quinta-feira, 23 de abril de 2020

Luiz Carlos Azedo - O que vem por aí

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Faltam leitos de UTI, respiradores e equipamentos de proteção, além de médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, porque muitos estão se contaminando”

Em sua primeira entrevista coletiva, o ministro da Saúde, Nelson Teich, ontem, anunciou que o governo federal prepara uma diretriz para orientar cidades e estados na flexibilização do distanciamento social contra o novo coronavírus, que deverá ser anunciada na próxima semana. Argumentou que o total de pessoas infectadas com Covid-19 é baixo se comparado com o total da população e fez a previsão de que menos de 70% da população contrairão a doença, ao contrário das estimativas iniciais. Segundo o ministro, o Brasil tem 43,5 mil casos do coronavírus. “Se a gente imaginar que pode ter uma margem de erro grande — digamos que a gente tenha aí 100 vezes, isso é só um exemplo hipotético — a gente está falando em 4 milhões de pessoas. Nós hoje somos 212 milhões”, explicou.

Teich arrematou: “Fora da Covid tem 208 milhões de pessoas que continuam com as suas doenças, com os seus problemas, e que têm que ter isso tratado. E o que é que representam, hoje, 4 milhões de pessoas num país como esse? 2% da população”, disse. O ministro anunciou o novo secretário-executivo do Ministério da Saúde: o general de divisão Eduardo Pazuello, que hoje é comandante da 12ª Região Militar, principal unidade de logística do Exército na Amazônia, responsável por quatro hospitais, embarcações, manutenção, suprimentos e uma companhia de comando, para o apoio às unidades de combate do Comando da Amazônia. Integrante do grupo de generais paraquedista do Rio de Janeiro que hoje forma o Estado Maior de Bolsonaro, é um especialista em logística. Sua missão no Ministério da Saúde será operar a estratégia de saída da política de isolamento social em todo país, sem deixar que haja o colapso do sistema de saúde pública. Se houver precipitação, será uma missão impossível.

Ricardo Noblat - A volta em grande estilo da Velha Política em socorro ao capitão

- Blog do Noblat | Veja

Estelionato eleitoral à vista

Onde se leu: Jair Bolsonaro diz que no seu governo jamais loteará cargos públicos em troca do apoio de partidos, leia-se: para prevenir-se contra um pedido de impeachment que possa custar-lhe o mandato, o presidente Jair Bolsonaro passou a oferecer cargos públicos a partidos em troca de votos no Congresso.

Que perdoe o general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria do Governo, que acumula o Ministério das Boas Notícias e reclama da imprensa que, segundo ele, só parece enxergar as notícias más. A compra de apoio por Bolsonaro não é uma notícia nem má nem boa. É simplesmente notícia e não pode ser ignorada.

Um devoto do presidente, ontem, no cercadinho do Palácio da Alvorada, perguntou-se se era verdade que ele está oferecendo os cargos que prometera reservar só para pessoas de sua inteira confiança. Bolsonaro irritou-se com a pergunta e deu uma resposta malcriada. Sim, ele anda bastante nervoso ultimamente.

Foi obra dos ministros militares que o cercam convencê-lo de que o governo de cooptação não é tão mal assim. E que sem partido desde que abandonou o PSL pelo qual se elegeu, sem votos para aprovar seus projetos no Congresso, seria recomendável que procedesse como os presidentes que o antecederam.

Os bolsonaristas sinceros, porém radicais, ficarão furiosos, é certo. Mas por sinceros e radicais, serão obrigados a continuar a defende-lo à falta de opção. Os bolsonaristas móveis ou em trânsito, esses não são confiáveis e já estão em trânsito, embora ainda não saibam para onde. Poderão retornar ao regaço de Bolsonaro.

O chamado governo de coligação funcionou à época dos presidentes Itamar e Fernando Henrique. À época de Lula, funcionou, mas deu na Lava Jato. À época de Dilma, não foi suficiente para que ela completasse o segundo mandato. À época de Temer, sustentou-o, mas não o impediu de ser preso depois.

Bolsonaro, e mais ninguém, é que sabe onde lhe apertam os calos e, no momento, a dor que deveras sente empurra-o na direção que jurou nunca ser capaz de trilhar. A Velha Política, essa está assanhadíssima e pronta a jurar-lhe fidelidade enquanto dure o amor e não se apague a chama.

Merval Pereira - Da colisão à coalizão

- O Globo

Os movimentos do Palácio do Planalto para abrir uma brecha na estrutura de apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com vistas a eleger seu sucessor no início do ano que vem, é uma mudança radical de posição do presidente Bolsonaro que pode ter consequências fundamentais na sucessão presidencial de 2022.

Quem era o antipolítica até domingo, quando anunciou em alto e bem som no fatídico comício com reivindicações antidemocráticas em frente ao QG do Exército que não queria negociação nenhuma e que “o povo está no poder”, agora aparece no noticiário como aliciador do apoio de figuras como Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto, emblemáticas da “velha política”.

