quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A raça como pano de fundo


Merval Pereira -
DEU EM O GLOBO

Embora as pesquisas de opinião revelem até agora que o candidato democrata Barack Obama está recebendo a mesma proporção de votos do eleitorado branco que receberam John Kerry e Al Gore, indicando que a questão racial não está afetando até o momento o desempenho do partido nesta eleição, há uma preocupação excessiva dos dirigentes partidários em enfatizar o que a eleição de um candidato negro como o senador significa no processo histórico da luta pelos direitos civis. Obama é o representante mais visível de uma corrente de políticos negros pós-direitos civis, ele mesmo já se classificou como pós-racial, mas o fato é que a questão racial está subjacente em todos os principais discursos e nos principais pronunciamentos nestes primeiros dias da convenção democrata.

A questão racial é tão delicada para os democratas que também eles são os primeiros a apontá-la como uma das responsáveis pela queda na popularidade de Obama, numa acusação velada ao reacionarismo de certa parte do eleitorado americano. Como se a insegurança quanto à experiência de Obama para liderar o país não fosse a principal razão da indecisão dos eleitores.

Até mesmo a dissidência explícita instalada na base dos militantes democratas que apóiam a senadora Hillary Clinton é atribuída a uma faixa específica de eleitores: a classe média baixa de trabalhadores brancos.

Como os eleitores negros e hispânicos democratas, nicho eleitoral dos Clinton, passaram-se quase que totalmente para o lado de Obama, a quase metade dos eleitores de Hillary que se dizem ainda contrários à candidatura do senador está localizada majoritariamente na faixa da classe média baixa branca.

Mesmo a classificação pós-direito civil, cunhada pela jornalista negra Gwen Ifill, uma estudiosa do tema, não encontra receptividade nos antigos líderes negros contemporâneos de Martin Luther King, como o reverendo Joseph Lowery, de 86 anos, que se espantou quando ouviu a designação pela primeira vez.

Outro representante dessa onda de jovens líderes negros, intelectuais formados nas melhores universidades do país, do qual Obama é o líder, é o senador pelo Colorado Peter C. Groff, doutor em Direito e políticas públicas.

Em uma entrevista no primeiro dia de convenção, ele não parou de destacar a importância de eleger Obama e, dentre outras virtudes, citou o fato de que crianças negras se veriam refletidas no presidente dos Estados Unidos, "uma pessoa como eu", e teriam a certeza de que elas também poderiam alcançar qualquer sonho.

O discurso de Michelle Obama, por exemplo, na primeira noite da convenção, teve a clara preocupação de tranqüilizar os eleitores que a vêem como a parte mais radical da família. Ao contrário de Obama, que trabalha com o conceito de pós-direitos civis, Michelle era vista até a noite de segunda-feira como uma militante radical dos direitos civis dos negros.

Não foi à toa que a capa polêmica da revista "The New Yorker", a pretexto de ressaltar as idiossincrasias contra a candidatura Obama, retratou-a como uma guerrilheira, com o cabelo black power dos anos 60.

Assumindo o papel de mulher amorosa, mãe carinhosa, filha dedicada e irmã agradecida, Michelle Obama, num discurso com tons demagógicos que agradou ao americano médio, lustrou sua imagem, arranhada desde o dia em que disse que somente com as primeiras vitórias de Obama nas primárias teve orgulho de ser americana. Por isso ontem ela sublinhou a frase "eu amo este país".

O discurso dela foi todo cuidadosamente elaborado para passar a imagem de uma família unida que ocupará a Casa Branca com os valores que regem a sociedade americana.

Ela mesmo, habilmente, se referiu a dois dos principais motivos de rejeição de Barack Obama, o nome, que muitos insistem ser sinal de que é muçulmano, e a origem: "O que me impressionou logo que conheci Obama foi que mesmo que ele tivesse esse nome engraçado, e mesmo que tivesse sido criado do outro lado do continente, no Havaí, sua família era muito parecida com a minha".

Também teve a preocupação de ressaltar a origem operária do pai, na verdade um funcionário público, e os valores do trabalho duro e da dignidade que regem a vida da família Obama, que seria a encarnação do "sonho americano", que permite a ascensão social dos que trabalham duro e se dedicam, agora incluídos os negros.

Michelle arranjou um jeito habilidoso de homenagear tanto Hillary Clinton quanto a si mesma quando lembrou que a convenção coroava a determinação dos que lideraram as lutas anteriores, como o 88º aniversário do direito de voto das mulheres; e também seu marido, o primeiro candidato negro à Presidência dos Estados Unidos.

