domingo, 24 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Em vez de gastar mais, Estado precisa saber gastar melhor

O Globo

Orçamento é aprovado com a preocupação de elevar a despesa, e não a eficiência da máquina pública

Mesmo sustentado por uma carga tributária muito além da razoável para um país emergente, o Estado brasileiro é conhecido por prestar serviços públicos de baixa qualidade. Gasta muito e gasta mal. Para o ano que vem, o Orçamento prevê uma despesa primária da União — sem considerar o pagamento de juros da dívida pública — de R$ 2,1 trilhões. Ainda assim, a meta de déficit zero orçada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não é considerada viável dentro do próprio governo. Para não falar nos gastos de estados e municípios.

Chama a atenção que, mesmo com tanto dinheiro, o Estado não preste serviço de qualidade à população. A série de reportagens “Estado eficiente”, publicada pelo GLOBO, expôs alguns aspectos que tornam o Estado disfuncional. Ele gera burocracia quando deveria facilitar a vida de cidadãos e empresas. Atua de forma débil na ajuda à Federação em áreas essenciais como saúde, segurança e educação. Ao tentar fazer de tudo — há até estatais para hemoderivados e semicondutores —, paradoxalmente deixa o brasileiro desamparado naquilo de que mais precisa. E, sem avaliação consistente das políticas públicas, cria um sem-número de ralos por onde o dinheiro público escorre sem controle.

Tome-se o exemplo dos investimentos em obras públicas. De 21 mil contratos com alguma participação de recursos federais, 40% estão parados. Há uma escalada nas paralisações. A proporção de canteiros abandonados cresceu de 29% em 2020 para 38,5% em 2023. Obras sem continuidade representam um investimento de R$ 32,2 bilhões, R$ 8,2 bilhões dos quais já pagos. O resto são recursos públicos congelados, que deixam de gerar empregos, renda e melhoria nos serviços. Puro desperdício.

Luiz Sérgio Henriques - O tempo da solidariedade

O Estado de S. Paulo

O que há de socialismo no mundo, para sair da atual posição defensiva, deve ir além da democracia política. Reelaborar, de modo laico, os valores da solidariedade próprios de todas as religiões

O dito segundo o qual todas as épocas estão a igual distância de Deus muito provavelmente já não nos serve pelo menos desde que se abriu a era atômica. Em linguagem secular, a ser verdade o dito, os tempos valem uns pelos outros, os males são aproximadamente os mesmos, as atribulações humanas essencialmente não se alteram – e beiram o absurdo. A partir de Hiroshima e Nagasaki, no entanto, passamos a carregar um peso infinitamente maior derivado da possibilidade de autodestruição do planeta e da espécie. E, agora, a aceleração vertiginosa inerente à condição pós-moderna, ou hipermoderna, acena para o fato de que a cada dia nos tornamos ainda mais perigosos para nós mesmos. Estaremos, pois, a uma distância maior de Deus.

Este é o vasto contexto no qual as chamadas grandes narrativas entraram em crise irreversível. Não há mais a ilusão de um único pensamento totalizante capaz de apreender, ainda que tendencialmente, o conjunto das determinações da realidade. O marxismo – mesmo tendo sido uma dessas extraordinárias construções totais que buscaram seguir, como sombra incômoda, a mercantilização do mundo – não existe mais como a filosofia insuperável do nosso tempo, na famosa observação de Sartre. E, apesar de ter se afirmado como potente crítica da economia, desde o princípio terá tido a lacuna de uma incompreensão substantiva da política e do Estado. Uma lacuna cheia de consequências, como se sabe.

Dorrit Harazim -Devaneios são permitidos

O Globo

Ver a Terra como ela realmente é, um pálido e lindo ponto azul flutuando num eterno silêncio, deveria ter nos aproximado mais uns dos outros

Não é que falte assunto de relevo neste final de ano — a Humanidade, mais uma vez, não caminhou rumo ao que dela era esperado. Ver a Terra como ela realmente é, um pálido e lindo ponto azul flutuando num eterno silêncio, deveria ter nos aproximado mais uns dos outros, estreitado nossa interdependência como passageiros de um mesmo mundo, confirmado a relação paradoxal entre distância espacial e proximidade emocional. Não foi bem isso que ocorreu em 2023. Mas é justamente em período de início de férias, com festejos a todo vapor e desatenção geral típica de véspera de Natal, que devaneios são permitidos — ótima oportunidade para poder divagar sobre algo impalpável, evanescente e atemporal, apenas bonito: a cor azul e nossos estados d’alma.