O ministro da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos, que faz a coordenação parlamentar do Planalto, nega o caráter de “é dando que se recebe” das negociações, e o ministro-chefe do Gabinete Civil, Braga Neto garante que não é o interlocutor de Rodrigo Maia.

Tudo indica, porém, que foi o próprio presidente Bolsonaro quem desencorajou a tentativa de aproximação com o presidente da Câmara, que considera agora seu principal adversário político. O objetivo de Bolsonaro ao tentar montar uma maioria de apoio dentro do Congresso, coisa a que ele se recusava desde o início do governo, é de impedir qualquer tentativa de pedido de impeachment, e, ao mesmo tempo, organizar uma base de apoio para a reeleição, cooptando parlamentares para seu futuro partido em coalizão com a base do Centrão.

Ascânio Seleme - A manada de Bolsonaro

- O Globo

Não enxergam nada à frente, atropelam tudo o que se interpõe no seu caminho

Um meme circulou nesses dias na internet mostrando animais invadindo cidades vazias em razão do isolamento contra a contaminação do coronavírus. Há quatro imagens. A primeira mostra cervos nas ruas de uma cidade no Japão. Na segunda veem-se cabras circulando num adensamento urbano no País de Gales. A terceira são peixes nas agora cristalinas águas de Veneza. E a quarta mostra brasileiros vestidos de verde e amarelo, pregando a intervenção militar, a volta do AI-5 e o fim da quarentena, e tem como legenda “gado no Brasil”.

Era para ser uma brincadeira? Claro. Mas o fato é que a brincadeira retrata muito bem o tipo de gente que sai às ruas para pedir que se cometam atentados contra a vida e contra a democracia. São pessoas que se aglomeram e seguem na mesma direção num comportamento de manada causado por um agente que eles nem sempre conhecem ou conseguem identificar. No caso dos bolsonaristas, a origem é o “gabinete do ódio” do Palácio do Planalto. Ou alguém tem dúvida sobre quem produz as convocações para essa manada? Inquérito determinado pelo Supremo Tribunal Federal vai responder a essa questão.

As pessoas que carregam cartazes pedindo a intervenção militar, o fechamento do Supremo e do Congresso parecem estar em estado de euforia gerado pelo uso da codeína presente em certos xaropes. Os viciados, quando sob o efeito da droga, são chamados de “bois”, porque ficam muito excitados, respondem rapidamente a estímulos externos e são facilmente manipulados. Como não enxergam nada à frente, atropelam tudo o que se interpõe no seu caminho. Por estarem cegos, acabam sendo violentos.

Bernardo Mello Franco - O general quer elogios

- O Globo

O general Ramos está insatisfeito com o trabalho da imprensa na pandemia. Deveria se mudar para o Turcomenistão, onde o ditador proibiu os jornais de usar a palavra ‘coronavírus’

Nos idos de 1967, o marechal Costa e Silva fez uma reclamação à condessa Pereira Carneiro, então proprietária do “Jornal do Brasil”. “O seu jornal tem tratado muito mal a mim e ao meu governo”, queixou-se. Em tom diplomático, a senhora respondeu que o diário buscava publicar “críticas construtivas”. O ditador reagiu com franqueza: “Eu gosto mesmo é de elogio”.

O general Luiz Eduardo Ramos foi cadete no período autoritário, mas chegou aos postos de comando na democracia. Foi promovido a coronel em 2003, quando a Presidência era ocupada por um ex-operário que liderou greves contra a ditadura. Ontem ele teve uma recaída, e resolveu usar uma entrevista ministerial para fazer reparos ao trabalho da imprensa.

“Desde que começou essa crise do coronavírus, nós temos observado uma cobertura maciça dos fatos negativos”, disse o chefe da Secretaria de Governo. “No jornal da manhã é caixão e é corpo, na hora do almoço é caixão e é corpo, no jornal da noite é caixão, é corpo e é número de mortes”, protestou.

Luiz Fernando Verissimo – Surrealismo

- O Globo / O Estado de S. Paulo

A incrível guerra de egos que acabou com a troca do ministro da Saúde

Roberto Alvim foi o escolhido por Bolsonaro & Filhos para ser ministro da Cultura. Não teve tempo de mostrar o que faria na pasta porque não sobreviveu à sua primeira apresentação como ministro, quando leu um texto inspirado parcialmente em Goebbels, o homem da Cultura do Reich nazista, com música de fundo de Richard Wagner, o compositor favorito de Hitler. A reação foi grande, e Alvim caiu no dia seguinte, para ser substituído dias depois pela Regina Duarte, que, supostamente, nunca leu Goebbels e prefere Wagner Tiso. Como tudo se resolveu rapidamente, não deu para meditar sobre a nomeação de Alvim e sua passagem fulminante pelo ministério, e principalmente seu significado como prenúncio do que viria a ser uma característica do governo que se iniciava, o surrealismo.