Fez isso ao relembrar os 45 anos "daquele dia de verão quente onde Dr. King elevou nossos anseios e nossos corações com o sonho para nossa nação. Eu estou aqui hoje como uma conseqüência dessa história, sabendo que meu pedaço do sonho americano é uma bênção duramente conseguida por aqueles que vieram antes de nós".

Os organizadores do show de auditório em que se transformou a convenção democrata só não precisavam ter exagerado na dose, encerrando a apresentação da candidata a primeira-dama com a música "Isn't she lovely", numa ação de marketing político mais explícito que todas as anteriores.

Já que os adesivos colocam a eleição de Obama como uma continuidade da dinastia dos Kennedy, nada mais claro que a intenção de transformar Michelle Obama em uma Jaqueline Kennedy pós-moderna e pós-racial.

Desde a tenra infância


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Candidato oficial do PSDB à Prefeitura de São Paulo, Geraldo Alckmin em geral deixa que digam, que pensem e que falem à vontade sobre as suas - segundo ele, supostas - divergências com José Serra, seu sucessor no Palácio dos Bandeirantes.

Alckmin se diz acostumado à ação “dos adversários” (quais? “Gerais”, desconversa) empenhados em fomentar a intriga entre os dois só pelo prazer de ver o tempo fechar na seara tucana, sem saber que conversam toda semana, “pessoalmente ou por telefone”.

Mas se sente muito injustiçado, e na obrigação de se manifestar, quando vê suas críticas de campanha às carências da cidade traduzidas como um atestado de maus antecedentes administrativos ao governador - artífice e comandante da gestão municipal há quase quatro anos em curso.

Pior ainda é ver escrito que a aflição pela reconquista de uma boa posição nas pesquisas o fez sair do figurino zen e partir para a ofensiva interna ao ponto de subtrair credenciais do candidato mais bem posicionado para a eleição presidencial no próprio partido.

“Alckmin abandona o ar de moço bom e diz ao eleitor que Serra é mau gestor?”, repete a frase que o infelicitou de fato na análise da véspera sobre os recentes programas do horário gratuito cheios de referências ao que “falta” em São Paulo: vagas em creches, escolas, hospitais, iluminação nas ruas, moradias populares, médicos e “ônibus modernos de norte a sul, de leste a oeste”.

De acordo com Geraldo Alckmin isso nem de longe pode ser visto como crítica à administração municipal, “muito menos” aos atributos gerenciais de José Serra, o “candidato natural” do PSDB à Presidência da República, beneficiário direto de eventual vitória do partido na conquista da prefeitura. “Sairá fortalecido e terá o meu apoio.”

A fim de evitar mal entendido: Alckmin não condiciona o apoio lá à sua vitória cá. Está com Serra, como já esteve na eleição “difícil” de 2004 em que, lembra bem disso, pôs seu prestígio de então governador a serviço da campanha do então ex-candidato à Presidência derrotado por Lula dois anos antes.

Reparada a iniqüidade, vamos ao fato: se não é crítica à atual administração, o destaque às carências municipais é o quê?

“Um exercício natural do contraponto de idéias”, sem o qual, argumenta Alckmin, “é impossível fazer uma campanha”. Deixemos de lado a disposição anterior de falar “só do futuro” e prossigamos.

Para o candidato do PSDB é preciso ver com naturalidade essa posição que, na versão dele, é uma “abordagem dos problemas de São Paulo”, muito mais rigorosa para com os antecessores da gestão tucana na prefeitura.

“O que eu quero ressaltar, e fiz isso no confronto direto com a Marta (Suplicy) no debate da Bandeirantes, é que o Serra recebeu a prefeitura em péssima situação. Por isso ganhou a eleição, fez muito, mas estamos numa corrida de revezamento, cada um cumpre uma etapa.”

E esta, “com todo reconhecimento à legitimidade das demais candidaturas”, Alckmin acha que cabe a ele cumprir inclusive para ajudar o PSDB a vencer suas “fragilidades” nas regiões metropolitanas.

Cita o exemplo da estratégia do PT, que domina as grandes cidades no entorno da capital: Guarulhos, Osasco, Campinas e Santo André.

Mas, com todo o reconhecimento à possibilidade de viradas no meio do jogo, a situação não estaria periclitante demais para que dois candidatos do mesmo campo político ainda briguem entre si?

Alckmin discorda das premissas. Não acha que o quadro esteja tão risonho e franco assim para o PT - “no segundo turno, a rejeição vai dificultar muito a vida da Marta” - e, portanto, não se rende aos números. “Temos apenas algumas oscilações nas pesquisas.”

