domingo, 10 de março de 2019

Pedro S. Malan*: Foi possível há 25 anos, há que tentar sempre

- O Estado de S.Paulo

É preciso manter viva a esperança, a aposta no diálogo e a busca das convergências possíveis

A virada de fevereiro para março de 2019 marcou o 25.º aniversário de lançamento da URV – e, portanto, do real, no qual a URV se converteria quatro meses depois. Nos primeiros 25 anos do real a taxa média anual de inflação brasileira foi de cerca de 7%-7,5% ao ano, alta por padrões internacionais para períodos tão longos (embora hoje estejamos com as expectativas aparentemente ancoradas em taxas bem mais baixas). Esse desempenho deve ser visto à luz do nosso longuíssimo passado de inflação alta, crônica e crescente – até o real.

Com efeito, o Brasil foi o recordista mundial de inflação acumulada no período que se estende do início dos anos 1960 ao início dos 90. O País desconhecia taxas de inflação inferiores a 10% ao ano desde 1950. A média do período 1950-1980 foi da ordem de 25%-30% ao ano. Chegamos a 100% em 1980, a 240% em 1985, a 1.000% em 1988 e a 2.400% em 1993.

Esse tipo de aceleração inflacionária por período tão prolongado, sintoma de conflitos distributivos e intenções de gastos em consumo e investimento que excediam de muito a capacidade de resposta da oferta doméstica, mascarava a extensão do desequilíbrio fiscal estrutural ex ante, para usar o terrível jargão dos economistas. Hoje esse desequilíbrio mostra sua face mais visível nas contas públicas, em particular de Estados e municípios, que não contam mais com a inflação crescente para mascarar seus problemas, tampouco têm capacidade de endividamento adicional, não podendo escapar de fazer dificílimas escolhas, inclusive a de apoiar reformas que lhes permitam algum raio de manobra, especialmente nas áreas de pessoal, previdência e gradual retomada dos investimentos, nas quais residem os grandes e fundamentais desafios a enfrentar.

Mais de uma vez neste espaço expressei minha confiança de que o real tenha vindo para ficar, e para sempre, como a definitiva moeda nacional, com seu poder de compra relativamente estável, porque isso era, e é, do interesse de todos os brasileiros. Para tal avançamos em algumas áreas mais: o regime de taxas de câmbio flutuantes está em vigor há mais de 20 anos e o regime de metas de inflação completará seus 20 anos em junho. Esperamos que ambos se consolidem como os regimes cambial e monetário que mais convêm ao País e ao seu futuro, à parte legítimas controvérsias sobre – dados os regimes – a operacionalização das políticas monetária e cambial e sobre os níveis específicos das taxas de câmbio e de juros. A consolidação desses dois regimes depende de avanços na área fiscal. A propósito, antes de comentário final sobre a difícil situação neste crucial ano de 2019, quero aproveitar a oportunidade destes 25 anos da URV/real para chamar a atenção para algo que não mereceria ficar relegado aos escaninhos da memória de uns poucos, porque é relevante para o Brasil de hoje – e seu futuro.

Como é sabido, FHC assumiu o Ministério da Fazenda em fins de maio de 1993, como o quarto ocupante do cargo antes que o governo Itamar Franco alcançasse seu oitavo mês. Em 13 de junho daquele ano, cerca de três semanas depois, foi dado a público o então chamado Plano de Ação Imediata, que colocava a questão do que chamava o descalabro das finanças públicas brasileiras no seu contexto mais amplo, resumido em cinco pontos, que reproduzo textualmente.

“1) O Brasil só consolidará sua democracia e reafirmará sua unidade como nação soberana se superar as carências agudas e os desequilíbrios sociais que infernizam o dia a dia da população. 2) A dívida social só será resgatada se houver ao mesmo tempo a retomada do crescimento autossustentado da economia. 3) A economia brasileira só voltará a crescer de forma duradoura se o país derrotar a superinflação que paralisa os investimentos e desorganiza a atividade produtiva. 4) A superinflação só será definitivamente afastada do horizonte quando o governo acertar a desordem de suas contas, tanto na esfera da União como dos estados e municípios. 5) E as contas públicas só serão acertadas se as forças políticas decidirem caminhar com firmeza nessa direção, deixando de lado interesses menores.”

André Lara Resende*: Os riscos do fiscalismo dogmático

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Como explicar que o Brasil seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?

Uma modernização do sistema passaria pela criação de uma moeda digital do BC, que abriria o caminho para um governo digital e desburocratizado

A crise da macroeconomia
A teoria macroeconômica está em crise. A realidade, sobretudo a partir da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, mostrou-se flagrantemente incompatível com a teoria convencionalmente aceita. O arcabouço conceitual que sustenta as políticas macroeconômicas está prestes a ruir. O questionamento da ortodoxia começou com alguns focos de inconformismo na academia. Só depois de muita resistência e controvérsia, extravasou os limites das escolas. Embora ainda não tenha chegado ao Brasil, sempre a reboque, nos países desenvolvidos, sobretudo nos Estados Unidos, já está na política e na mídia.

A nova macroeconomia que começa a ser delineada é capaz de explicar fenômenos incompatíveis com o antigo paradigma. É o caso, por exemplo, da renitente inflação abaixo das metas nas economias avançadas, mesmo depois de um inusitado aumento da base monetária. Permite compreender como é possível que a economia japonesa carregue uma dívida pública acima de 200% do PIB, com juros próximos de zero, sem qualquer dificuldade para o seu refinanciamento. Ajuda a explicar o rápido crescimento da economia chinesa, liderado por um extraordinário nível de investimento público e com alto endividamento. Em relação à economia brasileira, dá uma resposta à pergunta que, há mais de duas décadas, causa perplexidade: como explicar que o país seja incapaz de crescer de forma sustentada e continue estagnado, sem ganhos de produtividade, há mais de três décadas?

Em artigo recente, "Consenso e Contrassenso: Dívida, Déficit e Previdência", que circula como texto para discussão do Iepe/Casa das Garças, procuro ligar alguns pontos que podem vir a consolidar um novo paradigma macroeconômico. Como foi escrito com o objetivo de embasar a argumentação na literatura econômica, pode exigir do leitor conhecimentos específicos e ser mais técnico do que seria desejável. Por isso volto ao tema, de forma menos técnica, para dar ideia desse novo arcabouço macroeconômico e de suas implicações para a realidade brasileira. As conclusões são surpreendentes, muitas vezes contraintuitivas, irão provocar controvérsia e correm risco de ser politicamente mal interpretadas.

