segunda-feira, 4 de maio de 2020

Bolsonaro insiste na desobediência institucional – Editorial | O Globo

Radicalização no ataque às instituições ameaça quebrar juramento que fez na posse

O presidente Jair Bolsonaro parece ter decidido se manter de vez na trajetória de desobediência institucional para fazer um teste mais forte dos limites que a Constituição impõe ao Executivo. Os arroubos autoritários de Bolsonaro, da família e de seguidores mais sectários vêm de antes da posse. A liberdade de expressão é um direito, mas todos podem ser responsabilizados se atentarem contra preceitos também constitucionais. Dessa forma, com idas e vindas e correção de desvios por força da Lei, vive-se na democracia, em liberdade e aperfeiçoamento constante.

O que tem feito o presidente é algo diferente e mais grave, pelo cargo que ocupa. Tem pregado a sedição, com ameaças claras à ordem constituída. Vai muito além da irresponsável militância que exerce contra o isolamento social, e leva seguidores a fazerem o mesmo, preocupado exclusivamente com seu projeto eleitoral, que teme ser prejudicado caso demore a retomada da economia devido à epidemia do coronavírus. Junta-se a um grupo de autocratas bizarros e coloca o Brasil na companhia isolada de Bielorússia, Turcomenistão e Nicarágua. Não se preocupa com a marcha sem recuo da Covid-19 no país para ultrapassar, ontem, 7 mil mortos e 100 mil contaminados.

A participação de Bolsonaro em mais uma manifestação antidemocrática em Brasília, duas semanas depois da primeira, marca a radicalização do presidente. Naquela, na entrada do Quartel-General do Exército, entre slogans em favor de um golpe militar e um novo AI-5, ele soltou um pouco enigmático “não queremos negociar nada”. Nesta última aglomeração, desta vez em frente ao Planalto, também com ataques de militantes ao ex-ministro Sergio Moro, o presidente foi adiante na sua visão autocrática do poder, repetindo a leitura canhestra que faz da Carta: “Queremos a independência verdadeira dos Três Poderes (...). Chega de interferência. Não vamos admitir mais interferência”, avisou o presidente, aproximando-se de um chavismo de direita — todos os poderes nas mãos do Executivo, com Judiciário e Legislativo no papel de figurantes. O que é inaceitável. Para reforçar o caráter autoritário e ilegal do ato, bolsonaristas atacaram repórteres do jornal “O Estado de S.Paulo”, agredindo a própria liberdade de imprensa.

Marcha dos covardes – Editorial | Folha de S. Paulo

Incitados pela conduta do presidente, celerados agridem democracia e imprensa

No domingo (3), Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, numa sucessão de eventos que infelizmente se tornam habituais no Brasil, um punhado de celerados se reuniu em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, para defender, entre outras coisas, o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e uma intervenção militar.

Mais uma vez, o presidente Jair Bolsonaro achou por bem juntar-se aos manifestantes e gritar palavras de ordem que os legitimam. Ele sabe que as bandeiras afrontam a Constituição, mas não se importa. É o agitador de sempre, o antiestadista, o eterno deputado medíocre do baixo clero.

De novo, entre as sandices proferidas pelo atual ocupante do cargo máximo do Executivo brasileiro, estavam ataques ao jornalismo. A prática de Bolsonaro é macaqueada de seu inspirador norte-americano, Donald Trump, que já definiu a imprensa norte-americana como “inimiga do povo”, uma expressão popularizada, ironia das ironias, pelo ditador comunista Josef Stálin na União Soviética.

Palavras têm consequências. Mais ainda se ditas e repetidas por líderes políticos.

No mesmo ato de domingo, um repórter-fotográfico do jornal O Estado de S. Paulo e o motorista que o ajudava na cobertura foram agredidos com chutes (pelas costas), murros e empurrões. Profissionais da TV Globo, do portal Poder 360 e desta Folha também sofreram ataques físicos ou verbais.

Algo semelhante havia ocorrido no dia anterior em Curitiba, durante o depoimento do ex-ministro da Justiça Sergio Moro na sede da Polícia Federal, a partir de acusações que implicam o presidente em crimes de responsabilidade.

Quando se tolera o intolerável – Editorial | O Estado de S. Paulo

Aos que pregam acomodar a situação política, sem fazer especial caso das acusações do ex-ministro Sérgio Moro contra o presidente Jair Bolsonaro, vale lembrar a experiência de 2005, quando lideranças políticas optaram por poupar o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do mensalão. O País sofre até hoje as consequências dessa transigência com a ilegalidade.