O mesmo governo que quase entregou a gerência da cultura brasileira ao filofascismo escolheu para ministro da Educação alguém sem nenhuma intimidade com a ortografia — um exemplo, entre muitos, do surrealismo que nos dominaria. A incrível guerra de egos que acabou com a troca do ministro da Saúde quando a situação mais precisava de união e continuidade ultrapassou o surrealismo e invadiu a área da demência. O presidente discursou numa manifestação que pedia a volta do AI-5, e portanto a queda do seu próprio governo, ou sua transformação numa paródia de governo com ele na frente, e discursou a favor do autogolpe. Ele declarou, para outra das aglomerações que o seguem por toda parte, espalhando coronavírus: “A Constituição sou eu”. Louis XIV tinha dito que o Estado era ele, Bolsonaro foi mais modesto. Um dos recursos do surrealismo é o da alteração da natureza das coisas. Relógios se derretendo como picolés etc. No surrealismo brasileiro, não surpreende que documentos se transformem em gente, e gente se transforme em antigos reis da França.

Carlos Alberto Sardenberg - Sim, voltaremos às ruas

- O Globo

Haverá menos vagas nas lojas físicas e muito, mas muito mais nos centros de operação on-line e na distribuição

O comércio eletrônico (E-commerce) será o grande vencedor, assinala a revista “Economist”, numa análise do que virá depois da pandemia. Cita números: enquanto shoppings, redes de lojas e restaurantes demitem, a Amazon contratou 100 mil pessoas em março e mais 75 mil neste mês. A um dado momento, teve que limitar o movimento para reforçar e adequar sua infraestrutura.

Há movimentos semelhantes no Brasil, como a decisão de Luiza Trajano de abrir seu site para outras empresas, com o lançamento da enorme Magalu.

Faz sentido. Na verdade, o comércio já estava nesse caminho das vendas on-line. Mais ainda, toda a economia mundial — com alguns países mais à frente, outros atrás —já avançava para a digitalização. A pandemia deu mais urgência a esse movimento. Na indústria, pequenas empresas têm feito coisa extraordinárias com as impressoras 3D. As operadoras de telefonia correm para aperfeiçoar os instrumentos de comunicação on-line, de simples conversas entre pessoas ansiosas com o isolamento, até conferências de chefes de Estado. Nós mesmos, jornalistas, estamos diretos no on-line.

Dia desses, um colega comentou: quando isso tudo voltar ao normal, nunca mais teremos aquelas redações. Aliás, já estavam diminuindo exatamente pelo uso de mais tecnologia. Há estúdios de televisão que funcionam com um único operador comandando câmeras e luzes.

Míriam Leitão - Abertura do país antes da hora

- O Globo

Os estados começam a relaxar o isolamento, e o governo faz plano para depois da pandemia, mas o país ainda não venceu o vírus

O governo federal apresentou um programa de retomada da economia sem o Ministério da Economia. Lembrava uma mistura do PAC do período Dilma com os PNDs do regime militar, mas ainda em rascunho. É o Plano Pró-Brasil, com dois eixos, Ordem e Progresso, para quando a pandemia passar. Os estados começaram a anunciar a saída do distanciamento social. Alguns com mais planejamento, outros com menos, mas em todos os casos talvez seja cedo demais, porque o Brasil continua subindo o Everest. O coronavírus não nos deu trégua ainda.

O ministro Nelson Teich continua seu período de aprendizagem. Reclama das perguntas dizendo que só está no cargo há cinco dias. Mas ele não está inaugurando o Ministério da Saúde. A máquina está lá, e lá estão a memória e os dados que ele diz desconhecer. Quem aceita assumir no meio de uma emergência tem que saber o que fazer. O ministro Teich ainda pesquisa e divaga. Disse que se preocupa com a saúde dos hospitais privados se os enfermos de outras doenças não forem se tratar. “Os hospitais não vão sobreviver” e isso levaria, segundo ele, a outro problema, quando acabar a pandemia, “a não capacidade de atender à demanda reprimida do não covid”. Sobre o SUS ele faz apenas breves referências.

O ministro disse que em uma semana entrega diretrizes aos governadores sobre como abrir a economia. Chegará atrasado, porque os estados já estão fazendo seus próprios planejamentos. O governador João Dória apresentou ontem, com equipe completa, o seu Plano São Paulo. Tinha pelo menos as palavras certas, a obediência à ciência, a tomada de decisão no diálogo entre saúde e economia, e a criação de parâmetros para saber quando e por que abrir. Segundo a secretária de Desenvolvimento Humano, Patrícia Ellen, as atividades serão retomadas por fases, por regiões e por setores. Tudo será dividido em cores. Hoje o vermelho é dominante em todo o estado e o distanciamento continua até 10 de maio. Depois só abre dependendo de fatores como testagem e capacidade hospitalar. Não será ao mesmo tempo em todo o estado. “Em hipótese alguma será desordenada, com flexibilização aleatória ou desrespeitando a ciência.”