Não tenho a intenção, nem seria possível, responder às inúmeras dúvidas e perguntas que irão, inevitavelmente, assolar o leitor. Ao fazer um resumo esquemático das teses que compõem as bases de um novo paradigma macroeconômico, pretendo apenas estimular o leitor a refletir e a procurar se informar sobre a verdadeira revolução que está em curso na macroeconomia. É da mais alta relevância para compreender as razões da estagnação da economia brasileira. Na literatura econômica fala-se numa armadilha da renda média, constituída por forças que impediriam, uma vez superado o subdesenvolvimento, que se chegue finalmente ao Primeiro Mundo. Há razões para crer que não se trata de uma armadilha objetiva, mas sim conceitual.

Pilares de um novo paradigma
O primeiro pilar do novo paradigma macroeconômico, a sua pedra angular, é a compreensão de que moeda fiduciária contemporânea é essencialmente uma unidade de conta. Assim como o litro é uma unidade de volume, a moeda é uma unidade de valor. O valor total da moeda na economia é o placar da riqueza nacional. Como todo placar, a moeda acompanha a evolução da atividade econômica e da riqueza. No jargão da economia, diz-se que a moeda é endógena, criada e destruída à medida que a atividade econômica e a riqueza financeira se expandem ou se contraem. A moeda é essencialmente uma unidade de referência para a contabilização de ativos e passivos. Sua expansão ou contração é consequência, e não causa, do nível da atividade econômica. Esta é a tese que defendo no meu livro "Juros, Moeda e Ortodoxia", de 2017.

Rolf Kuntz*: Escatológico, mesmo, é o despreparo do presidente

- O Estado de S.Paulo

Xixigate é irrelevante. Grave é o presidente mostrar ignorância das funções de seu cargo

Há dois meses na Presidência, o capitão Jair Bolsonaro ainda parece desconhecer as funções de presidente da República e até a dignidade do cargo. O descompasso entre sua posição como chefe de governo e suas preocupações é o dado mais assustador do episódio do golden shower, também conhecido como xixigate, e de muitos outros, como a promessa de controlar as questões do Enem e um comentário sobre lombadas eletrônicas. Seus críticos foram até generosos, no caso do xixigate, porque deixaram de lado a questão mais importante, conhecida nas empresas como descrição de função. Acusaram-no de falta de decoro, de grosseria, de má educação e de uso irresponsável de uma rede social. Houve até quem o censurasse por má escolha de prioridades. Todas essas críticas podem ser merecidas, mas o dado central e realmente preocupante é outro.

Ao repassar o tal vídeo escatológico e pornográfico, ele se ocupou de uma questão muito distante das atribuições presidenciais. Tratou de um pequeno incidente de carnaval, pouco importante, por seus efeitos, mesmo para quem faz policiamento de rua. Mais que isso: num país com 12% de desempregados, mal saído de uma recessão, com crescimento acumulado de apenas 2,2% em dois anos, uma enorme dívida pública e uma complicada pauta de reformas, por que diabos o presidente da República se preocupa com um vídeo besta e se dispõe a repassá-lo com um comentário? Não é só uma questão de prioridade. Até surgir uma explicação melhor, despreparo para a função será a resposta mais convincente.

As suspeitas de absoluto despreparo para a Presidência foram novamente reforçadas, na quinta-feira, quando ele falou sobre suas missões como governante. Uma delas é aproximar o Brasil de países com “ideologia semelhante à nossa”, amantes “da democracia e da liberdade”. Qual o sentido prático dessa aproximação? Usar um boné de campanha eleitoral do presidente Donald Trump e discursar, numa festa nos Estados Unidos, em favor da construção de um muro na fronteira com o México? O autor das duas façanhas foi o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente e patrocinador dos ministros das Relações Exteriores e da Educação.

E como ficará a relação com países governados com ideologia diferente? Ainda candidato, o capitão Jair Bolsonaro criou problemas com a China, o maior mercado importador de produtos brasileiros, e com países muçulmanos, grandes compradores de frangos do Brasil. Se o presidente Trump briga com muçulmanos e chineses, deve o Brasil também brigar?

Não será função do presidente da República preocupar-se também com o comércio exterior, com a geração de receita cambial, com a criação de empregos vinculados à atividade comercial e com os demais benefícios derivados do relacionamento com parceiros de fora? O vice-presidente Hamilton Mourão deve ir à China para tentar refazer o entendimento entre os dois países. Depois do vice, Bolsonaro anunciou também a intenção de visitar Pequim. Além disso, afirmou o propósito, nem sempre lembrado e às vezes quase negado, de aproximação com países de todo o mundo. Sem tanto falatório, Mourão tem procurado evitar um desastre maior na diplomacia, como ficou claro em sua participação na recente reunião do Grupo de Lima sobre a crise na Venezuela.

Vera Magalhães: Enredo surrealista

- O Estado de S. Paulo

Golden shower e guerra entre olavistas e militares animam o Carnaval de Bolsonaro

Eu tinha reunido temas e entabulado conversas com fontes para duas colunas “frias” no período do Carnaval, já que, normalmente, o noticiário político dá aquela acalmada nesta época. Mas nada mais será como antes no reino de Bolsonaro, deveríamos ter aprendido desde 2018.

Começou com o “Golden Shower Gate”, como bem batizou Mariliz Pereira Jorge, mas a curta semana de confusões autoimpostas, algo que já se tornou uma marca de gestão, termina com uma inusitada guerra entre discípulos do polemista Olavo de Carvalho e a ala militar do governo.

Há tempos o guru do bolsonarismo vem voltando seus rifles lá da Virgínia para a cabeça do vice-presidente, Hamilton Mourão. Mourão tem demonstrado savoir faire ao dedicar a Olavo as respostas debochadas que suas imposturas merecem – e que o deixam ainda mais enfurecido.

Mas a coisa ganhou outra proporção na sexta-feira, quando discípulos do curso de correspondência virtual do ex-astrólogo começaram a ser deslocados de cargos estratégicos para outros decorativos no Ministério da Educação.

Olavo, claro, estrilou. Exortou os “olavetes” – maneira pela qual, sem modéstia nem respeito, chama os próprios alunos – a deixarem todos os cargos (algumas dezenas, diz ele!) no governo Bolsonaro e se recolherem à sua rotina de estudos (que inclui, certamente, mais algumas rodadas de boletos do tal COF).

E fez mais: atribuiu, numa série de posts, a perseguição a seus aprendizes de filósofos a uma joint venture entre os militares e o empresário Stavros Xanthopoylos, que tem em comum com seu detrator o fato de militar no ramo da educação à distância – e de ter feito a cabeça dos Bolsonaro ao longo dos últimos anos.