Em junho de 2005, envolvido em denúncias de corrupção nos Correios, o deputado Roberto Jefferson (PTB) revelou a existência de um esquema de compra de votos realizado pelo PT, o mensalão. Segundo o então presidente do PTB, o partido de Lula pagava mesadas de R$ 30 mil para que parlamentares votassem a favor do governo na Câmara.

Instaurada no mesmo mês, a CPI dos Correios foi ocasião para que o País tomasse conhecimento de como o PT operava no poder, num amplo esquema de corrupção. Diante dos escândalos, José Dirceu renunciou à chefia da Casa Civil, sendo substituído por Dilma Rousseff. O presidente do PT à época, José Genoino, também teve de deixar o cargo. Houve vários indiciamentos. Os mandatos parlamentares de Roberto Jefferson e José Dirceu foram cassados. No entanto, o presidente Lula foi estranhamente poupado.

Em agosto de 2005, no auge da crise, Lula reconheceu a existência de ilegalidades no governo. Em pronunciamento nacional, o então presidente da República disse que tinha sido “traído por práticas inaceitáveis das quais nunca teve conhecimento” e pediu desculpas pelos “erros” cometidos. Era o primeiro mandato presidencial de Lula, e houve uma acomodação da oposição, com base num raciocínio que se mostrou completamente equivocado. A ideia era de que não havia necessidade de um processo de impeachment, já que, diante de tantas denúncias, Lula não seria reeleito. Bastaria esperar as eleições de 2006.

Ricardo Noblat - Bolsonaro desafia os demais poderes e agrava a crise política

- Blog do Noblat | Veja

Ameaça à democracia

No dia em que mais caixões de mortos por coronavírus se acumularam ao pé da rampa do Palácio do Planalto (agora são 7.025), o presidente Jair Bolsonaro protagonizou outra manifestação popular antidemocrática contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal e a favor de uma intervenção militar.

Em 19 de abril passado, à porta do Quartel-General do Exército, em Brasília, Bolsonaro disse em manifestação da mesma natureza que estava do lado dos seus devotos e que nada negociaria. Não explicou o que se recusava a negociar. Talvez se referisse a negociação política de cargos no governo.

Ontem, Bolsonaro elevou o tom do seu discurso. Acompanhado de filhos e de uma dezena de seguidores histéricos com sua presença, desceu a rampa do palácio atrás de uma gigantesca bandeira do Brasil e depois de ter pronunciado ao vivo um discurso incendiário e desafiador nas redes sociais onde afirmou:

– As Forças Armadas e o povo estão conosco. Daqui para frente não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço. Cheguei ao meu limite. Não tolerarei mais a interferência de outros poderes.

No sábado, Bolsonaro reuniu-se no Palácio do Planalto com o general Fernando de Azevedo e Silva, ministro da Defesa, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, e os demais generais que o cercam na condição de ministros. Obteve o apoio deles à solução que pretende dar ao problema da Polícia Federal.

Fernando Gabeira - E daí? A pulsão da morte

- O Globo

No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia

Entre mortos e doentes/ No meio dessas bananas/ Os meus ódios e os meus medos? E daí?

Essa poderia ser uma versão sinistra de Bolsonaro para a bela cancão de Milton Nascimento “E daí?”.

Sua reação diante dos mortos pelo coronavírus não me surpreende. Creio que posso entendê-la, pois, de certa forma, venho falando dela desde o princípio do governo. Eu a chamei nos meus artigos de namoro com a morte. Era uma forma de sistematizar minhas críticas.

Umberto Eco afirma com razão que por trás de um regime e sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. É essa pulsão de morte que contesto na política de armas, na retirada dos radares das estradas, no afrouxamento das regras de transporte de crianças nos carros.

No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia. Creio que entendo o que há por trás disso. Ele acredita na tese da imunização do rebanho. Nela, a saída é a inevitável contaminação da maioria para que se resolva de uma vez o problema.

Muitos cientistas afirmam isso. Pode ser que tenham razão. No entanto, o isolamento social torna espaçada essa contaminação, permite que os sistemas de saúde não entrem em colapso: salva vidas.

Bolsonaro até que compreende essa tese. Mas responde com outra: necessidade do crescimento econômico.

