Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 06 novembro 2019 | IHU On-Line
A tarefa mais urgente para nós, brasileiros, diante de uma das maiores crises políticas que o país enfrenta, é “repensar o Brasil”, diz o antropólogo Antonio Risério à IHU On-Line. Isso significa, explica, “rever com serenidade e lucidez — com conhecimento, acima de tudo — a experiência nacional brasileira. Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer, em vez de ficar repetindo clichês esquerdistas falsificadores de nossa trajetória no tempo”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Risério denuncia a substituição de uma historiografia nacional baseada em mitos e mistificações, que tentou definir uma “identidade nacional” a partir da colonização portuguesa, por uma nova historiografia encampada pela esquerda brasileira nos anos 1970, em que “o colonizador português era o mal — e o bem se encarnara, aqui, em pretos e índios”. Segundo ele, em sua revisão historiográfica, a esquerda brasileira “se empenhou mal” e “não tratou de realmente encarar, em toda a sua complexidade, a experiência nacional”. Ao contrário, afirma, ela “optou pelo maniqueísmo, pela visão do Brasil como um filme de bandido e mocinho. Então, repetiu a velha história oficial, só que invertendo tudo. Passamos a ter então, basicamente, as figuras do negro sempre luminosamente libertário, do índio ecofeliz e do português genocida”, afirma.
Nesta entrevista, o antropólogo também reflete sobre a crise política brasileira, que tem origem nos “partidocratas”, e assinala que ela é fortalecida pela “polarização extremista entre o autoritarismo de esquerda e o autoritarismo de direita, ambos populistas”. Na avaliação dele, a crise da representatividade política, denunciada pela sociedade nas manifestações de Junho de 2013, já se manifestava na reabertura democrática, porque “de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O Brasil de hoje, especialmente o campo da esquerda, compreendeu as transformações que ocorreram desde 2013? Quais os desafios para apreender essas transformações em suas complexidades?
Antonio Risério - O problema inicial é que os políticos profissionais, partidocratas, parecem não entender ou não querer entender o próprio 2013. Tivemos uma coisa fundamental ali, que foi a exposição pública da crise da representação partidocrata. Na verdade, de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais. Ou seja, o próprio sistema político se encarregou de corroer a representatividade e fragilizar a democracia. Isso foi escancarado na reeleição de Dilma Rousseff, que foi eleita dizendo uma coisa e, assim que recebeu o resultado das urnas, passou a fazer outra. A população viu então com clareza que o jogo era cínico, manipulador.
2013, ao colocar em questão o sistema político, com a sociedade afirmando que os partidos não a representavam, abriu a possibilidade de virar a página e de que a gente entrasse no capítulo inaugural de uma nova cultura política e um novo sistema de poder. Vale dizer, no capítulo inaugural da construção de uma nova democracia brasileira, coisa que não interessou a Fernando Henrique e a Lula, que tiveram a oportunidade histórica de dar o pontapé inicial nessa partida e não o fizeram. Isso foi sufocado por dois processos, que vieram com a irrupção da Lava Jato e as manobras para depor Dilma, uma trapalhona quase tão confusa quanto Bolsonaro. Com as atenções voltadas para os escândalos da corrupção e do “impeachment”, essa grande discussão política foi adiada.
Na campanha presidencial de 2014, todos os candidatos evitaram 2013. Mas parece difícil rasurar do mapa o que aflorou ali.
Na época, Marco Aurélio Nogueira disse algo mais ou menos assim: estava em marcha uma espécie de revolução sem revolução, com a sociedade ultrapassando o sistema político e pondo em xeque o partidocratismo. O que ficou claro ali era que as pessoas não se contentariam com uma reforma política pontual, com cláusulas de barreira, listas fechadas, tipos de voto. O que esteve na origem das movimentações de 2013 foi coisa distinta. O que se defendeu, de modo breve, mas nem por isso irrelevante, foi a necessidade de configuração de uma nova cultura política brasileira. Uma política de militância cidadã, com a cidadania se constituindo como tendência à autorrepresentação, sem tomar conhecimento do partidocratismo profissional e seus expedientes surrados, apodrecidos. A mudança não aconteceu. Mas o que há é uma reivindicação adormecida, não extinta. Que, mais cedo ou mais tarde, promete voltar acesa ao centro do palco.