para o impeachment.

Afinal, então, quais os principais impactos da pandemia?

O primeiro é que desmantelou a agenda pública: sai costumes, corrupção, segurança, reformas, entra crise sanitária e seus efeitos. O cenário de uma conflagração social desestabilizante causou pânico: Bolsonaro mimetizou Trump que tomou medidas cavalares na dose ao mesmo tempo em que fazia pouco caso da pandemia.

Celso Rocha de Barros* - Toffoli e a crise democrática

- Folha de S. Paulo

Ex-presidente do STF nunca foi à guerra pelas instituições como fez, por exemplo, Celso de Mello

A passagem de Dias Toffoli pela presidência do STF foi característica de uma época de democracia em crise. À medida que mais bastidores dos últimos anos forem revelados, os historiadores debaterão que papel o ministro teve na gestão dessa crise.

Se as coisas estavam tão degeneradas que foi necessário ao presidente do STF costurar um acordão, Toffoli desempenhou um papel importante. Afinal, acordão ainda é melhor do que golpe. Mas se o risco à democracia era baixo, Toffoli pode ter piorado as coisas encorajando os golpistas com concessões.

O que é claro é que Toffoli nunca aceitou o risco de tornar-se um mártir da democracia, nunca foi à guerra pelas instituições como fez, por exemplo, Celso de Mello. Sua estratégia foi a acomodação com a ameaça bolsonarista, com uma exceção importante, que também é controversa.

Os analistas que defendem a tese do "risco zero" para a democracia precisam começar sua explicação com o seguinte: o que o general Fernando Azevedo e Silva estava fazendo como assessor do presidente do STF durante a campanha de 2018? Quantos generais já haviam ocupado essa posição? 

Ana Cristina Rosa - Inimigos da democracia

- Folha de S. Paulo

É imperioso acatar e respeitar a decisão da maioria, desde que todos se sintam, e de fato estejam, representados

Todo dia é dia de democracia e democracia é todo dia. Pode parecer óbvio, mas não é. Tanto que terça (15) é comemorado o Dia Internacional da Democracia, data instituída pela ONU há uma década. Considerando que há inimigos da democracia por quase toda parte, criar uma data para celebrar o valor universal do regime cujas origens remontam à Grécia antiga é uma iniciativa tanto oportuna quanto necessária.

Em tempos de polarização extremada, a democracia enfrenta opositores de peso. Não há como negar que o radicalismo é um poderoso inimigo do diálogo e da tolerância, marcas registradas de toda democracia que se preze.

Preconceito e sub-representação de qualquer natureza também são poderosos inimigos da democracia. Vale o mesmo para o cerceamento de informação. Como destacam os autores do best seller “Como as Democracias Morrem”, quando importantes meios de comunicação são atacados, outros entram em alerta e passam a praticar autocensura.

Catarina Rochamonte* - Reforma na República dos privilégios

- Folha de S. Paulo

A necessária reforma tem de começar por cima, cortando os privilégios ali onde eles exorbitam

O principal motivo de clamor público por uma reforma administrativa é o acúmulo de privilégios. Sendo assim, é inusitado que uma proposta de reforma comece por avisar que os mais privilegiados —magistrados, parlamentares, militares e membros do Ministério Público, justamente as categorias de maior remuneração— não serão atingidos.

A reforma proposta pelo governo Bolsonaro retira direitos de muitas categorias de funcionários públicos, ao mesmo tempo em que mantém ou fortalece privilégios do alto escalão do funcionalismo, aqueles que estão na ponta da pirâmide dos poderes.

A justificativa para ter excluído os mais privilegiados é que estes são membros de poderes, com regras próprias. O Parlamento, porém, tem poder constitucional para ampliar o texto original enviado pelo Executivo e efetivar uma reforma verdadeira, equânime, democrática e justa.