Demétrio Magnoli - O paradoxo de Bolsonaro

- O Globo

O cenário é sombrio para o presidente da ‘gripezinha’

Meio a meio, duas vezes. A pesquisa Datafolha realizada na esteira da demissão de Sergio Moro indicou 45% favoráveis à deflagração de processo de impeachment e 48% contrários. O instituto também registrou queda de apoio ao isolamento social, agora em 52%, contra 46% que querem a “volta ao trabalho”. Paradoxalmente, a mesma emergência sanitária que precipitou a crise do governo mantém Bolsonaro à tona — e não apenas porque impede manifestações públicas.

O cenário é sombrio para o presidente da “gripezinha”. O “estado de guerra”, como regra universal, dá coesão às sociedades em combate ao “inimigo comum”. Pelo mundo afora, os governos ganham popularidade na emergência do coronavírus. O Brasil, onde metade dos eleitores pede a adição de uma crise institucional à crise da pandemia, é a única saliente exceção.

Moro entrou em confrontação letal com Bolsonaro, cindindo a coalizão política e social de sustentação do governo. O ex-juiz, ex-ministro e sempre candidato leva ao campo de batalha o “Partido dos Procuradores”, duas legendas parlamentares (PSL e Podemos) e uma camada de eleitores incensados pela narrativa da luta contra a corrupção. Segundo o Datafolha, 52% avaliam que, no intercâmbio de acusações, a verdade está com Moro, contra escassos 20% de crentes na palavra presidencial.

Mas os números são caprichosos, solicitando leitura mais sofisticada. O governo mantém apoio de 33% dos eleitores, e o desempenho de Bolsonaro na crise sanitária tem o aplauso de 27% e uma resignada aceitação de outros 25%. Vitória na derrota: o presidente resiste, ainda sem ventilação mecânica. A solução do mistério encontra-se na dependência e nos sofrimentos impostos pela emergência sanitária, subestimados entre analistas que fazem quarentena com vista para o mar.

Cacá Diegues - Não desistir nunca

- O Globo

Esta não é apenas uma crise sanitária, mas uma revisão redentora de nosso comportamento no planeta

De grandes líderes populares, só se pode esperar milagres, como fizeram (para ficar só no século XX) Franklin Roosevelt, Winston Churchill ou Charles De Gaulle. Quem não sabe fazer milagres não deve se meter em política. Sobretudo se pegar pela frente um país feito o Brasil, tão necessitado de milagres, para realizar nossos sonhos.

A pandemia e os erros que estamos cometendo, durante a pressão dela, vão levar o Brasil a uma crise econômica e social, que já está aí e se tornará, daqui a pouco, ainda mais vigorosa. Pois é neste exato momento que Jair Bolsonaro e seus filhos levam o país a gigantesca crise moral, política e institucional. Não é possível que o presidente não tenha alguém, por perto dele, capaz de alertá-lo. Alguém que ouse lhe dizer que esta não é apenas uma crise sanitária, mas uma revisão redentora de nosso comportamento no planeta.

O coronavírus é mais um jeito que a Natureza achou de nos dizer que não vivemos sozinhos no planeta, nem somos os donos dele. Que devemos negociar nossas necessidades com as dos outros. E, quando se negocia, é preciso estar sempre disposto a abrir mão e ceder. Basta conhecer a História para compreender que, desde a Guerra do Peloponeso até nossos tensos dias atuais, cheios de guerras localizadas e maus-tratos ao meio ambiente, cada momento destrutivo corresponde a uma peste qualquer, vinda a bordo de mosquitos, de ratos, de morcegos ou do que seja.

Bruno Carazza* - O mundo mudou, o Brasil nem tanto

- Valor Econômico

Dá melancolia ler a edição nº 1 do “Valor”, há 20 anos

Eu me lembro exatamente quando e onde estava quando li a edição nº 1 do Valor Econômico, há 20 anos. Eu era praticamente um estagiário de luxo no Ministério da Fazenda quando me mandaram assistir a um seminário sobre a reforma da Previdência em Curitiba. Era a primeira vez que eu viajava de avião, e ao entrar na aeronave a comissária de bordo me entregou um exemplar do jornal de economia que acabara de ser lançado no Brasil.

Muita coisa mudou desde então. Não há mais Varig, três reformas da Previdência foram aprovadas (e ela continuava em déficit), o ministério trocou de nome e (quem diria?) o economista recém-formado - que naquele dia não sabia se olhava pela janela do avião ou lia fascinado o novo jornal escrito por um supertime de jornalistas, com layout inovador e cheio de dados - hoje assina uma de suas colunas.