Não enxerga sinal de briga com Gilberto Kassab - “o adversário a ser combatido é o PT, o DEM é um aliado” - e, depois de reiteradas tentativas de mudar de assunto para não entrar nas questões internas do PSDB, concede no máximo um pequeno espaço no muro: “Partido grande é assim mesmo”.

“Assim”, como, como “assim”?

Talvez valesse a pena o próprio partido tentar uma boa tradução para o termo antes de se apresentar “assim” - conflagrado, mas dissimulado - para pedir ao eleitorado que lhe abra de novo as portas do Palácio do Planalto.

São Tomé

A decisão do Judiciário ao proibir o nepotismo até o terceiro grau de parentela no serviço público, celebrada no discurso, corre o sério risco de ficar relegada ao campo das boas intenções.

Raríssimos os que tiveram coragem de criticar, mas pouquíssimos também os agentes de poder que disseram exatamente como pretendem executar a determinação.

Ao contrário, o que se vê são tentativas de abrir trilhas de desvio aproveitando brechas de lei e entroncamentos da máquina pública. E, depois, é como dizia um deputado ontem no jornal: se o poderoso resolver não demitir, quem vai tirar o parente do gabinete, a polícia?

Ciro se finge de morto


Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE: Nas Entrelinhas

A existência de pelo menos duas candidaturas governistas na sucessão do presidente Lula ainda é o cenário mais provável


O deputado Ciro Gomes (PSB-CE) não jogou a toalha. Não está dado que o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, que preside o PSB, tenha a intenção de privar Ciro da legenda de candidato à presidente da República para forçá-lo a aceitar a vice na chapa encabeçada pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT), nas eleições de 2010, como gostaria o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ciro está engolindo os sapos que cruzam seu caminho exatamente porque pretende ser candidato sem o apoio do PT.

Fragmentação

Para o secretário-geral do PSB, senador Renato Casagrande (ES), a existência de pelo menos duas candidaturas governistas na sucessão do presidente Lula ainda é o cenário mais provável: Dilma tem o apoio de Lula, mas Ciro ainda é o nome mais competitivo. Dificilmente, porém, teria o apoio do PT. Ainda mais agora, depois do confronto aberto com a prefeita de Fortaleza, Luizianne Lins (PT), candidata à reeleição. O socialista apóia sua ex-mulher, a senadora Patrícia Saboya (PDT), que também concorre à prefeitura local.

O descolamento do PCdoB da candidatura de Ciro, desde que o presidente da legenda, Renato Rabelo, propôs a reunificação da base governista em torno de Dilma, não significa que esse objetivo seja facilmente alcançado. A proposta tem racionalidade, mas por ora a indicação de Ciro para vice é apenas um desejo dos comunistas para evitar uma escolha de Sofia.

A cúpula do PSB, por enquanto, pensa diferente. “A experiência mostra que a candidatura própria favorece o fortalecimento da legenda, principalmente a eleição dos deputados federais”, explica Casagrande, referindo-se à candidatura do ex-governador fluminense Anthony Garotinho em 2002.

A tendência do presidente Lula é escolher um vice do PMDB, cujo peso na coalizão de governo tende a aumentar com a indicação do Michel Temer, presidente da legenda, para o comando da Câmara dos Deputados. Caso isso ocorra, a candidatura de Ciro se tornaria uma necessidade para outros aliados da base governista. Ao mesmo tempo, não impediria que a coalizão se reagrupasse no segundo turno.

São Paulo

Apesar da divisão entre os governistas, a situação da oposição não é nada boa e pode piorar ainda mais. O confronto entre o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) e o prefeito Gilberto Kassab (DEM) ameaça afogar os dois candidatos no Rio Tietê. Quem nada de braçada nas eleições de São Paulo é a ex-ministra do Turismo Marta Suplicy (PT).

O presidente Lula quer aproveitar a situação para uma investida em outros municípios paulistas importantes, como São Bernardo do Campo, onde a eleição do ex-ministro da Previdência Luiz Marinho virou uma questão de honra. Seu objetivo é impedir que o governador José Serra (PSDB) se lance candidato com uma vantagem robusta em São Paulo. Uma vitória de Marta, então, poderia sepultar a candidatura presidencial de Serra, ainda mais num ambiente macroeconômico favorável ao governo, com a inflação sob controle e uma taxa de crescimento do PIB mais modesta, porém razoável. Para o tucano, nesse cenário, seria mais prudente disputar a reeleição ao governo paulista.