Denis Lerrer Rosenfield* - Torpor moral

- O Estado de S.Paulo

Tolerância à perversão torna as sociedades acolhedoras para os líderes populistas

Bolsonaro e Lula são duas faces da mesma moeda, ambos apostam que nas eleições de 2022 se repetirá o cara ou coroa. Um é o inimigo querido do outro e tentam conjuntamente, em polos opostos, tornar inviável qualquer outra possibilidade. Não deveria, portanto, surpreender que Lula faça seu reingresso na cena política com um discurso tosco e anacrônico, pois, no seu entender, é a melhor forma de enfrentar o mesmo modo de falar e atuar de seu contendor. O ódio de um pelo outro é o espelho de um amor recíproco. Se um falta, o outro se entristece, fica mesmo amuado.

Essa polarização, contudo, não é fruto somente de uma rija política, com parâmetros próprios, mas expressa algo mais profundo agindo na própria sociedade, com valores morais se esfacelando. Não há adesão coletiva a princípios reconhecidos como comuns, mas questionamentos que atingem o que entendemos como viver em comunidade. Se o PT procurou impor goela abaixo valores tidos por politicamente corretos, ao arrepio do sentimento profundo da sociedade, a reação bolsonarista mostrou que os afetados souberam reagir, expondo os limites de tal tipo de imposição. De lá para cá, a sociedade não conseguiu se recuperar, expondo fraturas à luz do dia.

Há o que poderíamos denominar torpor moral, que está sendo manipulado politicamente. Os óbitos da covid-19 já ultrapassam os 130 mil, uma enormidade. No entanto, a vida segue como se este fosse um dado do destino. Individualmente as pessoas se mostram afetadas, sofrem, sobretudo, quando seus próximos são atingidos, mas isso não se manifesta coletivamente, como quando o presidente da República continua a ser aprovado por expressiva fatia da população, até mesmo na condução da pandemia. A realidade desaparece na perversão moral.

As imagens hilárias do presidente mostrando a cloroquina como solução para a covid-19 são constrangedoras e irresponsáveis, todavia isso não se traduz num verdadeiro protesto, como se a sociedade estivesse anestesiada. Atitudes irresponsáveis desafinando regras básicas de saúde continuam, entretanto os mais anestesiados não cessam de declamar os seus encantos nas redes sociais. É o coro digital da degradação. Se age como o faz, é porque tem a anuência de um setor expressivo da sociedade que nele se reconhece.

Fareed Zakaria* - Cenário preocupante se aproxima com eleição

- O Estado de S. Paulo / The Washington Post

Diferença de votos presenciais e pelo correio para Trump e Biden pode conturbar eleição.

Todos nós precisamos começar a nos preparar para um cenário profundamente preocupante em 3 de novembro. Não é uma fantasia bizarra, mas sim o curso mais provável dos eventos com base no que sabemos hoje. Na noite da eleição, o presidente Donald Trump estará significativamente à frente na maioria dos Estados, inclusive nos indecisos que vão definir o resultado. Nos dias seguintes, as cédulas enviadas pelo correio serão contadas e os números podem mudar a favor de Joe Biden. Mas Trump aceitará esse resultado? E os EUA?

Primeiro, uma explicação de por que essa é a situação mais provável. Várias pesquisas descobriram que, por causa da pandemia, os votos presencial e por correio mostram uma enorme divisão partidária. Em uma pesquisa, 87% dos eleitores de Trump disseram que preferiam votar pessoalmente, em comparação com 47% dos eleitores de Biden. Em outra, da empresa de dados democrata Hawkfish, 69% dos eleitores de Biden disseram que planejavam votar pelo correio, e apenas 19% dos eleitores de Trump disseram o mesmo.

A empresa modelou vários cenários e descobriu que, com base em pesquisas recentes, se apenas 15% das cédulas pelo correio fossem contadas na noite da eleição, Trump pareceria ter 408 votos eleitorais em comparação com os 130 de Biden. Mas quatro dias depois, assumindo a contagem de 75% das cédulas enviadas pelo correio, a liderança poderia passar para Biden e, depois que todas as cédulas fossem contadas, Biden teria 334 votos eleitorais contra os 204 de Trump.