Vinte anos depois folheio a primeira edição do Valor e reflito sobre as voltas que o mundo e o Brasil deram. Em 2/5/2000, o Valor custava R$ 1,50, e os R$ 5,00 de hoje refletem exatamente os 238% de variação do IPCA no período - um alerta para quem acredita que a inflação deixou de ser um problema no Brasil. Naquele tempo o dólar valia R$ 1,80 e a meta da Selic estava em 18,5%. “Bons tempos”, muitos dirão.

Era um outro mundo. Na página A14 há uma foto dos líderes de então: Tony Blair, Fernando Henrique, Massimo D’Alema, Bill Clinton, Lionel Jospin e Gerard Schröder propondo uma Terceira Via que prometia conciliar justiça social e livre mercado num mundo cada vez mais globalizado. Deu ruim.

Sergio Lamucci - A máquina de produzir incertezas

- Valor Econômico

Fonte de conflitos, Bolsonaro contribui para manter a incerteza elevada, prejudicando a economia, que pode encolher 5% ou mais neste ano

A pandemia da covid-19 fez a incerteza disparar no Brasil e no mundo, com os indicadores criados para medir o grau de indefinição na economia superando em muito recordes anteriores. A combinação de uma crise de saúde com a paralisação da atividade global provocou um choque de imprevisibilidade sem precedentes.

Por aqui, soma-se a esse cenário os conflitos e ruídos causados pelo presidente Jair Bolsonaro, uma máquina de produzir incertezas desde o início de sua gestão. É um fator de peso a conspirar contra a recuperação da economia quando houver o abrandamento das medidas de isolamento social. Níveis elevados de incerteza atrapalham especialmente o investimento, que depende de um horizonte previsível.

O Indicador de Incerteza da Economia (IIE) da Fundação Getulio Vargas (FGV) alcançou em abril 210,5 pontos, o nível mais alto da série. Em dois meses, subiu mais de 95 pontos. Antes dos recordes de março e abril, o patamar máximo anterior, de 136,8 pontos, tinha sido atingido em setembro de 2015, mês em que a agência de classificação de risco Standard and Poor’s (S&P) tirou o grau de investimento do Brasil.

Carlos Pereira - O presidencialismo de coalizão voltou

- O Estado de S.Paulo

Ter ignorado o presidencialismo de coalizão pode custar a sobrevivência do governo

As relações entre instituições políticas, regras do jogo, e escolhas/preferências individuais são muito complexas. Em muitas ocasiões, as regras existentes podem deixar de fazer sentido para algumas pessoas ou mesmo para a própria sociedade. Nessas ocasiões em que as regras em vigor não mais conseguem oferecer os resultados esperados, mudanças institucionais têm maiores chances de acontecer.

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito negando as virtudes do presidencialismo de coalizão. Propôs um rompimento com o que chamou de jogo da política tradicional e se comprometeu com a implantação de uma suposta “nova política”. Preencheu as expectativas de uma parcela do eleitorado de “limpeza” da política, construindo uma plataforma essencialmente antipartido, enfatizando a imagem de que todas as siglas e seus membros seriam iguais e fariam parte de uma mesma elite corrupta. Ao associar diretamente o estilo predatório de presidencialismo de coalizão praticado pelos governos do PT à corrupção, Bolsonaro alimentou no eleitorado uma espécie de aversão à própria política.

Uma vez eleito, Bolsonaro se comportou de forma consistente com o que havia prometido durante a campanha. Se negou a montar uma coalizão de governo, acreditando que poderia governar na condição de minoria. Adotou uma estratégia conhecida como presidencialismo plebiscitário, estabelecendo conexões diretas com seus eleitores e ao mesmo tempo negligenciando as instituições numa espécie de cruzada contra todos que lhe oferecessem resistência.

Fábio Gallo - Democracia: não temos consciência desse bem ainda

- O Estado de S. Paulo

A busca de saídas inteligentes para a crise vai depender muito do correto funcionamento das entidades do Estado

As pessoas no geral, mas principalmente os trabalhadores que perderam renda e/ou emprego, estão atordoadas e de certa forma desesperançadas com a situação econômica. A situação aflige o mundo todo, mas nós brasileiros estamos vendo o pico da crise da saúde junto a outras crises, a econômica e a política. Tudo indica que viveremos tempos muito difíceis após a pandemia.