Eliane Cantanhêde: Toma lá, dá cá

- O Estado de S. Paulo

Proposta dos militares tira na Previdência e põe nos soldos. Guedes quer “conta zero”

A proposta das Forças Armadas para a previdência dos militares é, na verdade, um pacote que tira de um lado (o da previdência) e põe no outro (nos soldos). A intenção é cobrar cota de sacrifício até de pensionistas, mas criando gratificações para os da ativa que fizerem cursos, como compensação para perdas acumuladas há décadas.

“Sempre perguntam se nós não vamos contribuir com a reforma. Mas nunca deixamos de contribuir”, diz o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. Para ele, os militares são sempre os primeiros a sofrer cortes, “para o bem do País”, e acabaram com soldos muito defasados em relação à inflação e às carreiras de Estado. “Em relação ao Judiciário e ao Legislativo, nem se fala.”

O ministro entrega nesta semana a proposta dos militares à equipe econômica e à área jurídica do governo e estima levá-la ao Congresso até início de abril. Esse é um passo importante para esvaziar as desconfianças dos parlamentares, inclusive da base aliada, que resistem a privilégios para militares.

Azevedo e Silva foi pessoalmente à residência oficial do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, na quinta-feira passada, não só para antecipar a ideia geral da proposta para os militares como para falar das compensações: “Vamos subir a receita, mas também equilibrar melhor as despesas”, resumiu.

Maia pensa como o ministro Paulo Guedes e o secretário Rogério Marinho: os militares não podem aproveitar a reforma para compensar defasagens antigas. No mínimo, a conta tem de zerar. Pelo projeto, só vai zerar no quinto ano. Até lá, eles ficam no lucro.

Além de aumentar o tempo de contribuição dos militares, de 30 para 35 anos, a proposta prevê aumento da alíquota para todos, de 11% para 14%, com um detalhe: viúvas, cadetes e recrutas, hoje isentos, também passarão a contribuir com o mesmo porcentual.

Celso Ming: O liberalismo sob ataque

- O Estado de S.Paulo

Se proliferam movimentos populistas que defendem interesses nacionais imediatistas, que solapam as liberdades

O professor Bolívar Lamounier acaba de publicar na internet interessante e compacto artigo sobre a atual crise do liberalismo: O fim dos tempos liberais?

Seu ponto de partida é o surgimento das propostas liberais como reação ao poder absolutista que prevaleceu até metade do século 18 e deu lugar à imposição de “limites à ação do estado, ao seu tamanho e ao seu poder (...) o respeito aos direitos individuais, à propriedade privada e aos contratos”.

E ele envereda pelos atuais desafios enfrentados pelo pensamento liberal em todo o mundo, especialmente pelas reações antiglobalistas, de repúdio sistemático às instituições criadas a partir dos princípios liberais, tais como desenvolvidas nos últimos dois séculos. Hoje, se proliferam movimentos populistas que defendem interesses nacionais imediatistas, que solapam as liberdades, propugnam maior intervenção do estado na economia e solapam a atual ordem global.

Os principais movimentos pela destruição das bases geopolíticas liberais são cada vez mais visíveis. A vitória eleitoral de Donald Trump e seu slogan (put America first); a campanha do Brexit (take back control); o brado da direita na França (la France pour les français); os apelos dos direitistas da Itália (prima gli italiani); e o separatismo da Catalunha (fem la Republica Catalana) são algumas manifestações de insatisfação que têm em comum a atual incapacidade dos Estados nacionais de cumprir seus compromissos com a criação de empregos, de distribuição de bem-estar e de direitos sociais às classes médias, cada vez mais ressentidas.

O artigo de Lamounier vai por aí. O que talvez pudesse ser sugerido é que as raízes da atual crise do liberalismo podem ser encontradas no seguido questionamento de conceitos ainda mais profundos, que fundamentam o pensamento liberal.

O Renascimento colocou o homem e os valores humanistas no centro de tudo. Foi um processo que culminou no iluminismo e na Revolução Francesa. A crença de que o ser humano é dotado de livre-arbítrio e, nessas condições, detém o controle da história e do Direito há muito vem sendo deslocada do lugar ocupado até recentemente.

Em meados do século 19, Karl Marx propôs que a ação humana é condicionada pelas relações de produção e pelas forças desencadeadas pela luta de classes. O biólogo inglês Charles Darwin desenvolveu sua teoria da evolução segundo a qual as espécies, entre elas a humana, são fruto de longo processo de mutações e de seleção natural, e não da livre escolha, que desembocou na sobrevivência dos mais aptos. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, descobriu que a maioria das decisões humanas é gerada por mecanismos inconscientes e não por opções racionais. O pensador espanhol Ortega y Gasset, nas Meditaciones del Quijote, fez uma descoberta de grande clareza: “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”. Ou seja, a circunstância é parte importante do processo que conduz o indivíduo.

Marcus Pestana*: O novo, o velho e a criminalização da política

- O Tempo (MG)

Ninguém mais tem dúvidas sobre o caráter disruptivo das eleições de 2018. Foi uma forte ruptura com os padrões de organização do sistema político tradicional. Os grandes partidos – PSDB, PT, DEM, MDB – sofreram revés eleitoral. Surgiram novas forças. A renovação foi grande: 47,3% dos deputados eleitos e 85% dos vitoriosos nas vagas disputadas no Senado são nomes novos.

As eleições de Bolsonaro para a Presidência e de governadores como Zema, Witzel, Ibaneis, Comandante Moisés, Wilson Lima, representam a vitória de “outsiders” sobre o establishment. O Congresso ficou mais plural e fragmentado, com a presença de 30 partidos.

Tudo isso foi resultante de um forte sentimento antipolítica potencializado pelo protagonismo inédito das redes sociais, a partir da corrupção endêmica, do impeachment e dos efeitos da crise econômica. O sinal já estava presente nas jornadas de rua de 2013. As lideranças tradicionais operaram com software obsoleto. “Abaixo a velha política”, “Contra os mesmos políticos de sempre”, “Não reeleja ninguém”, foram os lemas vitoriosos.

Mas Aristóteles já resolveu isso antes de 300 a.C.: “O Homem é um animal político”. A eleição de 2018 não representa o fim da política e da democracia. Foi um momento de explosão social e catarse coletiva.