Você não precisa acreditar em modelos para entender que este é um cenário provável. Como David Graham escreveu em um ensaio para The Atlantic, na noite das eleições de meio de mandato de 2018, os resultados pareceram muito decepcionantes para os democratas. Eles pareciam ter conquistado muito menos cadeiras na Câmara e no Senado do que as pesquisas previam, uma repetição de 2016.

Bruno Carazza* - Chovendo no molhado

- Valor Econômico

Reforma Administrativa precisa de regulamentação, não de PEC

Em Brasília, sempre que um governante ou ministro quer mostrar serviço, ele prepara uma PEC para ser enviada ao Congresso. O anúncio movimenta a mídia, gera discussões entre especialistas, atiça debates entre parlamentares e, principalmente, passa ao público a impressão de que o governo está realmente empenhado em resolver os muitos e graves problemas nacionais. Propor uma PEC sempre faz muito barulho, mas em geral produz pouco resultado.

Se a classe política estivesse realmente empenhada em realizar uma reforma administrativa para modernizar a gestão de pessoal no serviço público, reduzir distorções nas remunerações em relação ao setor privado e eliminar privilégios de carreiras, não seria necessário enviar nenhuma PEC para o Congresso - bastaria ter a coragem de regulamentar aquilo que já foi inserido na Carta Magna pelos constituintes originais em 1988 e depois pelas reformas encaminhadas pelos presidentes Fernando Henrique e Lula na virada do século.

A estabilidade do servidor público acabou há 22 anos, quando o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº 19, determinando que o servidor público poderia perder o cargo caso não fosse aprovado em avaliação periódica de desempenho.

Gustavo Loyola* - Bancos Centrais não operam milagres

- Valor Econômico

Não se pode ter a vã ilusão de que juros baixos por longo período seja a receita certa para o crescimento econômico

Em sua última reunião, o Comitê de Política Monetária do Banco Central colocou a taxa Selic em seu mais baixo patamar histórico - 2% ao ano - e ao mesmo tempo, como “forward guidance”, sinalizou para a manutenção da política de estímulo monetária pelo menos até o final do ano de 2022. Contudo, por mais que as ações da autoridade monetária afetem o comportamento da demanda agregada no curto prazo, seria equivocado contar com os juros baixos como instrumento para elevar de modo sustentado a taxa de crescimento da economia brasileira nos próximos anos. Quando muito, a política monetária expansionista facilitará a recuperação cíclica da economia no pós-pandemia.

De início, deve ser registrado que ter os bancos centrais como pilares do combate aos efeitos econômicos da pandemia foi uma tendência global que abrangeu não apenas as economias maduras como também as emergentes. Não poderia ter sido diferente. A crise sanitária criou um formidável “gap” entre as receitas e despesas operacionais das empresas e provocou uma queda abrupta e substancial na renda disponível das famílias.

No curto prazo, o alívio passaria necessariamente, como de fato passou, pela expansão do crédito para os agentes econômicos de modo a lhes permitirem enfrentar a fase mais aguda da crise, quando a necessidade do distanciamento social enfraqueceu a atividade econômica de maneira substancial. Coube aos bancos centrais, nesse contexto, o papel de prover a necessária liquidez aos mercados, por meio da expansão de seus balanços, entre outras medidas.

Inflação corrói renda dos pobres, mas afeta pouco a dos ricos

Concentrada nos alimentos, alta dos preços recente tem impacto maior nas famílias de baixa renda, que destinam parcela maior do orçamento à comida

Cássia Almeida e Carolina Nalin* | O Globo

RIO - A inflação da pandemia está corroendo o poder de compra dos mais pobres, mas afeta muito pouco os mais ricos.