A proteção financeira das famílias historicamente é muito baixa, assim, passar por esse período está difícil e as perspectivas não são claras. Situação como esta exige um grande esforço de busca de geração de economias no orçamento familiar. A recomendação, que é óbvia neste momento, é a de identificar possíveis cortes nos gastos – se ainda houver algum espaço para isso.

Marcus André Melo* - Impeachment e efeito manada

- Folha de S. Paulo

Presidente e vice do mesmo campo político aumenta probabilidade de afastamento

Já escrevi neste espaço: o impeachment não é uma revolução, mas a destituição de um presidente por crime de responsabilidade, cujo desenlace é a assunção do vice. Todavia as chances para um "impeachment digital" —no qual panelaços substituiriam as manifestações de rua, e o plenário virtual, o real— são pequenas. O impeachment é uma das formas de afastamento do presidente: a outra é através da condenação por crime comum.

Também neste caso assume o vice. Em ambos caberá ao MPF e ao presidente da Câmara deflagrarem o processo, e aos parlamentares, sua apreciação. No julgamento de crimes comuns, a responsabilidade política é dividida com o STF, o que diminui os custos de coordenação parlamentar. Haverá apoio congressual para o afastamento quando uma supermaioria parlamentar de 2/3 preferir a alternativa representada pelo vice-presidente ao status quo. O Senado não participa do jogo.

O presidente e seu vice pertencem ao mesmo campo político. Para setores da esquerda interessaria deixá-lo sangrar: mantê-lo vivo politicamente, mas enfraquecido, serviria à polarização e evitaria o custo de renegar a tese da ilegitimidade de impeachments. Mas eles não contarão muito, ao contrário do centrão, para o qual valeria em tese a lógica do parasita: enfraquecer o hospedeiro, mas não matá-lo, e inflar o custo do apoio.

Celso Rocha de Barros* - Bolsonaro quer ser Lula

- Folha de S. Paulo

Presidente mira apoio dos pobres, como no primeiro mandato do petista

As primeiras pesquisas de opinião depois da demissão de Sergio Moro trouxeram alguns resultados esperados e outros surpreendentes.

Como esperado, Bolsonaro perdeu apoio junto às classes média e alta, que provavelmente eram lavajatistas. O tamanho dessa perda variou de pesquisa para pesquisa.

O que surpreendeu foi o crescimento da aprovação de Bolsonaro entre os pobres, que, na pesquisa Datafolha, compensou a perda na classe média e manteve sua aprovação estável.

A semelhança com o que aconteceu com Lula no primeiro mandato não passou despercebida. O cientista político Raphael Neves notou que Bolsonaro parece procurar um lulismo para chamar de seu.

A referência é ao conceito de "lulismo", criado pelo cientista político André Singer, que descrevia o deslocamento eleitoral ocorrido quando, ao mesmo tempo, apareciam as primeiras denúncias de corrupção contra o PT e os programas sociais petistas começavam a fazer efeito: Lula perdeu o apoio da classe média e conquistou os pobres.

Bolsonaro conseguirá executar operação semelhante? Não vai ser fácil.

Vinicius Mota - Os visigodos do RNA

- Folha de S. Paulo

Nova York e São Paulo são colossos da vida urbana ameaçados por bárbaros invisíveis

Na cidade de Nova York, onde reside menos de 3% da população dos EUA, ocorreram 28% de todas as mortes por Covid-19 do país. O município de São Paulo, com menos de 6% da população brasileira, concentra 26% dos óbitos nacionais.

Parece que as doenças contagiosas predam o progresso humano. Quanto mais a espécie se distancia dos núcleos tribais de poucos indivíduos, mais elas a ameaçam. Se for esse o caso, então a resposta duradoura ao trauma do cononavírus tende a desincentivar arquiteturas colossais da vida urbana, como a nova-iorquina e a paulistana.

As hordas invisíveis dos vírus e das superbactérias deflagariam, como os bárbaros no passado, um retrocesso feudal, mas agora com tecnologia. Se tenho medo de sair à rua para trabalhar, aprender, cortar o cabelo, comer no restaurante, ir ao teatro, assistir ao concerto, passear no parque ou visitar o museu, para que preciso de Nova York ou São Paulo?