Wassily Kandinsky, William Gass (“On being blue”), Carl Sagan, Goethe, Maggie Nelson (“The colour blue as a lens on memory and loneliness...”), Maria Popova e Leonardo da Vinci são apenas alguns dos pintores e naturalistas, escritores, pensadores ou poetas que se debruçaram sobre essa que é chamada de “a cor da mente emprestada ao corpo, a cor da consciência quando a acariciamos”. Para a ensaísta americana Rebecca Solnit, autora de uma elegante reflexão sobre como encontrar a si mesmo no desconhecido (“Um guia para se perder”, Martins Fontes, 2022), a relação entre o azul, a melancolia e a solidão humanas está por toda parte onde há distância e desejo.

Paulo Celso Pereira* - Lula em mares nunca antes navegados

O Globo

É na esteira da inação do governo que a oposição parece começar a descobrir flancos para agir. O alvo agora é a segurança pública

Dois meses depois das eleições mais apertadas da História brasileira, e a dois dias da posse de Lula, o Banco Central divulgou seu último boletim Focus de 2022. O relatório trazia a expectativa dos principais nomes do mercado financeiro para o ano subsequente. O cenário para 2023 era nebuloso: a previsão era que o primeiro ano do governo Lula terminaria com baixo crescimento econômico, 0,8%, inflação acima do teto da meta, 5,3%, dólar batendo R$ 5,27 e taxa de juro em 12,25%.

A vida real acabou sendo bem melhor do que projetavam os operadores, majoritariamente críticos ao petista: a economia deverá crescer cerca de 3% neste ano, a inflação está dentro da meta, em 4,5%, o dólar abaixo de R$ 5, e a taxa de juros fechará o ano em 11,75%. Para completar, o desemprego caiu, e a renda média dos trabalhadores subiu.

Bernardo Mello Franco - O ano do alívio

O Globo

Desde janeiro, país tem uma ministra da Saúde que acredita na vacina, um ministro da Defesa que não ataca as urnas e um chanceler que não sonha em nos fazer párias

O ano começou mal. Sete dias depois de Lula vestir a faixa, bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes. A tentativa de golpe não visava só derrubar o governo eleito nas urnas. A extrema direita queria rasgar a Constituição e impor uma nova ditadura, sonho do capitão desde os tempos de recruta.

A intentona de 8 de janeiro fracassou. Não graças aos militares, como dizem arautos da caserna, mas apesar deles. Oficiais de alta patente protegeram um movimento ilegal, que conspirou e tentou destruir as instituições. Responsabilizá-los é tarefa necessária para consolidar a democracia.

Até aqui, o Supremo condenou 25 pessoas entre mais de 1.400 denunciados pelos atos antidemocráticos. Todos estavam na base da pirâmide do extremismo. Idealizadores e financiadores do golpe continuam impunes. A ver se serão incomodados pelo novo procurador-geral da República.

Míriam Leitão – Eventos recentes na visão dos militares

O Globo

O ano complicado, que começou com o ataque de 8 de janeiro, termina com a percepção de ameaça às instituições se dissipando, avaliam oficiais

O ano começou turbulento para a relação entre civis e militares e está terminando, na visão de alguns oficiais que ouvi nas três forças, muito melhor do que começou. Por isso, dizem que vão com tranquilidade para as comemorações que o governo prepara para o 8 de janeiro. “A democracia saiu fortalecida”, me disse um oficial superior. Os militares admitem que houve “contaminação” de parte das Forças Armadas pelas ideias do bolsonarismo, mas o mais importante, segundo eles, é não ter havido um único movimento de tropas. O Exército, afirmou um general, tem 680 estabelecimentos militares e não houve um único ato.

O que um dos oficiais me disse é que o 8 de janeiro serviu para arrefecer o ímpeto antigoverno. “Se havia alguma indignação com a eleição do presidente Lula, passou a haver reprovação ao que houve em 8 de janeiro e um arrefecimento das críticas ao presidente Lula”. A explicação é que quem levantava bandeiras contra a esquerda ficou constrangido diante da evidente ilegalidade dos atos.