Roberto Dias – Assim não é, se não lhe parece

- Folha de S. Paulo

O coronavírus criou uma nova espécie de negacionista

Os negacionistas do coronavírus alinham-se com espécies que vinham circulando ruidosamente pelo planeta nos últimos tempos: a dos espalhadores de fake news eleitorais e a dos terraplanistas.

Só que há questões importantes e reveladoras nessa nova categoria.

A diferença mais óbvia é que o negacionismo sobre o coronavírus tem custo imediato muito mais palpável do que o dos que não acreditam que a Terra seja redonda (11 milhões de brasileiros, segundo o Datafolha). Pois a Terra continuará redonda, não importa o quanto eles neguem. No caso do corona, o não de hoje pode virar um caixão em poucos dias.

O compartilhamento de fake news é elemento comum a todas essas histórias. Com o vírus, fica bem nítido que a prática se concentra no grupo que refuta a ciência, embora não seja exclusividade dele.

Está claro faz tempo que uma parcela da população não consegue nem quer escutar. O que o coronavírus vai desnudando é que, inexistindo o argumento político usual, sobra pouca munição para essa turma usar num debate.

Bruno Boghossian – De Blumenau a Manaus

- Folha de S. Paulo

Ataques de Bolsonaro a regras e aperto econômico podem precipitar flexibilização de regras

Um animado saxofonista recebeu clientes de um shopping de Blumenau nesta quarta (22). Graças à decisão do governador Carlos Moisés de reabrir as lojas de Santa Catarina, idosos e crianças vestiram máscaras e se aglomeraram no centro comercial, enquanto vendedores batiam palmas nos corredores.

O estado adotou o isolamento contra o coronavírus há mais de um mês. Registrou 37 mortes e, agora, se tornou uma das primeiras unidades da federação a flexibilizar as regras de maneira significativa. Outros governadores temem que os catarinenses puxem a fila de um relaxamento apressado, com potencial trágico.

Líderes que decidiram manter o distanciamento enxergam um processo precipitado de retomada. Eles atribuem o movimento a pressões econômicas e políticas que se acumularam nas últimas semanas.

Mariliz Pereira Jorge - Reféns da extrema direita

- Folha de S. Paulo

Como permitimos que a extrema-direita sequestrasse nossos maiores símbolos nacionais?

Ao ver as imagens de um homem vestido de verde e amarelo agredir um casal com camisetas vermelhas, nas manifestações de domingo (19), pensei: como permitimos que a extrema direita sequestrasse nossos maiores símbolos nacionais?

Professor de relações internacionais da FGV, Oliver Stuenkel, escreveu no ano passado sobre essa tendência ao redor do mundo. "Os radicais têm se apropriado de bandeiras nacionais para poder chamar vozes discordantes de inimigos da pátria". Não por acaso, é assim que Jair Bolsonaro, parlamentares aliados e apoiadores se referem a qualquer pessoa que faça oposição ao presidente.

Stuenkel dá como exemplo o leão e a cruz, imagens nacionais na Finlândia, hoje associados a grupos xenófobos. A tentativa de Trump em se apropriar da bandeira americana. A mesma tática do partido de extrema direita AfD, na Alemanha, que acusa os demais de terem vergonha dos símbolos alemães.

Maria Hermínia Tavares* - Na liga dos insanos

- Folha de S. Paulo

Com Nicarágua, Turcomenistão e Belarus, Brasil forma grupo dos quatro

Na capa da edição de 12 de novembro de 2009, a revista inglesa The Economist trazia a imagem do Cristo Redentor disparando do Corcovado como um foguete, para ilustrar as projeções da crescente importância do Brasil na cena internacional. Pouco depois, o Council of Foreign Relations, renomado centro de estudos americano, afirmava que o Brasil “faz parte da reduzida lista de países destinados a definir o século 21”.

Não sendo uma potência econômica nem militar, o Brasil construiu sua reputação internacional assentado no que os estudiosos chamam “poder suave” —a capacidade de influenciar o comportamento de outras nações pela persuasão e não pelas armas ou pelo dinheiro.

Nas últimas décadas, de fato, o país atuou com firmeza nas organizações multilaterais, formando coalizões para engrossar a voz dos países em desenvolvimento. Criou o fórum IBSA, participou da articulação do grupo dos Brics. Entrou para o G20, o grupo de ministros das finanças e dirigentes de bancos centrais das maiores economias do mundo. Fez-se ainda protagonista de primeira grandeza no debate das medidas destinadas a limitar os efeitos das mudanças climáticas.

Fernando Schüler* - Anatomia do ódio

- Folha de S. Paulo

A tribalização cresceu durante a pandemia

Haters são tipos antigos. Ainda lembro da leitura de Robert Darnton e seu belo “O Diabo na Água Benta”, contando a história dos caluniadores profissionais na França do século 18.