Luiz Carlos Azedo: O modelo dos militares

Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“A equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, defende um amplo programa de privatizações, porém, os militares são nacional-desenvolvimentistas”

Comparar as biografias do ex-senador Amaral Peixoto e do ex-presidente Ernesto Geisel ajuda a entender como os projetos liberal-democrático e nacional-desenvolvimentista se digladiaram, à sombra do populismo, durante a maior parte do período republicano. Genro de Getúlio Vargas, Amaral teve papel decisivo nas articulações com os Estados Unidos para o Brasil entrar na guerra contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão) e na construção das alianças do governo Juscelino Kubitschek; Geisel presidiu a Petrobras e sucedeu o general Garrastazu Médici na Presidência, sendo responsável pelo desalinhamento da política externa brasileira em relação aos Estados Unidos, com o acordo nuclear com a Alemanha, o reatamento de relações com a China e o reconhecimento da independência de Angola. Foram adversários políticos por toda a vida.

Amaral lançou a candidatura de Juscelino (PSD) à Presidência da República na eleição de 1955, com um discurso desenvolvimentista cujo slogan era “50 anos em 5”, tendo como companheiro de chapa João Goulart (PTB). Com 35,6% dos votos, contra 30,2% de Juarez Távora (UDN), Juscelino somente tomou posse porque o general Henrique Lott, legalista, desencadeou um movimento militar que a garantiu. Responsável pela construção de Brasília, atraiu investimentos estrangeiros, promoveu a industrialização, o desenvolvimento do interior e a integração do país, num ambiente de estabilidade política e liberdade. Entretanto, deixou como herança dívidas interna e externa elevadas, aumento da inflação e concentração de renda, que alimentaram a crise política dos anos 1960 e desaguaram no golpe militar de 1964.

Geisel herdou a crise do “milagre econômico” do general Médici, idealizado pelos ministros João Paulo dos Reis Velloso e Mário Henrique Simonsen, com o objetivo de preparar a infraestrutura necessária ao desenvolvimento: transportes e telecomunicações, ciência e tecnologia, indústrias naval, siderúrgica e petroquímica. Grandes obras de infraestrutura foram executadas: a hidrelétrica de Itaipu, a Ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica. Houve crescimento médio de 11,2% ao ano, com uma inflação inercial de 19%. A crise do petróleo de 1974, porém, interrompeu o ciclo e forçou uma mudança de rumo na economia.

O II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), lançado por Geisel, porém, fracassou. Fora idealizado por Reis Velloso, Simonsen e Severo Gomes para enfrentar a crise internacional provocada pelo “choque do petróleo “ (os países produtores formaram um cartel e passaram a ditar os preços). Geisel fez a maior intervenção estatal na economia da história do país, com medidas de regulação (taxa de câmbio, taxa básica de juros, regras para exportação e importação, tributação, etc.) e um ajuste estrutural na economia, com redução da dependência do petróleo árabe, por meio do investimento em pesquisa, prospecção, exploração e refino de petróleo dentro do Brasil, além de investimento em fontes alternativas de energia, como o álcool e a energia nuclear.

Merval Pereira: Governar pelo Twitter

- O Globo

O importante é distinguir os interesses eleitoreiros imediatos daqueles do Estado brasileiro

O presidente Jair Bolsonaro no cotidiano do governo padece de uma paradoxal dificuldade institucional de comunicação, que não existia no candidato Bolsonaro, que teve justamente na capacidade de interação direta com o cidadão um dos trunfos para ser eleito. Deixar a campanha eleitoral para governar parece ser uma impossibilidade para políticos populistas.

A diferença entre uma situação e outra é o que tem gerado muitas das crises políticas que parecem se suceder nesses primeiros 60 dias de gestão. Os mais recentes, relativos à divulgação de um vídeo pornográfico durante o Carnaval e à afirmação de que a democracia só existe porque as Forças Armadas querem, são faces da mesma situação.

Na primeira, utilizando as novas mídias, Bolsonaro, segundo Manoel Fernandes, diretor da revista digital BITES, reanimou parte da sua audiência digital pouco entusiasmada com debates sobre economia, como a reforma da Previdência, e que se ressentia de debates mais inflamados em torno de uma agenda de costumes.

No outro caso, quando se referiu ao papel dos militares na democracia, tudo indica que cometeu no mínimo um ato falho, quando o inconsciente revela uma opinião reprimida. Ao dizer que a democracia só existe no Brasil porque os militares “querem”, Bolsonaro se expressou mal, conforme explicaram vários assessores, mas, diante de seu passado de defesa do golpe militar de 64, causou temor de que considere mesmo que a democracia é uma concessão dos militares aos civis.

O porta-voz do governo, General Rêgo Barros, citou o cientista político americano conservador Samuel Huntington para garantir que o sentido da fala do presidente foi o de enaltecer o trabalho das Forças Armadas na defesa da democracia:

— O controle civil objetivo, propugnado por Samuel Huntington, advoga que as Forças Armadas devem ser a fortaleza desse controle civil. Naturalmente, as Forças Armadas brasileiras já o são, por defenderem veementemente a democracia.

O mesmo Huntington fora citado pelo General Villas Bôas, então comandante do Exército, no Twitter, “Samuel Huntington nos instiga: ‘A lealdade e a obediência são as mais altas virtudes militares; mas quais serão os limites da obediência?’ O Estado, ao nos delegar poder para exercer a violência em seu nome, precisa saber que agiremos sempre em prol da sociedade da qual somos servos”, escreveu em novembro de 2017.

Míriam Leitão: O centro da crise do Itamaraty

- O Globo

A hierarquia no Itamaraty, como nas Forças Armadas, é a forma de transmitir experiência. Quebrá-la é um risco

A crise no Itamaraty é muito mais do que as ideias exóticas defendidas pelo chanceler Ernesto Araújo, na intenção de agradar ao presidente. Fosse só isso, a chancelaria saberia como lidar com o assunto. O pior problema é que ele quebrou a hierarquia dentro da instituição que, a exemplo das Forças Armadas, precisa dela. “Os diplomatas, assim como os militares, funcionam sob instruções, que vêm de alguém mais qualificado, por isso ele tem legitimidade para transmiti-la”.

Essa explicação dada por um diplomata reflete o coração do dilema atual. Mudar isso é subverter a lógica interna mais profunda, com efeitos imprevisíveis. Não bastou ao ministro Ernesto Araújo chegar ao primeiro posto sem ter comandado embaixada. Ele se cercou de pessoas que também não tiveram essa experiência. É normal que o ministro queira ter seu próprio time, mas como ele se deixa levar pelo fígado, acabou não criando uma diversidade nesse grupo.