Leandro Colon - Sem limites

- Folha de S. Paulo

O presidente já passou as fronteiras da ética, da impessoalidade e da responsabilidade sanitária

Em apoio a mais um ato contra as instituições que compõem os Poderes da República, o presidente Jair Bolsonaro afirmou neste domingo (3) na rampa do Planalto: "Chegamos no limite".

O recado específico foi para o STF (Supremo Tribunal Federal), mas, diante dos episódios acumulados, é difícil compreender o significado de "limite" no vocabulário restrito (e limitado) de Bolsonaro. Em seu governo essa fronteira não existe há muito tempo.

O limite da ética foi para o beleléu quando ele decidiu manter no cargo um ministro do Turismo indiciado pela Polícia Federal e denunciado à Justiça pelo esquema de laranjas do PSL.

E sumiu pelo ralo com sua aproximação de políticos do centrão, abrindo o balcão de cargos em troca de proteção no Congresso contra um possível, e cada vez mais provável, movimento de impeachment.

"Se gritar pega centrão, não fica um meu irmão", já dizia o general Augusto Heleno na convenção do PSL em 2018.

Igor Gielow - Novo ato força cúpula militar a explicar sua posição na crise

- Folha de S. Paulo

Cúpula fardada havia se reunido com o presidente na véspera, levando a dúvidas sobre suas intenções

O presidente Jair Bolsonaro fez seu novo ataque ao Legislativo e ao Judiciário exaltando o papel das Forças Armadas, que segundo ele estão “ao lado do povo”.

Não seria novidade, exceto por um detalhe: na véspera, o presidente havia se reunido com os três comandantes de Forças, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e o chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.

No cardápio posto, segundo a assessoria de Azevedo, “uma avaliação do emprego das Forças Armadas na Operação de Combate ao Coronavírus, além de avaliação de determinados aspectos da conjuntura atual”.

O demônio mora nos detalhes, no caso os tais determinados aspectos. Segundo a Folha ouviu de interlocutores de pessoas presentes ao encontro, o Supremo Tribunal Federal foi duramente criticado pelos presentes.

O motivo, a decisão provisória de Alexandre de Moraes que inviabilizou a indicação de um amigo da investigada família Bolsonaro, Alexandre Ramagem, para a direção da Polícia Federal.

Isso significa que os generais deram amparo à nova intentona retórica do presidente? Aqui há divergências nos relatos disponíveis.

A versão majoritária apontou a crítica fardada, que de resto já tinha sido feita ao considerar Judiciário e Congresso como forças a cercear o Executivo, mas nega que o presidente tenha sido encorajado a novamente desafiar os Poderes.

Uma leitura alternativa diz que o presidente se sentiu autorizado a ultrapassar o sinal novamente.

No ato de 19 de abril, Dia do Exército, o simbolismo era óbvio, mas velado.

Neste domingo (3), Bolsonaro encheu a boca para colocar as Forças Armadas no mesmo bloco que pedia a cabeça do presidente a Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ataques ao Supremo e, de quebra, espancava jornalistas no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

Isso abraçando na rampa do Planalto as bandeiras de Israel e dos EUA, além da brasileira, numa cacofonia caótica emulada pelas carreatas da morte vistas em algumas cidades do país.

A terceira leitura, aí feita por políticos, é a especulação acerca do entusiasmo dos militares com aventuras totalitárias.

Isso hoje é improvável. Não se imagina a atual cúpula militar brasileira apoiando fechamento de Poderes, para ficar na caracterização de golpe.

Ruy Castro* - Louco à solta em Brasília

- Folha de S. Paulo

Se você acha que já leu esse diagnóstico em algum lugar, acertou

Suponha que Jair Bolsonaro, espumando e em camisa de força, seja submetido a um exame psiquiátrico. O resultado poderá ser Transtorno Delirante Persistente, síndrome que inclui alucinações, sensação de perseguição e desconexão com a realidade. O paciente rejeita medicamentos, não admite que está doente e diz que não precisa de ajuda.

Você identificou Bolsonaro em cada item desse diagnóstico. O Transtorno Delirante se manifesta nas alucinações em que ele se vê praticando um autogolpe, fechando o Congresso e o STF e se entronizando como um ditador sustentado pelos militares. O delírio o faz acreditar que a insignificante manada de apoiadores, reunida diante do Planalto para ofender seus adversários e os demais Poderes, representa "o povo brasileiro". Ao juntar-se a eles, Bolsonaro oficializa as ofensas e, ao invocar as Forças Armadas, torna-as cúmplices de suas alucinações.