Concentrada em itens básicos como arroz, feijão, carne, ovos, leite e farinha de trigo, a alta de preços recente tem impacto forte em lares de renda baixa, que destinam fatia maior do orçamento à alimentação. Por outro lado, serviços mais buscados pelas classes altas estão mais baratos.

Desagregação por faixa de renda feita pela economista Maria Andreia Parente, do Ipea, no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) constatou que a inflação acumulada no ano até julho em domicílios com renda familiar de até R$ 1.650,50 é de 1,15%.

Já em lares com rendimento acima de R$ 16.509,66, o custo de vida ficou estável no período: leve variação de 0,03%.

A explicação está na diferença entre as cestas de consumo das famílias nos extremos da distribuição de renda. O que os mais pobres compram ficou mais caro e o que os ricos mais consomem ficou mais barato.

O grupo alimentação e bebidas leva 25,8% dos recursos dos domicílios mais pobres. Nos de alta renda, essa proporção cai para menos da metade: 12,3%.

A alimentação no domicílio subiu, em média, 6,1% este ano. O arroz, por exemplo, subiu quase 20%. Já a educação privada, com descontos das escolas sem aulas presenciais, ficou 3,47% mais barata em agosto. Nos lares mais pobres, educação é 4,1% das despesas. Nas mais ricas, o dobro.

Trajetórias separadas
A pandemia abriu um espaço entre a inflação da base e a do topo da pirâmide de renda, que andavam juntas até fevereiro.

No último mês antes da chegada do coronavírus ao Brasil, a inflação de famílias de renda baixa ficara em 3,29% no acumulado em 12 meses. A das de renda alta era 3,07%. Em julho, esse índice ficou em 2,94% para os mais pobres e 1,73% para os mais ricos.

—A inflação de agosto já mostra aceleração ainda maior dos alimentos. Provavelmente esse gap entre pobres e ricos deve continuar, vista a alta dos alimentos e a queda do preço de serviços — prevê Maria Andreia, que divulga hoje indicadores por faixa de renda do Ipea relativos a agosto.

A alta recente de preços afetou itens de difícil substituição, como arroz, feijão, carnes, leite, ovos. Não é uma “inflação do iogurte, do requeijão”, que possibilita trocar por outra coisa, lembra Maria Andreia:

— São itens de primeira necessidade, o grosso do consumo dos mais pobres.

A disparada no preço de alimentos está ligada ao aumento das exportações de produtos agrícolas, incentivadas pelo dólar alto, à entressafra de alguns itens e à maior demanda das famílias com a quarentena e o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, que agora será reduzido à metade.

Economistas, porém, são unânimes na avaliação de que qualquer tentativa de controle de preços pelo governo não é a saída para o problema.

O novo rumo do ‘superministro’ – Editorial | O Estado de S. Paulo

Pouco menos de dois anos bastaram para Paulo Guedes perceber que seu poder de ditar a agenda econômica é menor do que pensava

Em novembro de 2018, logo após ser confirmado como ministro da Economia do futuro governo de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes sugeriu que era preciso dar uma “prensa” no Congresso para aprovar a reforma da Previdência o mais rápido possível. Eram tempos de enorme confiança por parte de Paulo Guedes, na condição de futuro “superministro” com plena autonomia para ditar a agenda econômica. Pouco menos de dois anos de governo, contudo, parecem ter bastado para que ficasse claro ao “superministro” que sua capacidade de dar uma “prensa” no Congresso – ou mesmo no próprio governo – para fazer valer suas ideias era bem menor do que fazia crer a lenda criada em torno de seus “superpoderes”.

Na quarta-feira passada, o ministro deu a entender que capitulou. Disse que vai abandonar o “voluntarismo” em sua relação com o Congresso e que, doravante, será apenas formulador de propostas de sua área, sem se envolver em negociações com os parlamentares. Estas, segundo disse, ficarão a cargo dos articuladores políticos do Palácio do Planalto.