— Nunca houve uma situação em que tantas pessoas mais graduadas estivessem sob o comando de gente de nível hierárquico inferior. Você ser embaixador lhe confere uma outra experiência. A chefia de posto mostra como são as coisas na prática. É normal ter um ou outro dirigindo uma subsecretaria sem ter chefiado uma representação, mas aí ele ouvirá os outros, que já comandaram postos, sobre como proceder. Assim funcionam os check and balances internos. Mas é inédito ter todos os subsecretários sem esta experiência — informa um integrante da Casa.

Tenho conversado com diplomatas que estão fora do Brasil. Eles relatam que andam confusos. As instruções não chegam. As que chegam ignoram nossas posições ou a natureza das instituições internacionais. O que acontecerá com a postura conservadora do governo em relação à mulher? Com todos os problemas que o país tem nesta área, o Brasil sempre teve uma posição de vanguarda, na área de direitos humanos e direitos da mulher.

Ascânio Seleme: O autoatentado de Bolsonaro

- O Globo

É assustadora a desenvoltura com que as pessoas falam de um hipotético afastamento do presidente da República, mal completados dois meses de seu mandato. A cada semana o tema ganha mais corpo em conversas nas ruas, nas casas, nos restaurantes, nos escritórios, nos consultórios, nos táxis. Na praia. O assunto pode invadir o Congresso a partir de amanhã, ao fim do recesso de carnaval. Se já não invadiu.

Nunca um presidente conseguiu queimar tanto capital político trazido das urnas em tão pouco tempo como Jair Bolsonaro. Nem os dois presidentes brasileiros efetivamente afastados do poder nos últimos 30 anos estavam tão mal assim cedo. Dilma Rousseff foi reeleita e inaugurou seu segundo mandato com apoio popular e parlamentar, e seguiu assim até a descoberta de suas pedaladas. Fernando Collor, o homem que sufocou o país ao congelar as contas bancárias dos brasileiros, só perdeu apoio quando suas maracutaias tornaram-se públicas.

Tampouco Michel Temer, que chegou ao Palácio pela via indireta e com o país dividido, estava atolado no segundo mês de seu mandato tampão. A hipótese de cassação do mandato de Temer só foi cogitada depois daquela conversa cavernosa no Palácio do Jaburu com o empresário Joesley Batista. Lula e Fernando Henrique também foram objeto da mesmo especulação. Mas Lula, no terceiro ano do primeiro mandato, no auge do mensalão. E FH na discussão da emenda da reeleição, acusado de comprar votos no Congresso. Nenhum ao final do 2º mês.

Hoje, as pessoas falam abertamente sobre o impeachment de Bolsonaro. E por quê? Porque o presidente deu margem, deu corda, alimentou e segue alimentando a discussão sobre seu próprio futuro. Cada besteira dita por ele multiplica o debate sobre o seu afastamento. Somente nesta semana, por duas vezes o presidente espantou os brasileiros, mesmo aqueles que votaram nele com convicção. O Twitter do carnaval e a declaração de que a democracia só existe porque as Forças Armadas querem causaram estupefação no país.

Bernardo Mello Franco: Marielle, um ano depois

- O Globo

Na próxima quinta, o assassinato da vereadora faz um ano. Até aqui, a apuração revelou mais sobre a polícia do Rio do que sobre o crime

Eram quase cinco da madrugada quando a Mangueira revelou o segredo. Na última ala da escola, grandes bandeiras em verde e rosa exibiram o rosto de Marielle Franco. Era a surpresa do desfile que já começou a homenagear a vereadora no samba-enredo. “Brasil, chegou a vez / De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”, dizia o refrão, que embalou o 20º título da Estação Primeira.

O assassinato de Marielle e do motorista Anderson Gomes completa um ano na próxima quinta-feira. O crime continua sem castigo, apesar das seguidas promessas de autoridades federais e estaduais.

Em 10 de maio de 2018, o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, inaugurou a série de bravatas. “A investigação do caso Marielle está chegando à sua etapa final, e eu acredito que em breve nós devemos ter resultados”, anunciou.

Em 31 de agosto, foi a vez do general Braga Netto, que comandava a intervenção federal no Rio. “Estamos perto. Até o fim do ano, quando a intervenção tiver sido concluída, o caso já deverá estar solucionado”, prometeu.

Em 1º de novembro, o delegado Rivaldo Barbosa garantiu que o crime estaria “muito próximo de sua elucidação”. Três semanas depois, o então secretário estadual de Segurança, Richard Nunes, disse que o caso seria resolvido até o fim do ano. “Alguns participantes nós temos, com certeza”, assegurou o general.

O ano acabou, a intervenção passou, e as promessas continuaram a ser lançadas ao vento. Em 12 de janeiro, o novo governador, Wilson Witzel, disse que os investigadores estavam “próximos da elucidação do caso e, evidentemente, da prisão daqueles que estão envolvidos”. “Talvez isso aconteça até o final desse mês”, acrescentou.

Dorrit Harazim: Mulheres, bagunçai!

- O Globo

A vida é mais interessante e indomável. Melhor focarmos nela primeiro

Na sexta-feira passada, Dia Internacional da Mulher, as homenagens e atos foram sendo noticiados em moto quase contínuo, com sua maré crescente de autocongraçamentos, cobranças relevantes, pronunciamentos edificantes. No fundo, o 8 de março lembra um pouco os fogos de artifício em cascata que celebram o Ano Novo: uma onda contínua que começa lá pelas bandas da Nova Zelândia, no extremo Leste do mundo, e seguindo o fuso horário de festejos completa sua rota no Oeste californiano.

Também houve silêncios notáveis, ou referências inadequadas, tudo computado e compartilhado em tempo real pelas redes sociais. E houve sobretudo a imensa massa das (dos) que têm a vida para tocar e precisam tocá-la à margem da história. Em meio a esse mundaréu cabe refletir um pouco sobre a mensagem utilitário-subliminar da guru japonesa Marie Kondo.

Autora do fenômeno global “A mágica da arrumação do lar” (Sextante), que desde 2014 é consumido aos milhares em mais de 30 países, Kondo, no primeiro dia de 2019, também estreou seu método de organização doméstica no Netflix — e com igual estrondo. Os oito episódios dessa primeira temporada repetem à exaustão a fórmula que a consagrou. Capitã Marvel de casas em desalinho, ela atende a chamados com uma solução eficaz para devolver ordem e paz a famílias: basta aprender a arrumar e a descartar.

As famílias socorridas por Kondo têm em comum mães estressadas que se autoincriminam, e pais aflitos. Quando a porta se abre para Kondo, é como se entrasse um facho de luz. Sempre vestida de jaqueta branca que combina com sua pele alvíssima, a diminuta guru é um furacão minimalista. Saltita entre montanhas de roupas que emergem de armários abarrotados, reordena o conteúdo de uma casa inteira sem alterar penteado e sorriso, e nunca sua, mesmo quando carrega tralhas e mais tralhas de um ambiente a outro.