Elio Gaspari - A erudição de Toffoli

O Globo

Na decisão que aliviou as multas impostas à J&F dos irmãos Batista de R$ 10,3 bilhões para R$ 3,5 bilhões, o ministro José Antonio Dias Toffoli deu-se a uma reflexão literária. Açoitou a Operação Lava- Jato comparando-a à desdita de Jean Valjean, o personagem de “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, e a Edmond Dantès, o “Conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas. São dois romances magistrais.

Na visão de Toffoli, os irmãos Joesley e Wesley Batista, como Valjean e Dantès, foram heróis vitimados por penas abusivas e violentas.

Nas suas palavras:

“Na literatura, Dantès supera seu amargo destino transformando-se no Conde de Monte Cristo, enquanto Valjean passa a reconstruir sua vida quando se vê livre, estabelecendo inesperadas relações entre diferentes tipos de miseráveis na Paris do século XIX.

A vingança iminente e nunca satisfeita em plenitude une os heróis e nos separa da literatura romântica, afinal, quando se trata de uma injustiça verídica no Brasil da Lava-Jato, é o STF quem tem cumprido a função do narrador que nos deixa a par do quão abusivo e injusto fora o processo e mitiga, na medida do que é processualmente possível, os danos desta que pode ser considerada a Operação mais abusiva de que se tem notícia sob a égide da Constituição de 1988.”

Rolf Kuntz - Sem gastança, um ano novo feliz

O Estado de S. Paulo

Gestão pública saudável pode até causar incômodo, de vez em quando, mas é uma das condições para muitos bons anos novos

Com mais empregos, melhores condições de consumo e algum alívio no endividamento, os brasileiros podem ter um Natal mais tranquilo que o do ano passado, mas um feliz ano novo ainda vai depender de Brasília, onde a tentação da gastança e da irresponsabilidade é permanente. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez cara feia quando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou a intenção de reduzir a zero o déficit primário, sem gastar mais, portanto, que o valor da arrecadação em 2024. Os programas sociais serão preservados, prometeu o ministro. A arrumação das contas federais dependerá, em parte, de um aumento da receita tributária, mas alguma austeridade será indispensável. Se o plano funcionar, o endividamento público será contido e a redução de juros será mais fácil, favorecendo o crescimento econômico – mas falta o governo convencer o mercado financeiro de suas boas intenções.

Vinicius Torres Freire - Fantasmas de Natais passados

Folha de S. Paulo

Lula, o Brasil e uma pequena história dos erros de interpretação do que foi, é e será

No Natal de 2003, Luiz Inácio Lula da Silva previa um 2004 "difícil". O governo seria "mais cobrado" e o ano não seria dos seus "sonhos", embora melhor. O país não parecia conturbado —2004 viria a ser quente nas ruas. Havia uma espécie de alívio, algo desanimado, dentro e fora do governo.

Lula e PT assumiram sob descrédito, em um país com as contas externas quebradas. Juros e inflação haviam aumentado de modo preocupante; cairiam um tanto, sob uma política macroeconômica idêntica à de FHC 2 (com grande superávit primário, note-se).

PIB ficaria quase estagnado. Mas, ao final daquele 2003, previa-se que o crescimento de 2004 seria de 3,5%. Foi de 5,8%. Nos cinco anos de 2004 a 2008, a renda (PIB) per capita aumentaria 20%, inédito desde 1980. Tal avanço e o Bolsa Família mudariam a história política do país de modo que então não imaginávamos.

Celso Rocha de Barros - O papa e os LGBTs

Folha de S. Paulo

Decisão de Francisco ajuda a tirar o alvo da testa de casais homossexuais

papa Francisco autorizou sacerdotes católicos a abençoarem casais homossexuais.

Para o Estado laico, o respeito à liberdade individual é mais do que suficiente para garantir aos LGBTs o direito à igualdade matrimonial civil. Além disso, a bênção aprovada pelo papa não equivale ao casamento, que continua a ser um sacramento celebrado entre homens e mulheres.

Por outro lado, os LGBT católicos ficaram felizes com a notícia. No fundo, passaram a ter mais ou menos, digamos, o mesmo status dos casais heterossexuais formados por divorciados. Também a eles o papa autorizou que se abençoe.

Nos dois casos, a situação é vista como irregular pelo catolicismo. Mas se os cristãos só condenarem os LGBTs na mesma proporção que condenam divorciados que se casaram de novo, como Jair Bolsonaro, será um progresso. O papa ajudou a apagar o alvo que o conservadorismo contemporâneo desenhou na testa dos LGBTs.