Como sempre, Paulo Guedes tentou dourar a pílula. Disse que agora está “dormindo mais tranquilo” porque o governo tem uma base aliada no Congresso e com ela provavelmente imagina ser possível emplacar suas propostas – embora esse bloco seja numericamente insuficiente até para aprovar projetos de lei, que dirá complexas reformas constitucionais.

O fato é que o ministro Paulo Guedes quase sempre pautou sua relação com o Congresso esperando subordinação reverente dos parlamentares. Acreditava que os projetos de interesse do governo e de sua pauta pessoal seriam aprovados sem maiores discussões ou modificações porque, afinal, “o presidente tem os votos populares”, como argumentou ao defender que se desse uma “prensa” no Congresso.

Populismo e pandemia – Editorial | O Estado de S. Paulo

A pandemia de covid-19 conteve o avanço de líderes nacionalistas populistas

É muito cedo para nutrir a esperança de que o populismo tecnológico de corte nacionalista que grassou em determinados países a partir da segunda metade da década de 2010, inclusive nas duas maiores democracias das Américas, os Estados Unidos e o Brasil, esteja com os dias contados. Porém, é possível afirmar que a pandemia de covid-19, definitivamente, não foi um acontecimento benéfico para a maioria dos tecnopopulistas, especialmente para os presidentes dos dois países citados, Donald Trump e Jair Bolsonaro.

De uma maneira geral, tem-se a pandemia como um fator propiciador do cerceamento de liberdades tipicamente democráticas porque os cidadãos, em nome da proteção coletiva, estariam mais propensos a abrir mão de algumas liberdades individuais. Uma concessão dessas nas mãos de um nacional-populista autoritário é um prato cheio. Que o diga o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán. No entanto, nem Trump nem Bolsonaro têm conseguido “aproveitar” a crise gerada pelo novo coronavírus para fazer avançar suas pautas antidemocráticas na toada em que provavelmente gostariam. Tanto melhor para os seus governados.

Isso pode ser explicado pela luz que a pandemia de covid-19 jogou sobre a incompetência administrativa dos líderes de viés populista, pouco afeitos ao trabalho que dá governar um país, menos ainda um país assolado por uma crise dessa magnitude.

Riscos na retomada – Editorial | Folha de S. Paulo

Reabertura requer plano estratégico para mitigar impacto da epidemia no emprego

Com a reabertura progressiva da economia, surgem dados que mostram uma significativa diminuição do número de trabalhadores que ficaram afastados do mercado pela pandemia. Na terceira semana de agosto eram 4 milhões, ante quase 20 milhões no início de maio.

A volta à atividade é boa notícia, mas não um indicativo de normalização do mercado de trabalho, que terá sequelas mais duradouras.

A crise radicalizou as diferenças em várias dimensões. Muitos setores permeáveis à tecnologia foram vitoriosos, com a aceleração da digitalização, enquanto serviços mais cotidianos ainda amargam ocupação inferior a 50% da capacidade.

Da mesma forma, trabalhadores de alta qualificação puderam, em maior proporção, trabalhar de casa, diferente de outros com menor escolaridade e de ocupações informais, que precisaram contar mais com o auxílio emergencial.

O corte de R$ 600 para R$ 300 no suporte governamental, a partir de outubro, é a preparação para sua extinção no final do ano, como reafirmou o presidente Jair Bolsonaro nesta semana.

Uma solução para dar mais espaço político à mulher – Editorial | O Globo

‘Acordo de leniência’ promovido pela Justiça Eleitoral com partidos amplia participação feminina

Elas detêm a maioria (52%) dos votos. São 79 milhões de mulheres entre 150,5 milhões de eleitores. Têm direito a votar há 88 anos. Mas ainda permanecem sub-representadas na política, nos partidos e em postos-chave do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.

No papel, houve avanço na igualdade. Desde de 2009, a lei prevê meios para aumento da participação feminina na política, impondo cotas de candidaturas. Dirigentes partidários, porém, se mostraram criativos para manter a prevalência do poder masculino: criaram a figura da candidata laranja.