Elio Gaspari*: A turma da Lava Jato criou uma fundação

- Folha de S. Paulo / O Globo

Os doutores da força-tarefa superestimaram sua força e extrapolaram suas tarefas

Em setembro passado, a Petrobras e o governo americano assinaram um acordo pelo qual a empresa encerrou seus litígios com os órgãos reguladores daquele país. Era um espeto de US$ 2,95 bilhões. Nessa negociação acertou-se que o equivalente a R$ 2,5 bilhões seriam pagos às “autoridades brasileiras”.

Em dois momentos o acordo se refere às “Brazilian authorities” como destinatárias do dinheiro.

Em janeiro deste ano, o doutor Deltan Dallagnol e outros 11 procuradores da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba assinaram um acordo com a Petrobras pelo qual o dinheiro que deveria ir para as “autoridades brasileiras” foi para uma conta aberta numa agência da Caixa Econômica de Curitiba em nome do Ministério Público Federal.

Seria razoável supor que os R$ 2,5 bilhões fossem para a conta do Tesouro Nacional, nome de fantasia da Bolsa da Viúva, mas, afinal de contas, eles, como os diretores de hospitais, também são autoridades.

Os doutores da força-tarefa superestimaram sua força e extrapolaram suas tarefas. Superestimaram seus poderes colocando sob sua jurisdição um dinheiro que deveria ir para o Tesouro. Exorbitaram suas tarefas quando estabeleceram que metade dos R$ 2,5 bilhões seja transformado num fundo para financiar uma fundação de direito privado.

Ela ainda não existe, mas, segundo os procuradores, seus recursos “serão destinados ao investimento social em projetos, iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades idôneas que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção, inclusive para a proteção e promoção de direitos fundamentais afetados pela corrupção, como os direitos à saúde, à educação e ao meio ambiente, dentre outros”. Tudo, enfim.

O ervanário, correspondente ao orçamento da Universidade de Campinas, foi burocraticamente apropriado para sustentar uma fundação de natureza privada. Se essa tivesse sido a combinação da Petrobras com o governo americano, seria o jogo jogado. Em nenhum momento os procuradores de Curitiba ou mesmo a Procuradoria-Geral da República são mencionados no acordo americano.

No item 7 do acordo firmado pelo Ministério Público com a Petrobras, os doutores dizem que “as autoridades norte-americanas consentiram” em que os recursos “sejam satisfeitos com base no que for pago (...) conforme acordado com o Ministério Público Federal”.

Seja qual for o significado desse “satisfeitos”, esse consentimento não consta do acordo. Vá lá que tenham combinado noutra sala. Pode sobrar para o lado americano da combinação.

No item seguinte está escrito que “conforme previsto no acordo com a Security Exchange Commission (a CVM americana) e o Departamento de Justiça, na ausência de acordo com o Ministério Público Federal, 100% do valor acordado com as autoridades americanas será revertido integralmente para o Tesouro norte-americano”.

Isso não consta do texto mencionado. Lá está escrito que o dinheiro voltará para o Tesouro americano se a Petrobras não o entregar às autoridades brasileiras. Nada a ver com “acordo com o Ministério Público Federal”.

A turma da Lava Jato acha que pode tudo. Pode até nomear um procurador aposentado para presidir essa fundação milionária. Talvez possa, mas fica feio.

Serviço: Todos os documentos mencionados neste texto podem ser consultados no site Migalhas.

Bruno Boghossian: O pastelão da oposição

- Folha de S. Paulo

Participação de políticos em piada de ator global revela oposição ingênua e sem rumo

Como se não bastasse um governo alucinado, a oposição também migrou para o mundo do delírio. Ex-presidentes, líderes parlamentares e dirigentes de partidos de esquerda tentaram fazer uma brincadeira e declararam apoio ao ator José de Abreu como presidente autoproclamado do Brasil.

A piada começou como uma crítica ao venezuelano Juan Guaidó, que fez o mesmo em seu país para tentar derrubar Nicolás Maduro. O ator global gostou do personagem e transformou a esquete em um palanque contra Jair Bolsonaro. Os políticos que entraram na onda talvez não tenham percebido, mas são estrelas de uma comédia pastelão barata.

Abreu começou a convocar figuras da esquerda nas redes sociais para seu governo fictício —e elas responderam. Chamada para o Ministério de Energia Convencional e Alternativa, Dilma Rousseff pediu que ele conduzisse o Brasil “com perseverança e olhando para nossa gente”.

Na partilha de cargos, Lula recebeu o Ministério dos Justos. Da prisão, mandou um bilhete ao ator declarando ser seu cabo eleitoral.

Janio de Freitas: Licença para envenenar

- Folha de S. Paulo

No Congresso já houve CPI dos agrotóxicos; todos acharam melhor seguir 'o curso normal'

Jair Bolsonaro está preocupado. Com a banana.

Não a que lhe dão. A que representa uma incógnita nas suas reflexões sobre o que vê como um ataque externo ao Brasil. Em síntese: "Não consigo entender como uma banana do Equador viaja 10 mil quilômetros até a Ceagesp [mercadão paulista] e compete no preço com a banana do Vale do Ribeira" --por coincidência, a do seu sobrinho produtor. A reflexão não alcançou deduzir que produtores e exportadores equatorianos, somados, são menos gananciosos do que o parente bananeiro, tal como os outros produtores na região onde os Bolsonaros têm muitas empresas.

O Brasil vai reagir. Na mesma aparição bananosa em rede social,Bolsonaro prometeu ao sobrinho e amigos "acabar com o fantasma" de bom preço (e melhor qualidade) dos equatorianos. Decidido e rápido, assim é um presidente preocupado com os grandes problemas do país. E da família. A sua, bem entendido. Não faz diferença se a importação do "fantasma" é insignificante, nem R$ 300 mil neste ano. Para o serviço completo, porém, o parente e amigos querem também a garantia da liberdade de pulverização das suas plantações com agrotóxico. Uma prática que distingue o Brasil no mundo.

O Conselho de Pesquisa Científica da ONU denunciou o agrotóxico glifosato, na semana passada, como potencial causador de câncer. A França estabeleceu, há pouco, duras restrições a determinados agrotóxicos. Nos Estados Unidos, além das limitações de uso, está proibida a pulverização aérea. A União Europeia proibiu o uso do agrotóxico atrazina e, já numerosos agrotóxicos com restrições, seguem-se com outros. Todos eles, e muitos outros, por ameaça ao consumidor e envenenamento do meio ambiente. Esses agrotóxicos estão, porém, nos pratos e marmitas do almoço e do jantar brasileiros, no café da manhã e no lanche, em doces e guloseimas. E no ar.