Um balanço preliminar mostra que o governo vai melhor do que as expectativas nas eleições municipais, inclusive nas capitais do Sul e Sudeste. Não é apenas porque os candidatos governistas surfam no prestígio de Lula. Na verdade, eles surfam muito mais nas realizações dos governos aos quais estão ligados (em todos os níveis) e nas facilidades para arrecadar recursos.

Começou a eleição

Marcos Coimbra
Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
DEU NO ESTADO DE MINAS

"É, então, perfeitamente possível que, com pouquíssimos dias de propaganda eleitoral, tenhamos cenários novos e que parecem surpreendentes, mesmo que já fossem antecipados por quem acompanha esses processos"

Até os melhores analistas na imprensa têm dificuldade de explicar o que acontece em uma eleição quando se inicia a propaganda eleitoral nos meios de comunicação de massa. Como quase todos se formaram na escola da imprensa escrita, pode ser que ela decorra de sua natural relutância em admitir que a maioria do eleitorado é pouco afetada pelo noticiário dos veículos onde trabalham.

Só quando chega à televisão e, secundariamente, ao rádio, é que a eleição começa para as pessoas que não lêem com regularidade os jornais diários. Elas são cerca de 90% do universo de eleitores, sendo que os que buscam habitualmente as seções dedicadas à política ficam mais perto de 5%. Somados aos leitores não habituais, chegamos, no máximo, talvez a 25% ou 30% do total.

Essa parcela é a mesma que consome a informação política veiculada no jornalismo das emissoras de televisão e de rádio. O conjunto de espectadores e ouvintes de sua programação jornalística é certamente maior, mas o desinteresse da maior parte faz com que a absorção seja pequena. Ficam na frente da televisão, mas pouco atentos aos momentos em que se fala de política.

Tomando como base pesquisas recentes da Vox Populi em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, podemos dizer que quem se interessa “muito” por política representa, neste momento, cerca de 15% do eleitorado das grandes cidades, enquanto que os que se interessam “mais ou menos” são perto de 30% do total. A outra metade se divide em duas partes: os que se interessam “um pouco” e os que “não têm qualquer interesse”, sendo os primeiros cerca de 20% e os segundos os 35% finais.

Cada um desses estratos reage à sua maneira ao fluxo de informações do processo eleitoral. Mas há uma semelhança entre os dois extremos, que nem sempre imaginamos.

Tanto quem tem muito, como quem não tem nenhum interesse tende a ser pouco afetado pela nova informação. Uns, por já terem tanta que a nova provoca pouca mudança. Costumam fazer cedo suas escolhas e chegam à altura em que estamos do processo eleitoral com posições definidas. Os outros, por seu interesse ser tão pequeno que nem a mídia eletrônica os atinge, a não ser muito tarde.

Nos dois estratos intermediários, novas informações provocam efeitos que podem ser espetaculares, conforme as condições políticas da eleição. Como são, na maioria das vezes, pessoas com limitada bagagem de informação e que não costumam exigir grandes detalhes (até por não terem suficiente interesse), um mínimo pode ser suficiente para motivá-las. Dois ou três fatos relevantes são bastantes para fazer com que se inclinem para cá ou para lá. Se, além disso, essa informação lhes chegar em volume significativo, podemos ter mudanças drásticas, “da noite para o dia”, nas intenções de voto.

É, então, perfeitamente possível que, com pouquíssimos dias de propaganda eleitoral, tenhamos cenários novos e que parecem surpreendentes, mesmo que já fossem antecipados por quem acompanha esses processos.

É o que está acontecendo em Belo Horizonte, por exemplo, pelo que deixam evidente as primeiras pesquisas divulgadas pós-TV. A candidatura de Marcio Lacerda, o candidato que Aécio e o prefeito Fernando Pimentel apóiam, cresceu 15%, segundo dados da última pesquisa, em apenas dois dias de veiculação da propaganda eleitoral.

Com isso, nem bem começou a eleição, alcançou o primeiro lugar.

Fenômeno brasileiro, que ilustra nosso subdesenvolvimento político? Não, nossos eleitores não são diferentes dos que temos em outras democracias, incluindo as mais tradicionais e avançadas.

É assim que as coisas são: há quem goste e quem não goste de política, há quem sabe muito e exige muito em matéria de informação e quem se contenta com menos. Nas democracias, existem diversos tipos de eleitor e nenhum é melhor que outro.

Garibaldi foi à forra


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL


Conheço o senador Garibaldi Alves, presidente do Senado, desde menino, do tempo em que seu tio, o então governador do Rio Grande do Norte, Aluísio Alves, revolucionava os caducos modelos tradicionais de campanha eleitoral, com a criatividade, a garra e talento que pavimentou a caminhada do mais moço deputado federal pela UDN na Constituinte de 46 na ascensão fulminante ao plano federal.