Na última eleição municipal, em 2016, nenhuma mulher foi eleita vereadora em 1.286 cidades. Só formaram maioria nas Câmaras Municipais de 24 cidades, ou 0,4% do Legislativo municipal em todo o país.

O Ministério Público analisou os mapas de votação. Constatou que mais de 16 mil candidatos saíram das urnas sem ter recebido um único voto — nem mesmo o seu. Do total, 14 mil eram mulheres, mais de 90% dos sem-voto. Uma investigação revelou que boa parte nem sabia da própria candidatura. Esse enredo de falsificação se repetiu em diferentes partidos políticos.

Burocracia faz Estado gastar R$ 6 para comprar produtos de R$ 4 – Editorial | O Globo

É preciso acabar com o cipoal de procedimentos que pode levar um único pen-drive a custar R$ 4,4 mil

A burocracia brasileira alcançou um estágio superior de ineficiência: gasta R$ 6 para cada despesa de R$ 4 em compras de bens e serviços de pequeno valor. É o que demonstra a Controladoria-Geral da União (CGU) num estudo sobre contratações feitas em 2018 e 2019 com valor total até R$ 17,6 mil, o teto para a dispensa de licitação. O excesso de procedimentos administrativos torna ainda mais cara a já custosa burocracia de Executivo, Legislativo e Judiciário.

A CGU analisou 142 mil contratos realizados entre janeiro de 2018 e junho de 2019, num valor de R$ 463 milhões. Estimou que o Estado teve um custo operacional de R$ 624 milhões para efetivar as aquisições de bens e serviços de baixo valor.

Renda Brasil e teto de gastos, um conflito crescente – Editorial | Valor Econômico

Com as restrições colocadas pelo presidente, está cada vez mais difícil que o Renda Brasil fique de pé sem que o teto de gastos seja derrubado

Poucas semanas depois de anunciar o veto ao uso do abono salarial para compor o Renda Brasil, o presidente Jair Bolsonaro atacou novamente. Com a cabeça cada vez mais direcionada para a ainda distante eleição de 2022, o chefe de governo anunciou na noite da última quinta-feira que não permitirá que os recursos do seguro-defeso sejam redirecionados para compor o novo programa em construção, que pretende ser a marca social de seu governo.

É verdade que o defeso, pago para os trabalhadores não pescarem no período de reprodução dos peixes, não representaria um grande reforço de caixa para o Renda Brasil. Seu orçamento tem oscilado nos últimos anos em cerca de R$ 2,5 bilhões, beneficiando quase 650 mil pessoas. Enquanto isso, o abono salarial é pago para mais de 20 milhões de pessoas e tem orçamento da ordem de R$ 18 bilhões por ano.

Ou seja, esse programa, que paga até um salário mínimo para os trabalhadores formais que ganham até duas vezes o piso do país, teria um poderio muito maior de alavancar o sucessor do Bolsa Família, sem comprometer o teto de gastos, do que o auxílio para os pescadores.

Ao vetar a proposta do abono, Bolsonaro justificou que não iria tirar do pobre para dar ao paupérrimo. Essa lógica, aliás, foi a mesma que derrubou tentativas anteriores (como na última reforma previdenciária) de extinguir esse benefício, criado ainda no regime militar, quando o Brasil estava distante de ter uma rede de proteção social digna desse nome. E é o mesmo argumento que está tirando de cena o seguro-defeso e outros programas que também estavam na mira da equipe econômica, como o Farmácia Popular.

Música | Fernanda Takai - Terra Plana

Poesia | Cecília Meireles - Gaita de lata

Se o amor ainda medrasse,
aqui ficava contigo,
pois gosto da tua face,

desse teu riso de fonte,
e do teu olhar antigo
de estrela sem horizonte.

Como, porém, já não medra,
cada um com a sorte sua!

(Não nascem lírios de lua
pelos corações de pedra...)

- Cecília Meireles, no livro "Vaga música". 1942.