Muitos viviam no exílio, em torno da Grub Street e no submundo literário londrino, fazendo fluir a partir daí uma rede sórdida de libelos e panfletos que está na raiz da moderna imprensa sensacionalista.

No mundo atual tudo se vulgarizou. Pesquisa conduzida pelo Pew Reseach Center mostra que 41% das pessoas já sofreram algum tipo de bullying digital e que a orientação política é, de longe, o maior motivo.

O hater tende a ser um dualista moral. Ele imagina, como tentaram mostrar Jonathan Haidt e Greg Lukianoff em seu “The Coddling of American Mind”, que a vida é uma luta entre pessoas do bem e pessoas do mal, entre a verdade e o erro, e que ele representa o primeiro time. Vem daí, em última instância, seu direito de julgar e ofender.

O hater é, em regra, um covarde. Seu primeiro esconderijo é o anonimato. Isso vem de longe, mas ganhou escala infinita no mundo digital. Seu segundo esconderijo é a irrelevância. Agride porque tem pouco a perder. Ninguém lhe dará muita bola nem lhe cobrará nada. Seu terceiro esconderijo é a tribo. Ele fala e escreve para a turma dos “especialistas na própria opinião”. Vive em uma banheira morna feita de viés de confirmação.

Haters não pertencem a esta ou àquela ideologia. No Brasil de hoje, é uma experiência antropológica interessante visitar grupos de radicais governistas e antigovernistas e ver como o haterismo se comporta.

Vinicius Torres Freire - Governo se reorganiza e contra-ataca

- Folha de S. Paulo

Na frente político-partidária, a contraofensiva ataca governadores e o parlamentarismo branco de Rodrigo Maia

O governo parece que tenta governar, sob o comando do ministro-general Braga Netto (Casa Civil). É uma ação coordenada na política, é o controle do Ministério da Saúde, é uma tentativa de articulação administrativa de ministérios e outra de fazer com que a equipe econômica reaja de modo rápido e “proativo”, digamos.

Na frente político-partidária, a contraofensiva ataca governadores e o “parlamentarismo branco” de Rodrigo Maia, o que antes fazia na maior parte por meio de “ruas” e milícias digitais. Trata-se de minar parte da força de Maia, obriga-lo a negociar, influenciar a eleição do próximo comando da Câmara (em 2021) e, no mínimo, criar um bloquinho parlamentar com tamanho suficiente para barrar um processo de impeachment.

Um instrumento desse combate, como se viu, é a oferta de cargos para partidos que formaram o núcleo do mensalão e do petrolão, o que já estimula outras legendas a correrem para o balcão de barganhas.

Outra pressão veio dos ministros militares do Planalto, que se queixaram em discursos públicos de que a cúpula do Legislativo e Judiciário podam o governo. Nos mesmos discursos ou entrevistas, reafirmavam compromissos democráticos _punham panos frios no comício autoritário de Jair Bolsonaro.

José Serra* - A democracia sob ataque

- O Estado de S.Paulo

Se tentasse agir fora dos limites da lei, o Poder Executivo seria contido pelas instituições

Quem estava atribuindo a última das crises governamentais ao estilo do presidente da República e ao conflito entre Jair Bolsonaro e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta não perdeu por esperar além de um par de dias. O presidente já está desautorizando o ministro recém-empossado, Nelson Teich, e desafiando o compromisso do novo ministro com uma atitude cautelosa e baseada em fatos comprovados, de revisão da política de isolamento.

Os menos pessimistas esperavam que, afastado o ministro que seria um suposto desafeto, Bolsonaro deixaria a política de combate à pandemia em mãos da autoridade competente, aliás, declaradamente em “alinhamento completo” com ele, e assumiria como prioridade total a gestão da crise sanitária, social e econômica provocada pela pandemia. Mas sua conduta depois da demissão de Mandetta parece ser não mais a de combate à política identificada com seu ex-ministro, mas a de insatisfação com as instituições da República.

No domingo Bolsonaro liderou um comício em praça pública não para protestar contra o isolamento, como vinha fazendo, mas, como disse, a fim de dar sua vida “para mudar o destino do Brasil”. Em seu discurso, em palanque improvisado da caçamba de uma picape, deu um passo a mais em sua verdadeira campanha contra o Congresso, o Supremo, os partidos políticos e mesmo contra a Constituição, não só com palavras, mas também com condutas pouco apropriadas ao papel presidencial no Estado Democrático de Direito.

Em poucas palavras, expressou teses esdrúxulas sobre a democracia, como o conceito equivocado de que “todos estão submissos à vontade do povo”. Nas democracias, o povo não submete nem é submisso à vontade de ninguém. Só se submete à Constituição, que garante a sua liberdade e emana dele próprio, o povo.

