- O Estado de S.Paulo
Há que buscar as convergências possíveis, que sempre existem, entre os mais moderados
A fantasia humana é um dom demoníaco. Está constantemente abrindo um abismo entre o que somos e o que gostaríamos de ser. Entre o que temos e o que gostaríamos que tivéssemos.” Assim escreveu Mario Vargas Llosa em La Verdad de las Mentiras. Pode um dom ser demoníaco ou a expressão é apenas um atroz paradoxo, produzido pela veia literária do autor?
Dom, afinal, significa qualidade ou característica especial, geralmente positiva. Demoníaco, algo negativo, relativo a ou próprio do demônio. A combinação das duas palavras tende a significar algo ruim se o abismo continuamente aberto pela fantasia humana leva a anomia, paralisia, desalento, inveja, ressentimento, cinismo, raiva. Mas poderia também evocar algo bom: a busca por desenvolver potencialidades, por crescer, enfrentar e superar com coragem as adversidades.
É instigante imaginar que o texto de Vargas Llosa possa aplicar-se também a sociedades e países, como o Brasil de 2018; e às perspectivas de consolidação da democracia nos próximos anos, entre nós como em várias outras partes do mundo, inclusive o desenvolvido. Ocorre-me a reflexão porque segue prolífica a temporada de livros sobre “suicídios” de regimes democráticos, alguns já mencionados neste espaço. Acabam de sair How Democracies Die, de S. Levitsky e D. Ziblatt, e Authoritarianism and the Elite Origins of Democracy, de V. Menaldo e M. Albertus, ambos ainda sem tradução. A maioria das obras procura lembrar como sucumbiram tantas democracias europeias nos anos 20 e 30 do século passado. Sobre a Tirania, de Timothy Snyder, e A Mente Imprudente e A Mente Naufragada, ambos de Mark Lilla, são belos exemplos de que há lições da História - recente - que não devem ser esquecidas. Afinal, os conflitos em questão levaram a dezenas de milhões de vítimas.