Mary Zaidan*: E ainda não tem 100 dias

- Blog do Noblat / Veja

Traiu milhões de eleitores

Em 7 de outubro, diante do resultado do primeiro turno que o colocava na liderança com mais de 46% dos votos contra 28% do segundo colocado Fernando Haddad, o então candidato Jair Bolsonaro usou o Facebook para comemorar e agradecer aos eleitores. Ao vivo e em cores, prometeu “unir o povo, unir os cacos que nos fez o governo de esquerda”, caso fosse vitorioso. Ao chegar à Presidência não fez valer a jura: traiu milhões de eleitores.

Além de não compreender a natureza e a grandeza do cargo que ocupa, como tem demonstrado continuamente em comportamentos desleixados, tuítes irresponsáveis e até escatológicos, Bolsonaro parece também não entender os motivos do apoio que recebeu de eleitores que haviam negado a ele o voto no primeiro turno. Pior: acredita que tudo pode, que é mesmo um mito, termo usado na campanha pelas torcidas fundamentalistas.

É fato que Bolsonaro soube encarnar com sucesso o repúdio do eleitor à corrupção, grudada ao PT. Usou com maestria as redes sociais e os batalhões fictícios que ela proporciona, e teve competência para terceirizar temas econômicos, sobre os quais nunca soube nada e não se esforça nem um pouco em aprender. Mas, ao contrário do que o ex-capitão, sua prole e seu guru Olavo de Carvalho preferem crer, é absurdo imaginar que o antipetismo tem o condão de transformar os que rejeitam Lula, Dilma & cia em ultradireitistas, apoiadores de pensamentos xenófobos, homofóbicos, anti-humanistas e castradores da liberdade.

Esse eleitor sem opção de centro atraente, que assegurou a vitória a Bolsonaro no segundo turno, é quem pode acrescentar peso ao governo. E, diferentemente dos fiéis, são pessoas sem alinhamento automático, que têm de ser conquistadas cotidianamente e que já começam a expressar descontentamento. Nas mesmas redes sociais em que milita a tropa do ex-capitão, aparecem arrependimentos, gente decepcionada, cansada das baboseiras do presidente, descrente diante da ausência de governo e de governante. Isso em pouco mais de dois meses.

Bagunça não é prerrogativa: Editorial / O Estado de S. Paulo

Ao Ministério Público compete defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis, como determina a Constituição de 1988. Não é sua competência definir o destino de recursos econômicos, sejam eles públicos ou privados. Por isso, causam preocupação algumas ingerências do Ministério Público Federal (MPF) na determinação do uso de dinheiro recuperado em casos de corrupção e outros crimes. Tal modo de atuar não apenas invade a competência de outros Poderes, mas revela uma confusão sobre o papel que a instituição tem.

No final de fevereiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin rejeitou pedido da Procuradoria-Geral da República para que R$ 71,6 milhões referentes ao acordo de delação de João Santana, ex-marqueteiro do PT, fossem destinados ao Ministério da Educação.

Não cabe ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário definir como esse dinheiro será utilizado. Tal competência é da União. “A multa deve ser destinada à União, cabendo a ela, e não ao Poder Judiciário, inclusive por regras rigorosas de classificação orçamentária, definir, no âmbito de sua competência, como utilizará essa receita”, disse o ministro Edson Fachin na decisão.

Outro caso recente em que o Ministério Público extrapolou suas funções ocorreu em Curitiba. A força-tarefa da Lava Jato celebrou um acordo com a Petrobrás para criar um fundo de investimento social voltado a projetos “que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção”. O fundo seria alimentado com recursos de penalidades impostas à Petrobrás e sua gestão ficaria a cargo de uma fundação de direito privado. No caso, são penalidades impostas num acordo celebrado com autoridades norte-americanas.

Hora da barganha: Editorial / Folha de S. Paulo

Retomada dos trabalhos legislativos exigirá empenho de Bolsonaro na organização de sua base de apoio

Com o fim do Carnaval e a retomada das atividades do Congresso, a falta de traquejo do governo Jair Bolsonaro (PSL) para lidar com o Legislativo se tornou fonte de ansiedade para políticos e investidores.

Passados dois meses desde a posse, o presidente ainda não tem uma base de apoio partidário comprometida com sua agenda e foi incapaz de desenvolver uma estratégia convincente para organizá-la.

Nos próximos dias, com a instalação das comissões que fazem o processo legislativo andar na Câmara dos Deputados, essa fragilidade tende a se tornar mais visível.

Líderes partidários dispostos a apoiar Bolsonaro ameaçam fazer corpo mole enquanto não receberem do Palácio do Planalto sinais mais claros de que suas reivindicações por cargos e verbas oficiais serão atendidas em algum momento.

Dependerá dessas comissões o ritmo a ser imprimido à discussão da proposta de reforma da Previdência, essencial para recuperar o equilíbrio financeiro do Tesouro Nacional e a economia.

O presidente prometeu governar sem ceder a barganhas como as que foram repudiadas na campanha eleitoral —e montou seu ministério sem fazer concessões aos caciques das maiores legendas.

Mas não há regime democrático que funcione sem negociações desse tipo, e no mundo inteiro governos em busca de apoio parlamentar oferecem como moeda de troca participação em decisões e influência na aplicação de seus recursos.

Decerto o ambiente encontrado pelo presidente é desafiador. Siglas tradicionais foram destroçadas nas urnas e um número recorde de partidos pouco representativos ganhou lugar no Congresso, multiplicando os atores com votos para sentar à mesa de negociações.

Lidar com esse tipo de situação, porém, é parte das atribuições do chefe do Executivo, e cabe a Bolsonaro desenvolver as habilidades necessárias para estabelecer um diálogo produtivo com o Congresso.

Previdência é só a primeira das reformas: Editorial / O Globo

Atualizar o sistema de seguridade não basta para que o ajuste fiscal seja feito no prazo necessário

Pela sua abrangência e por envolver o maior item do Orçamento —quase 60% dos gastos da União, exceto juros da dívida —, a reforma da Previdência tem sido trata dacoma importância devida.