Eugênio Bucci* - A indústria ilegal de ‘fake news’ por trás dos atos pró-ditadura

- O Estado de S.Paulo

Motor do bolsonarismo, ou essa indústria vem à luz, ou a treva cobrirá o resto

Na terça-feira o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a abertura de inquérito para investigar as manifestações pró-ditadura militar realizadas no domingo. É preciso investigar.

É preciso investigar o horror. Domingo foi um dia de horror. Usando a Bandeira Nacional como capa de Zorro por cima de trajes que imitam fardas militares de camuflagem, os circunstantes exigiram medidas exótico-totalitárias, como o fechamento do Congresso e do próprio STF. Contra o horror, o pedido de investigação foi protocolado na segunda-feira, dia 20, pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que cumpriu seu dever funcional. O Brasil precisa identificar a indústria que está por trás desse pesadelo que vai virando realidade.

Todos sabemos que o presidente da República é a cereja podre do bolo infecto. Vestindo uma camisa vermelho-chavista, ele compareceu ao ato em Brasília e discursou diante de faixas que pediam “intervenção militar já”. Ao estrelar a matinê lúgubre, o governante antigoverno segue sua tournê como animador de auditórios macabros e de macabros de auditório.

Não obstante, o próprio Bolsonaro não figura como alvo do inquérito. Isso significa que, ao menos por agora, não será oficialmente reconhecido o que já é ululantemente público: que o chefe de Estado patrocina, com seus garganteios perdigotários, a histeria golpista da extrema direita brasileira. Deixemos isso de lado – por enquanto. Não há de ser nada.

William Waack - A sofisticação de Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

Presidente está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados

Jair Bolsonaro bradou que o “povo está no poder” ao discursar numa manifestação abertamente golpista em frente do QG do Exército, e se empenha em provar o que disse. Está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados.

Para seus padrões, é a mais sofisticada jogada política desde que assumiu. Tentar arrebanhar uns 200 deputados da confusa e amorfa massa de parlamentares identificada como “Centrão”. Em busca do que até agora dizia não ser necessário para governar, ou seja, uma base razoavelmente ampla e coordenada na Câmara dos Deputados.

Os motivos para proceder de forma que prometeu jamais empregar – trocar cargos por apoio político – são dos mais diversos, inclusive a vontade pessoal de “punir” quem considera chantagista, conspirador e traidor, o atual presidente da Câmara, de quem Bolsonaro pretende tomar parte efetiva do controle do “Centrão”. Um dos mais relevantes motivos para a ação do presidente, porém, é o reconhecimento tácito de que o poder do chefe do Executivo diminuiu desde que ele assumiu.

Outro motivo é o efetivo cerco que esferas políticas e institucionais impuseram ao presidente via STF. Bolsonaro tem razão em apontar para o outro lado da Praça dos Três Poderes ao se dirigir por redes sociais a apoiadores e dizer que “eles” (ministros do STF) o impedem de fazer o que quer. Reconhece que, sem o Supremo e o Legislativo, nada vai.

A outra operação política sofisticada (para padrões bolsonaristas) encabeçada pelo Planalto lembra fortemente o que se fez nos tempos da tal “velha política”, que, teoricamente, teria deixado de existir. É sacar praticamente a fundo perdido dos cofres públicos, investir em grandes obras e ver no que dá.

Zeina Latif* - Na confusão, não se vai longe

- O Estado de S. Paulo

É inacreditável a discussão da retomada sem consulta do time da Economia

Há muito trabalho a ser feito na economia. Mesmo que não houvesse o isolamento social, o custo econômico da epidemia seria elevado, pelas consequências de uma crise social e pelo contágio do quadro global sobre o crédito, as exportações e o mercado financeiro.

O governo não está inerte, mas há muitas lacunas no conjunto de medidas e desafios a serem enfrentados, durante e após o isolamento social.

Primeiro, há indefinições e ajustes necessários nas medidas econômicas. Por exemplo, a linha de crédito da Caixa às microempresas dá tratamento diferente daquele oferecido a pequenas e médias empresas para honrar a folha, com juros mais baixos. Há também muitas pendências no socorro a setores, como o de energia.

Segundo, é preciso maior coordenação interna do governo. Um exemplo são as dificuldades enfrentadas pelos Ministérios da Saúde e da Agricultura por conta da ausência de resposta contundente do governo aos ataques do ministro da Educação à China. É necessário reconstruir as relações diplomáticas, não só pelas dificuldades na importação de equipamentos de saúde daquele país, mas pelo impacto sobre as exportações e futuros investimentos no Brasil, inclusive nos leilões de infraestrutura.

Terceiro, falta diálogo com Estados e municípios para uma solução rápida e justa para a expressiva queda de arrecadação, sem comprometer a higidez fiscal da União e sem abrir espaço para excessos desses entes. A solução da tensão atual deveria se dar pelo diálogo entre os Poderes Executivos da federação, e não pelo ataque ao Congresso.