Correligionário do cacique da UDN, senador e governador Dinarte Mariz e seu adversário nas cambalhotas da contradição da política estadual, para a reconciliação ao seu chamado, à véspera da morte, com a nobre justificativa de que não desejava deixar para os filhos a herança dos ódios provincianos, Aluisio Alves também morreu no ostracismo, para a surpreendente consagração popular que há dois anos foi para a rua e acompanhou o cortejo até o cemitério, com as bandeiras verdes catadas do fundo dos baús.

O caminhão do povo da campanha de Carlos Lacerda e Afonso Arinos, que foi a grande novidade que percorreu todos os roteiros da então capital, com a população nas ruas ou nas janelas, parando para os comícios relâmpagos nas praças foi importado do Rio Grande do Norte.

No jovem tímido e discreto sobrinho de Aluísio – filho do seu irmão Garibaldi que foi deputado estadual – não se antevia a carreira política metódica, degrau por degrau, de deputado estadual, passando pela Prefeitura de Natal, com o brinde da reeleição e o governo do Estado, em administração marcada pelas obras de irrigação das áreas maltratadas pela seca.

O senador pagou a sua cota da estréia federal no Senado. E, na mesma toada sem a aflição da urgência, esperou a hora e a vez da eleição para presidência da Casa num dos períodos de mais baixa estima do Legislativo, esburacado pelos escândalos em cascata das mordomias, das vantagens e mutretas, como a indecorosa verba indenizatória de R$ 15 mil mensais para o ressarcimento das despesas de deputados e senadores nos fins de semana nas bases eleitorais ou do despudor da verba de R$ 61 mil por mês para contratar assessores para os gabinetes individuais de suas excelências.

O castigo tardou, mas chega em doses duplas. O Congresso que não legisla, imprensado entre a madraçaria da semana de três dias úteis e com a pauta entupida pelas medidas provisórias encaminhadas pelo governo de goela insaciável, está sendo exemplado como menino desobediente, com a ousadia do Supremo Tribunal Federal (STF) que invade a sua área para marcar o gol de placa ao proibir a praga do nepotismo que empesteia os três poderes.

Com a cara no chão, a Câmara e o Senado tratam de sair do castigo prometendo não reincidir num dos nossos mais antigos vícios, com raízes na carta de Pero Vaz Caminha.

Na Câmara, o embaraçado presidente, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) sai da reta, transferindo para os deputados o dever de casa de despedir a parentela encarrapitada nos galhos das nomeações sem passar pelos concursos. E, no Senado, do presidente Garibaldi Alves, por enquanto, os senadores serão advertidos para o cumprimento da súmula do STF.

Nos porões do baixo clero, com o constrangido apoio da maioria, germinou a luminosa saída por baixo do pano do circo, da criação de cotas para a contratação de parentes.

Antes de ser coberto pelo entulho, o presidente do Senado reagiu com o giro da metralhadora: qualificou de ridícula a maroteira das cotas para a contratação de parentes; reconheceu que o Legislativo vive "uma situação tensa" e com a sua omissão, o Judiciário "está realmente legislando" e comparou as Medidas Provisórias aos decretos-leis criados pelos militares durante a ditadura dos generais-presidentes.

O espírito de Aluísio Alves encarnou no sobrinho presidente de Senado.

Tomara que seja um obesessor que gruda no cangote e não larga o obsedante.

O retorno da nação


Walquiria Domingues Leão Rego
DEU NO VALOR ECONÔMICO


"Para re-despertarmos como Nação, devemos nos envergonhar de nosso estado presente. Renovar tudo e nos autocriticar." - Giacomo Leopardi

Há décadas ouvimos um coro muito afinado entoando em todo o mundo um canto de morte. Suas vozes em uníssono pregavam, nos poderosos meios de comunicação e de persuasão coletiva, a obsolescência de instituições fundadoras da modernidade como o Estado nacional e a cidadania. Nesse cortejo fúnebre se enterrava também a política democrática como língua unificante das demandas por direitos universais de cidadania, pelo reconhecimento das diferenças e pelas exigências de civilização dos conflitos. Dos seus impulsos igualitaristas nasceram e se desenvolveram nações mais universalistas, mais democráticas. Sepultá-la é substitui-la pela apatia cívica e pelo cancelamento de uma de suas dimensões mais importantes: a de fornecedora de medidas e de sentido ao poder e às lutas pelo poder no âmbito das comunidades nacionais.