Bruno Boghossian - O eleitor encastelado

Folha de S. Paulo

Decisão de voto criou identidades baseadas em candidatos e afetou até sensação de bem-estar

Se um eleitor de Jair Bolsonaro resolver falar de economia durante a ceia de Natal, é muito provável que ele diga que o governo faz um trabalho ruim ou péssimo. Nesse grupo, duas em cada três pessoas têm uma avaliação negativa da gestão de Lula na área, segundo o Datafolha. O mesmo vale se o tema for combate à miséria ou ao desemprego.

O voto na eleição anterior é o marcador mais tradicional das opiniões sobre um governo. Em grande parte dos casos, um brasileiro de baixa renda que votou no candidato derrotado terá uma avaliação pior sobre a economia do que o brasileiro de baixa renda que ajudou a eleger o presidente, mesmo que as experiências dos dois sejam idênticas.

Hélio Schwartsman - Uma história da mente

Folha de S. Paulo

Paul Bloom transforma em livro curso que atrai multidões em Yale

"Psych", o novo livro de Paul Bloom, é um daqueles cujo sucesso já estava garantido antes mesmo de ser escrito. É que a obra nada mais é do que a transferência para o papel do curso de introdução à psicologia que o autor ministra em Yale, que sempre atraiu multidões, tanto na versão presencial como na disponibilizada pela internet para o grande público.

E há boas razões para o sucesso. Bloom consegue ser profundo e didático. Combina de forma equilibrada questões práticas (devo procurar uma terapia?) com inquietações filosóficas (onde buscar a felicidade?), tudo temperado com muito humor. Bloom ainda escreve melhor que a média dos divulgadores científicos que escrevem bem.

Muniz Sodré* - Patafísica do poder

Folha de S. Paulo

O enigma dos personagens tóxicos na política

Para quem estancou a queda da nação no abismo, são fracos neste fim de ano os índices de popularidade de Lula. Fracas também as explicações. A campanha governamental "O Brasil é um só povo", recém-lançada, não desautoriza uma hipótese de natureza patafísica: existiriam dois Brasis. No primeiro, real, Lula é legítimo presidente da República, com dezenas de milhões de seguidores. No segundo, irreal, o outro perdeu a eleição, mas ainda não lhe caiu a ficha nem a de seus aderentes, o que pavimenta o caminho patafísico dos absurdos.

Patafísica é a "ciência" das soluções imaginárias, uma invenção de literatos franceses para jogar criativamente com distorções da realidade. Nesse país distorcido por hipótese, sombra projetada sobre o real, o portador da caveira de burro nada em seco, o pão lhe caindo com leite condensado para baixo. Ainda assim, trafega nos índices e nas barricadas da direita. Aos contratempos: na posse de Milei, tentou bancar o papagaio de pirata numa foto de presidentes, foi por eles repelido. Um vexame, que não pareceu constrangê-lo.

Ruy Castro - Frases que fazem pensar

Folha de S. Paulo

Em seu livro 'Sempre Paris', Rosa Freire d'Aguiar mostra como se entrevistam os grandes nomes

Todo bom repórter sabe que, numa entrevista, o que interessa é a resposta, não a pergunta. Para isso, a pergunta tem de ser bem feita —curta, rápida, objetiva, que abra um horizonte para o entrevistado. Perguntas longas e elaboradas tendem a ser respondidas com um sim ou não —e por que não, se o repórter já esmiuçou a possível resposta? Rosa Freire d’Aguiar, em seu livro "Sempre Paris - Crônica de uma Cidade, seus Escritores e Artistas", que acaba de sair pela Companhia das Letras, dá várias aulas práticas de como se faz uma grande entrevista.

O livro reproduz as conversas que, como correspondente das revistas Manchete e IstoÉ nos anos 70 e 80, ela manteve com grandes nomes da cena parisiense. Todas ressaltam o impressionante preparo de Rosa para encarar os entrevistados —razão das respostas que arrancou deles, cheias de frases que fazem pensar. Exemplos:

Poesia | Organiza o Natal - Carlos Drummond de Andrade -( por Ivan Lima)

 

Música | Boas Festas - Anoiteceu, o sino gemeu (Assis Valente)