Só este ano, o sistema, excluindo estados e municípios, mas incluindo os militares, custará R $770 bilhões. Trata-se, ainda, de uma despe saque cresce de forma autônoma, fora do alcance de qualquer gestor público. Cresce porque o perfil demográfico brasileiro pressiona de maneira crescente as contas públicas: aumenta o contingente de idosos, portanto, de aposentados, enquanto encolhe o segmento de jovens, os que pagamos benefícios previdenciários com suas contribuições ao INSS. E isa razão dos déficits crescentes, principal motor de propulsão do aumento da dívida pública em relação ao PIB (50% no primeiro governo Dilma, principal responsável, junto com Lula, pelo descontrole das contas, e hoje próximo dos 80%, em elevação).

Mas as reformas não se resumem à Previdência. Ela constrói as fundações do equilíbrio fiscal, mas este depende de outros ajustes. As mudanças na seguridade são cruciais para melhorar as expectativas, tão logo sejam sancionadas. Mas seus efeitos são de médio a longo prazos. Se não forem seguidas de outras ações, o tão buscado ajuste ficará muito distante. O próprio teto constitucional dos gastos deverá ser rompido no ano que vem.

Mecanismos de indexação do Orçamento, por exemplo, precisam ser desativados ou recalibrados. Por feliz coincidência, a fórmula de cálculo do salário mínimo, que norteia a evolução das despesas previdenciárias e de assistência social —a maior parcela dos gastos —, expirou no ano passado, e o governo precisa apresentar outra. A regra considerava a inflação do ano anterior (INPC) mais a variação do PIB de dois anos atrás. Foi esta fórmula que lançou despesas nas alturas, mesmo quando o país estava em grave recessão (2015/ 16), e com inevitável que da nas receitas tributárias. Conjugação que leva, de maneira infalível, à explosão da dívida pública. Elevou.

Ditadura: horror e humor

Amir Labaki* / Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Dois documentários se empenham em pesquisar dimensões distintas do regime militar brasileiro. “Tá Rindo de Que?” recupera estratégia do humorismo durante o período; já “Pastor Cláudio” traz o depoimento de um ex-agente do sistema de repressão

Com o intervalo de duas semanas, alcançam as telas dois documentários empenhados em pesquisar dimensões distintas da ditadura militar vigente no Brasil entre 1964 e 1985. Já em cartaz, "Tá Rindo de Quê?", de Cláudio Manoel, Álvaro Campos e Alê Braga, recupera fases e estratégias diversas do humorismo profissional durante aquelas duas décadas. Em "Pastor Cláudio", de Beth Formaggini, que estreia na quinta-feira, o depoimento sereno e arrependido de um ex-agente do sistema de repressão da ditadura militar detalha métodos e episódios da violência de Estado.

Estruturado a partir de entrevistas e materiais de arquivo, "Tá Rindo de Quê?" concentra-se principalmente em criações humorísticas para a imprensa e para televisão, com certa liberdade cronológica. Apenas uma piscadela é dada para o teatro, com a recuperação da memória dos inícios do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, em fins dos anos 70. Outra é dada para o cinema, num quase verbete sobre as pornochanchadas.

A perspectiva é plenamente carioca, com ênfase na renovadora experiência de "O Pasquim", cujo cinquentenário se completa em junho próximo, e dos programas cômicos da Rede Globo, notadamente "Faça Humor, Não Faça a Guerra" e "Chico City". Charges de Claudius, Chico Caruso, Henfil, Jaguar, Millôr Fernandes e Ziraldo (com inexplicável ausência do gaúcho Luis Fernando Veríssimo) vencem o pedágio do tempo, mantendo-se hilárias até hoje. Igual vitalidade histriônica reencontra-se em quadros protagonizados por nossos reis da comédia televisiva, Agildo Ribeiro, Chico Anysio, Jô Soares e Renato Aragão à frente, com Ronald Golias sendo mais citado do que efetivamente rememorado.

Desses, o único depoimento inédito é o de Ribeiro, pouco antes de sua morte, em abril do ano passado. Retraça-se a curva histórica do humor na TV principalmente com as certeiras lembranças de José Bonifácio de Oliveira, o Boni todo-poderoso da TV Globo no período, e do diretor Daniel Filho. Para além da história da emissora, destacam-se as recordações de Carlos Alberto de Nóbrega sobre as históricas "A Família Trapo", da TV Record; e "A Praça É Nossa", do SBT, herdeira da "Praça de Alegria" criada em 1957 por seu pai, Manuel de Nóbrega.

"Pastor Cláudio" representa uma experiência fílmica em outro polo. Num estúdio preto, iluminado por projeções gráficas e audiovisuais, o atual pastor evangélico e ex-delegado da Polícia Civil do Espírito Santo Cláudio Guerra empunha uma Bíblia enquanto responde às perguntas do psicólogo Eduardo Passos, ligado aos movimentos em defesa dos direitos humanos.

O roteiro da entrevista busca sintetizar e desenvolver as macabras revelações feitas por Guerra a partir do início desta década. As principais encontram-se em seu depoimento ao livro "Memórias de Uma Guerra Suja" (Topbooks, 2012), de Rogério Medeiros e Marcelo Netto, à Comissão Nacional da Verdade (2012-2015) e ao jornalista Alberto Dines, em duas participações no Observatório da Imprensa na TV Brasil.

Logo compreende-se a referência por Dines à "banalidade do mal" captada por Hannah Arendt durante o julgamento em 1961 do nazista Adolf Eichmann (1906-1962). Guerra discorre com tranquilidade sobre as execuções e cremações de corpos de militantes de esquerda, armada ou não, que pessoalmente realizou na década de 70.

"Era impessoal", "não sentia nada", "minha bandeira era cumprir ordens", afirma. "Eu nunca participei de tortura", busca modular. "Eu falo em primeira pessoa", frisa para corroborar a veracidade de suas respostas.

Cláudio Guerra desfia nomes, patentes, endereços e datas. Para demonstrar a lógica do sistema de violência do Estado durante o regime militar, esclarece episódios como as execuções de lideranças do PCB na chamada Operação Radar entre 1974 e 1975, o assassinato da estilista Zuzu Angel em 1976, os atentados contra a sede da OAB no Rio em 1980 e, no ano seguinte, contra o Riocentro por opositores à abertura democrática de dentro do próprio regime.

Em seu ascetismo estético, "Pastor Cláudio" potencializa o impacto de um testemunho direto sobre a face mais odiosa da ditadura militar de 1964. Mesmo com sua irregularidade, "Tá Rindo de Quê?" abre veredas e comprova, como defendia Orwell, que fazer rir é coisa séria. Antes que se reescreva a história, é preciso escrevê-la. Ou filmá-la.

*Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.

Carlos Drummond de Andrade: Acordar, Viver

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.

Paulinho da Viola: Foi um Rio que passou em minha vida -