Maria Cristina Fernandes - A cilada do impeachment

- Valor Econômico

Pedido é a isca jogada por Bolsonaro para se vitimizar e unir militares em sua defesa

O presidente da República participou de uma manifestação que tinha por objetivo subverter a ordem política, infração que o enquadra tanto na Lei de Segurança Nacional quanto na Lei do Impeachment. Ao fazê-lo diante de um quartel, além de incitar militares à desobediência, preceito que também o enquadra nesta lei, infringiu a norma que submete atividades no perímetro de 1.320 metros dos quartéis militares à autorização se seus comandos.

Sozinha, a manifestação de domingo já dá motivos de sobra para juristas redigirem empolados pedidos de impeachment. Somado ao estímulo do presidente a que as pessoas quebrem o isolamento social, colocando em risco o direito coletivo e individual à saúde, tem-se aí abundantes argumentos para o afastamento do presidente do cargo. É um prato cheio de iscas.

O PT já fisgou a primeira ao aprovar o mote #forabolsonaro. Ao fazê-lo, o partido reverte decisão tomada dias atrás e torna-se a primeira grande legenda a cair na armadilha que o presidente montou para se apresentar como vítima de uma conspiração. Foi seguido pelo PDT, que briga pela hegemonia dos escombros da oposição.

O comando de caça aos esquerdistas continua vivo no bolsonarismo, ainda que roto e amarelado. No poder, o presidente da República ganhou novas bandeiras. Quer reviver o espírito antipolítica que move tanto as Forças Armadas quanto a classe média urbana desde o tenentismo e foi, em grande parte, responsável por sua eleição.

Para isso, gostaria de fisgar a Câmara dos Deputados e, se der, até o Supremo Tribunal Federal. Um inimigo comum com os militares é um cobiçado objeto de desejo do bolsonarismo e mesmo entre os militares mais abespinhados com o ato de domingo, encontra-se convergência com o discurso de que não o deixam governar. Ter evidências de que Rodrigo Maia estaria envolvido numa articulação para derrubá-lo é tudo que o presidente precisa para unificar, em sua defesa, militares da reserva e da ativa, em grande parte divididos em relação aos limites de sua provocação.

Ribamar Oliveira - Senado condiciona benefício a emprego

- Valor Econômico

Se aprovada pela Câmara, “PEC da guerra” criará insegurança jurídica

O texto da Proposta de Emenda Constitucional 10/2020, mais conhecida como “PEC do Orçamento de Guerra”, recentemente aprovado pelo Senado, introduziu um novo complicador para as empresas que, se aprovado pela Câmara dos Deputados, trará uma grande insegurança jurídica, de acordo com consultores ouvidos pelo Valor.

O recebimento de benefícios creditícios, financeiros e tributários, direta ou indiretamente, concedidos no âmbito dos programas oficiais de combate aos efeitos da pandemia, estará condicionado ao compromisso das empresas de manutenção de empregos, “na forma dos respectivos regulamentos”, de acordo com o artigo 4º do texto do Senado.

Uma das medidas adotadas pelo governo para redução dos efeitos do novo coronavírus na economia, logo no início da pandemia, foi adiar o pagamento de PIS, Pasep e da Cofins, bem como da contribuição previdenciária patronal. Os empresários pagarão as quatro contribuições devidas em abril e em maio apenas em agosto e em outubro.

Esta foi uma forma de dar mais fôlego de caixa às empresas, que tiveram suas vendas drasticamente reduzidas do dia para a noite. Tecnicamente, o procedimento é conhecido como diferimento. A questão é que todas as empresas, mesmo aquelas que estão demitindo trabalhadores, terão direito de adiar o pagamento das quatro contribuições. Quando o diferimento foi autorizado, ainda em março, a instrução normativa da Receita Federal não condicionou o benefício à manutenção do emprego.

Armando Castelar Pinheiro* - A economia e os cinco estágios do luto

- Valor Econômico

Volta precipitada fará a retomada ser mais como um "W" do que um "V" ou "U", possivelmente se estendendo ao próximo ano

Um texto sempre útil em economia, ainda que felizmente raramente necessário, é o livro de Elizabeth Kübler-Ross, intitulado “On Death and Dying”. Como o título sugere, lida com as reações emocionais à morte, que a autora ordena em cinco estágios: negação e isolamento; raiva; negociação, depressão e aceitação.

O livro me veio à cabeça com a reação que, na minha visão, temos tido à pandemia da covid-19: há dificuldade de aceitá-la, negando a sua virulência, o seu poder destrutivo, para a saúde e a economia.

Em parte isso refletiu ser esta uma crise originada na saúde e não na economia. Estamos acostumados a pensar em crises originadas em choques de petróleo (1974-75 e 1979-80), políticas monetárias radicais (1979-82), crises de excesso de endividamento (anos 1980), políticas econômicas heterodoxas (1990-92), má regulação financeira (2008-09) etc. Esta não. É uma crise na saúde, uma crise em que os instrumentos usuais de política econômica, nas áreas monetária e fiscal, têm pouca capacidade de reverter.