Emergiu deste processo de silenciamento das conquistas civilizatórias da modernidade uma velha gramática moral e política, congênere aos processos de desregulamentação dos mercados e do conseqüente fim das funções públicas do Estado. O "novo" léxico, ao valorizar o indivíduo maximizador do auto-interesse, liquidava normativamente qualquer pacto de solidariedade entre as gerações para a fruição de direitos, e nas dobras deste processo se esvaziava a democracia como forma e método de resolução das contendas entre os diferentes grupos sociais. Na seqüência desta naturalização da vida social, as iniqüidades distributivas ganhavam cada vez mais o status de fenômenos inevitáveis e necessários ao desembarque do país à modernidade.

Um receituário político-econômico homogeneizador, uniforme na abstração vazia de qualquer diferença de tradições políticas e culturais individualizadoras dos povos, espalhou-se pelo mundo como fogo ao vento, concretizando-se em políticas privatizantes dos bens públicos. Seu liquidacionismo do patrimônio público se autoproclamou na verdadeira "reform proper" ao impor suas regras e valores, oriundos de particularíssimos interesses, como elementos de validade universal, porque sintonizados com a ordem natural do mundo. Regredíamos, por grosseira operação ideológica e política, a certo essencialismo medieval no qual a natureza toma o lugar da história. Os indivíduos nus, destituídos de direitos e de humanidade, tema da crítica de Marx ao capitalismo, se restauravam como pressuposto moral de justificação pública do desmantelamento de qualquer idéia de bem comum e de ética coletiva.

Entre nós, um conhecido economista chegou a escrever: "Chega de compaixão!". Disse isso a propósito da defesa do fim da previdência pública para os velhos pobres que não contribuíram para suas aposentadorias. Como quase sempre viveram à margem da regulamentação do trabalho, não pagaram por ela. Logo, não deveriam ter direitos previdenciários! Queria, além de cancelar uma prerrogativa constitucional, expulsá-los da humanidade.

O resgate do Estado é percebido como o único modo da maioria não submergir destroçada às forças destrutivas da globalização

A idéia de nação como força política e de país como arena política de disputas de projetos de convivência cívica, entre eles, o aprofundamento da cidadania democrática, foi abolida como excrescência histórica. Afinal, por que invocar este anacronismo se havia desaparecido, arrastada e destruída nas suas estruturas de sentimentos e necessidades, pelo turbilhão incontrolável da globalização? Nesse ardil retórico, os coveiros da comunidade nacional silenciavam ainda mais sobre os deveres do Estado para com ela, e, na mesma operação ideológica, ocultavam o verdadeiro modus operandi da dominação social no seu interior.

Os poderes econômicos hegemônicos e seus funcionários ideológicos prescreviam liberdade absoluta de movimentos. Sua "racionalidade" não podia suportar nenhum limite, nenhum controle social, ao contrário, clamavam abertamente o exercício despótico de seu poder.

A conseqüência mais visível e mais dramática desse constructo e desse agir político foi o enfraquecimento do cidadão, personagem tardio na terra brasilis. Substituíram-no por mero consumidor de serviços privados. Suas prerrogativas representavam ataque à "liberdade", normativamente associada à mercantilização absoluta da vida. Contudo, a "força das coisas" trouxe à tona, com evidências empíricas, a urgência de ressuscitar "os mortos sem sepultura". Hoje se debate e se pesquisa mundo afora a necessidade de recuperar o Estado como categoria analítica e como realidade indispensável de protagonista distributivo e agência de reconhecimento de direitos civis, culturais e sociais. Este resgate é percebido como o único modo da maioria não submergir destroçada às forças destrutivas existentes no processo da globalização.

Restaura-se a nação como força politica agregadora e formadora de cidadãos democráticos dotados de lealdades aos métodos da democracia para a resolução de seus conflitos de interesses. Restaura-se a nação ao menos como comunidade transversal, no dizer do indiano Partha Chatterjee, equipada moral e politicamente para implementar padrões igualitários de integração social, fundados no aprofundamento da esfera pública republicana. Nesse sentido fator decisivo de democratização da nossa frágil democracia.

Se o Brasil como nação não colocar fortemente a extensão profunda e ampla da cidadania como coração de sua agenda democrática e de desenvolvimento econômico, perpetuará sua condição de nação partida, como no romance Sybil do conservador inglês Benjamin Disraeli: "Duas nações entre as quais não há nenhuma comunicação nem simpatia: que são ignorantes dos hábitos, pensamentos e sentimentos uma da outra como se morassem em regiões diferentes, ou como se fossem habitantes de planetas distintos, formados por raças diferentes, alimentados por comidas diversas, ordenados de maneiras diferentes, e não fossem governados pelas mesmas leis".