George Gurgel* -Tempos difíceis: o imperativo da democracia e do diálogo

Estamos vivendo uma situação mundial e nacional de crises. A pandemia colocou em evidência a insustentabilidade da sociedade contemporânea. Coloca-se o imperativo de defesa e ampliação da democracia como caminho para a construção de novas relações centradas na vida e na preservação da natureza.

A pactuação desta construção, através do dialogo e da cooperação permanente, é o desafio colocado às dificuldades que estamos vivendo no Brasil e em toda humanidade. A pandemia desnuda as fragilidades do sistema político, econômico e social em que vivemos.

O confinamento social está nos proporcionando uma necessária reflexão individual e coletiva. Como estamos pensando e agindo na perspectiva de superação desta complexa realidade?

A pandemia está nos transformando. Sob qual perspectiva nos colocamos?

As mudanças estão acontecendo no mundo do trabalho e da cultura. A vida em home office já está proporcionando mudanças significativas no nosso cotidiano. Muitas vieram para ficar.

Estamos nos vendo melhor e, portanto, vendo melhor o outro. O isolamento social está nos aproximando e nos fazendo pensar e agir de outra maneira, entendendo melhor as nossas limitações e fragilidades individuais e coletivas. Estamos e podemos ser melhores. Há uma preocupação maior para o que nos faz humanidade: a cooperação, a solidariedade, a luta pela igualdade, liberdade e fraternidade.

A realidade grita a favor dos excluídos, nos agride com a chegada da pandemia. Coloca nas ruas e nas redes a tragédia social de milhões de pessoas, excluídas das conquistas sociais elementares (trabalho, alimentação, moradia e saúde-saneamento básico). Será o despertar da sociedade para a importância de cada ser humano, independente em que lugar esteja no Planeta?

No Brasil, a polarização da cena política, delineada de uma maneira contundente nas últimas eleições presidenciais, levou Jair Bolsonaro à Presidência, em 2019.

É a vitória das forças conservadoras, do discurso liberal na economia, de uma efetiva participação dos militares na política e a derrota daquelas forças políticas fiadoras da transição democrática e que estiveram de maneira alternada, no centro do poder no Brasil, nos últimos 30 anos. É a derrota principalmente do PT, da maneira como agiu e construiu o exercício do poder durante os quatro mandatos na Presidência da República.

Morre o compositor Aldir Blanc, aos 73 anos

Um dos maiores cronistas das mazelas e alegrias do país, ele deixa 500 canções, entre elas 'O bêbado e a equilibrista' e 'Resposta ao tempo'

Sérgio Luz – O Globo

RIO — Autor de versos memoráveis da música brasileira, cronista das tristezas e alegrias do país, Aldir Blanc morreu nesta segunda-feira, 4 de maio, aos 73 anos. Com infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus, Aldir estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 20 de abril.

O compositor deu entrada no CER Leblon, no dia 10 de abril, com infecção urinária e pneumonia. Ele chegou a ser entubado em uma sala da unidade de saúde por falta de vagas em UTI. Apenas no dia 20, a família conseguiu transferi-lo para um leito de terapia intensiva no Pedro Ernesto.

Aldir Blanc Mendes nasceu no Estácio, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, no dia 2 de setembro de 1946. Curioso e observador, logo se embrenhou pelos encantamentos das ruas, dos tipos humanos e das manifestações culturais de sua cidade, cultivando suas principais paixões desde cedo: o futebol do Club de Regatas Vasco da Gama, o samba da Acadêmicos do Salgueiro, a vida boêmia, as pequenas e deliciosas histórias do cotidiano, a visão crítica e ácida sobre política e desigualdades sociais, e a poesia, que começou a escrever aos 16 anos.

Em 1966, Aldir ingressou na faculdade de Medicina, especializando-se na área de psiquiatria. Mas abandonaria a carreira de vez em 1973, um ano depois do lançamento de “Agnus sei”, parceria abre-alas de sua obra com João Bosco pelo projeto Disco de Bolso da revista “O Pasquim”. O lado A do disco, dedicado a um nome consagrado, trazia “Águas de março”, de Tom Jobim, marcando uma simbólica passagem de bastão para a nova geração da MPB.

O bêbado e a equilibrista (Aldir Blanc e João Bosco)

Música | Canta,canta, minha gente - Martinho da Vila e outros

Poesia | João Cabral de Melo Neto -A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.