Os economistas têm tido grande dificuldade em traduzir a realidade epidemiológica em quedas do nível de atividade. Semana passada, o FMI trouxe a público suas novas projeções, prevendo queda de 3% no PIB mundial este ano. Apenas três meses antes, previa alta de 3,3%. Mês passado, os economistas consultados pelo Ministério da Economia para a elaboração do Prisma Fiscal, uma publicação semelhante ao Boletim Focus, do Banco Central, projetavam que o PIB brasileiro teria expansão de 1,8%. Este mês, já preveem queda de 3,3%.

Adair Turner* - Financiamento monetário é isso aí

- Valor Econômico

BCs estão tornando mais fácil custear déficits fiscais escancarados

Em resposta à pandemia da covid-19, o Federal Reserve (Fed, banco central dos Estados Unidos) comprará quantias ilimitadas de títulos do Tesouro americano, o Banco da Inglaterra, 200 bilhões de libras (US$ 250 bilhões) de títulos do governo britânico, e o Banco Central Europeu (BCE), € 750 bilhões de bônus da zona do euro. Quase certamente, os bancos centrais acabarão proporcionando financiamento monetário para custear déficits fiscais. A única dúvida é se devem tornar isso explícito.

A política monetária, por si só, é claramente impotente nas circunstâncias atuais. Os bancos centrais cortaram taxas referenciais de juros, e as compras de bônus vêm pressionando para baixo os rendimentos dos papéis de longo prazo. Ninguém acredita, no entanto, que essas baixas taxas de juros motivarão aumentos nos gastos dos consumidores ou nos investimentos das empresas. Em vez disso, a queda no crescimento econômico será neutralizada (da melhor forma possível) por aumentos nos gastos governamentais em saúde, apoio direto à renda dos trabalhadores demitidos e impostos mais baixos. Isso resultará em déficits fiscais sem precedentes.

Na teoria, financiar esses déficits por meio da venda de bônus governamentais poderia elevar o rendimento dos bônus, potencialmente anulando a força dos estímulos. Mas com os bancos centrais comprando bônus e pressionando os rendimentos para baixo, os governos poderiam captar tudo o que precisassem a taxas de juros baixíssimas.

Quando os Estados Unidos, usaram essa política durante a Segunda Guerra Mundial, o papel do Fed em facilitar o financiamento via títulos de dívida foi explícito: de 1942 a 1951, comprometeu-se a comprar bônus do Tesouro em qualquer volume necessário para manter os rendimentos baixos. Desta vez, compromissos explícitos como esse têm sido evitados, mas o efeito é o mesmo: os bancos centrais estão tornando mais fácil financiar déficits fiscais escancarados.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Planalto se volta para o velho centrão em busca de apoio – Editorial | Valor Econômico

Bolsonaro quer se aliar ao que de pior a política brasileira já produziu

Além de se preocupar com a evolução de uma mortal pandemia em um país com sistema de saúde frágil, os brasileiros têm, ao mesmo tempo, de se inquietar com surtos de ataques à democracia do presidente da República, Jair Bolsonaro. O mais recente foi a participação em um ato pela volta da ditadura militar e do AI-5 em frente ao Quartel General do Exército no domingo, no qual disse que não negociaria mais nada e anunciou que a “patifaria” política chegara ao fim. Mais tarde, desembestou a criticar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, acusando-o de conspirar para retirá-lo do poder.

O presidente não tem rumos a oferecer, mas sabe aonde quer chegar - aonde está, manter-se na Presidência. Seus estrategistas, como Walter Braga Neto, da Casa Civil, enveredam agora, não se sabe com que afinco ou por quanto tempo, para levar o presidente a fazer política e buscar apoio nos partidos do centrão, como o Republicanos (onde se alojaram recentemente dois filhos de Bolsonaro), o PL, do sempre suspeito Valdemar da Costa Neto e o PSD de Kassab, que topa qualquer acordo, entre outros. Ou seja, supondo-se que a iniciativa seja séria, Bolsonaro quer se aliar ao que de pior a política brasileira já produziu. Para quem rejeita a “velha política”, pode ser fim de carreira, com perda de apoio dos setores radicais que mais o apoiam.

Bolsonaro, no entanto, já implodiu outras tentativas de aproximação com políticos. Mas esta é uma manobra de mais fôlego para que readquira condições de governar - que perdeu em apenas 16 meses de Planalto - e tem também caráter reativo. Ao oferecer cargos a aliados ávidos, tentará impedir a reeleição (proibida) do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, seu inimigo, e do ambíguo Davi Alcolumbre, no Senado. Nesta difícil empreitada, se for bem-sucedido, conta arregimentar o número suficiente de deputados para barrar um impeachment.

Música | Mônica Salmaso, Dori Caymmi e Teco Cardoso - Ô de casas

Poesia | Fernando Pessoa - O guardador de rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.