Walquiria Domingues Leão Rego é professora titular do Departamento de Ciência Política do IFCH-Unicamp.

Emprego e felicidade


José de Souza Martins*
DEU EM O SÃO PAULO


Todos os dias somos bombardeados com estatísticas e números por meio dos quais os que os divulgam tentam nos convencer de que, sejam bons ou sejam ruins, esses números são sinais de que ou as coisas vão muito bem ou não vão tão mal quanto poderiam ir. Portanto, os dados da interpretação manipulativa devem nos deixar tranqüilos e sem medo de ser felizes. O número subinformado é hoje um dos grandes problemas na formação da opinião pública e uma das grandes armadilhas para a liberdade de pensamento. Embora estudos sérios sugiram que a economia brasileira vai crescer à média anual de pouco mais de 3% nos próximos 15 anos (quando deveria crescer 6% ao ano para criar alguma melhora nas condições sociais da população), conforme uma conferência que ouvi nesta semana, na USP, os dados fragmentários que a mídia, os técnicos e o governo nos apresentam no dia a dia nunca nos permitem perceber claramente a situação adversa e sem perspectiva em que nos encontramos.

Nesse cenário, uma das mais incômodas informações estatísticas é relativa ao emprego e ao desemprego. É sempre do tipo "é o menor índice de desemprego dos últimos anos", mas nada nos é dito sobre o fato de que continua alto o desemprego e o subemprego e que milhões de brasileiros estão desempregados ou empregados precariamente. Dados do Dieese mostram que, em 2005, se no total da população com mais de 16 anos de idade a proporção de desempregados nas áreas metropolitanas do país era de 23,8%, na faixa de 16 a 24 anos era de 45,5%. É um número desalentador, se levarmos em conta que para uma pessoa de 50 anos de idade, o impacto do desemprego, ainda que doloroso, é significativamente menor do que num jovem de 24 anos idade. Pois, nessa idade, estará ele pensando em constituir família e em decidir o destino. Chegar a essa idade e não ter ainda conseguido um emprego estável significa anular sonhos e esperanças não só no plano material, mas sobretudo no plano afetivo.

Mesmo em relação aos que estão empregados, nessa faixa de idade, a difusão de otimistas estatísticas de emprego pressupõe que o mero emprego já é um indicador de felicidade. Não temos estatísticas sobre a relação entre emprego e prazer no trabalho. Se as tivéssemos teríamos condições de juntar aos infelizes por desemprego os infelizes por emprego incompatível com a competência e a necessidade de prazer e realização pessoal no trabalho. Porque seu corpo estaria empregado, mas não o seu coração e a sua mente.

*Professor titular de Sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Dentre outros livros é autor de O Sujeito Oculto (Ordem e transgressão na reforma agrária), Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003; Exclusão Social e a Nova Desigualdade, 3a. edição, Paulus, 2007; A Sociedade Vista do Abismo (Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais), 2ª edição, Vozes, 2003.

O Mistério do Samba é a riqueza da pobreza


Arnaldo Jabor
DEU EM O GLOBO (26/8/2008
)

Eu sou um pobre homem da Rua Guimarães, hoje Almirante Ari Parreiras, ali no Rocha. E sempre me lembrava do ritmo dos subúrbios do Rio, dos tempos mortos, dos terrenos baldios de capim, das valas, das casinhas geminadas, das mangueiras, de um passado que parecia se mover em câmera lenta, em que os dias eram divididos em manhãs, plena luz, entardecer e noites mais escuras e mais estreladas.

Esta semana reencontrei meu passado infantil, pelas mãos de minha filha Carolina. Isso. Fui ver, com temor e dúvida, o documentário O Mistério do Samba, produzido pela Conspiração Filmes, patrocinado pela poética empresa Natura, sob a inspiração de Marisa Monte e dirigido por Carolina Jabor, minha filha ("uh hu hu h u!") e Lula Buarque de Hollanda. E caí para trás. Não porque ela seja minha filha, nem porque conheço o talento de Lula desde pequeno, nem porque vi a Marisa estrear ainda menina, não; o filme é excepcional. Digo isso sem tremor de nepotismo explícito. É um grande barato, um dos melhores documentos poéticos que tenho visto no País.

Filmado durante dez anos, produtores e diretores acompanharam a vida e a arte dos sambistas da Velha Guarda da Portela e mostram, com carinho e respeito, o mistério do nascimento do samba. Registraram o que sobrou de 1926, da antiga "Vai como Pode" - as personagens que participaram do parto do samba, como se filmassem a nascente, o olho d?água do grande "rio que passou em nossa vida e levou nosso coração". Sim, porque aqueles homens e mulheres ali, muitos com mais de 80 anos, estavam no início da misteriosa música riquíssima que a pobreza fez, com seus operários, vendedores de rua, carpinteiros, contínuos, lavadores de carro.

Hoje, o morro, os subúrbios nos preocupam como berços de violência, tráfico, balas perdidas... mas este filme (as platéias aplaudem de pé dançando ao final) recupera a delicadeza minimalista das letras e melodias de 50, 60 anos atrás, a riqueza da pobreza, a música feita com a simplicidade do pão, da comida, dos amores baldios, da cerveja, do apito do trem passando. Os sambas da velha-guarda salvaram suas vidas. Que seria deles se não cantassem?

Não é um filme sobre o passado; é sobre um presente que nascia. Não é um filme de lamento sobre alguma coisa acabada, mas sobre a vitalidade que tem de continuar, que resiste nos subúrbios, apesar da violência da indústria cultural de massas e da boçalidade dos pagodes de jabás e de boquinhas de garrafa ou axés de multidões burras. No filme estão todos os grandes artistas: o espírito de Manacea, Jair do Cavaquinho, Argemiro Patrocínio, Casquinha, Monarco, o filho mais moço Paulinho da Viola, protegidos por Tia Surica e Tia Doca, nele está Zeca Pagodinho, preservando em corpo e alma o espírito desse tempo, hoje. A Portela aparece nas pequenas coisas: sapatos brancos e pretos, as mãos gastas, os rostos comidos pelo tempo, mas vivos de alegria, os pés descalços, os retratos na parede, a comida, as cervejas, os cavaquinhos e pandeiros.

Há uma cena em que Zeca conta uma das farras na casa de Argemiro Patrocínio. É incrível como sua pronúncia arrastada e esperta, seus gestos matreiros, as pausas, as elipses de sua fala narram o vaivém da malandragem, do cafajestismo poético, um delicado e amoroso machismo, a fala no ritmo de letra de samba. O filme preserva o modo de vida suburbano do Rio, seus homens e mulheres criando arte, com a sabedoria calma que só a desesperança traz.

Como diz o Zuenir no jornal: "um emocionante documento sobre o enigma que envolve a criação artística, como pessoas sem condições materiais são capazes de produzir tantas obras geniais..." Este filme nos evoca na hora o Buena Vista Social Club. Mas acho que o filme de Wim Wenders é maravilhoso na música dos grandes esquecidos que havia em Cuba, como Compay Segundo, Rubem Gonzalez e Ibrahim Ferrer, principalmente pela direção musical de Ry Cooder, mas a cinematografia de Wim, considero mediana e inferior à deste filme, no qual a montagem por associação livre e analogia forma um conjunto com significação poética, além do registro cultural. O Mistério do Samba não lamenta, não evoca, não chora por um passado, e, principalmente, não denuncia. Na cabeça da gente, documentário é para denunciar tragédias ou dramas vivos. Até pode, em documentários essenciais como Notícias de Uma Guerra Particular, de João Moreira Salles, mas, num país como o nosso, surge um novo tipo de documentário tendendo para a ficção, documentários que, em vez de denunciar, querem salvar realidades e fatos, como em Santiago, de João Moreira Salles, trabalhos do Eduardo Coutinho e outros. Aos poucos, as pessoas vão virando personagens, vamos nos apaixonando por elas, aos poucos o documento ganha uma poética ficcional.

Também sinto que o mundo da Portela foi ditando o próprio estilo do filme de Carolina e Lula Buarque. O filme aprendeu com os atores, a criação sem o oportunismo do sucesso, a criação pelo prazer e necessidade. O ritmo digno e lento daquelas pessoas, seus quintais, seus quartos pobres, seus botequins dando para a vida, para os trens que passam no silêncio das tardes influenciaram o estilo do trabalho. O resultado é um filme que "é". Que não é "sobre" nada; o filme nasce puro como um samba composto num daqueles botequins, na silenciosa dança do "miudinho" que tia Eunice ensina às meninas, soprando um beijo entre as mãos, como uma ave.

Ao terminar a sessão (poucas vezes vi tanto entusiasmo em platéias) me vieram duas frases à cabeça. Uma do Godard: "Todo grande filme de ficção tende para o documentário; todo grande documentário tende para a ficção. Ou seja, todos os caminhos levam a Roma, Cidade Aberta."

E a outra frase é de Marisa Monte: "Queria fazer esse filme pela certeza de que a vida ia ser melhor com esses sambas." Pois, melhorou, Marisa.

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