domingo, 21 de abril de 2019

Luiz Sérgio Henriques*: A cidade e os bárbaros

- O Estado de S.Paulo

É preciso tornar à ideia da grande aliança contra os que corroem as bases da democracia liberal

No ato final do comunismo histórico, a partir de 1989, um breve e conhecido texto de Norberto Bobbio, O reverso da utopia, conseguiu dar forma e sentido ao espantoso espetáculo que então se encenava. O mais radical dos sonhos políticos da História – dizia Bobbio – havia se transformado em distopia à moda do pesadelo imaginado por Orwell. Mesmo distantes dos grandes crimes do stalinismo, os regimes inspirados na revolução bolchevique, a URSS em primeiro lugar, arrastavam-se penosamente num quadro de ineficiência econômica, pasmaceira social e autoritarismo político, no qual se abria um fosso insuperável entre ideia e realidade, palavras e fatos, grandes ideais e realidades prosaicas da vida.

As populações submetidas sublevaram-se, em geral pacificamente, em torno das mais elementares – e insubstituíveis – consignas democráticas, como a liberdade de pensamento ou de reunião. As tentativas de autorreforma, como a glasnost (transparência) e a perestroika (reestruturação), mostraram-se afinal incapazes de dar um sopro de vida a regimes esclerosados, ainda que possivelmente tenham contribuído para a saída relativamente indolor de uma situação histórica difícil. Vivia-se o momento inaugural de um mundo que os mais otimistas, ou os mais ingênuos, julgavam livre dos conflitos abertos por uma restrita e quase inapelável visão bipolar. Como sabemos, ser adepto do comunismo ou do capitalismo era mais do que ter um credo político: implicava escolhas de vida, definia destinos individuais, de um lado ou de outro da “cortina de ferro”.

A sabedoria do velho Bobbio, contudo, não descartava pura e simplesmente o comunismo e os comunistas. Estes seriam, como no extraordinário poema de Kaváfis, os bárbaros cuja presença ameaçadora, às portas da cidade, condicionava a rotina de todos, paralisava as ações, congelava tudo numa atmosfera de ansiedade e medo. E, agora, a ausência dos bárbaros – pois subitamente a notícia é que não mais viriam – implicava um chamamento brutal à realidade. Não havia mais inimigos e a vida, como requer outro verso notável, devia ser vivida como uma ordem, sem mistificação.

Num plano mais geral – perguntava-se ainda o filósofo –, as democracias saberiam dali por diante responder aos imensos problemas que tinham gerado a utopia que, no curso do tempo, se transformara no seu exato contrário e fora vencida? Conseguiriam por si sós, sem o medo incutido pelo adversário temível, ampliar as liberdades, enfrentar novas e velhas desigualdades que dividiam norte e sul do planeta e, ao mesmo tempo, voltavam a se ampliar no interior de cada sociedade, mesmo as do Ocidente desenvolvido?

Bárbaros e habitantes da cidade, para seguirmos a sugestão do sábio e a metáfora do poeta, não haviam sido jamais seres indiferentes uns aos outros. Os bárbaros de 1917, ao assaltarem os céus, invocavam frequentemente o extremismo jacobino da revolução burguesa de 1789. Distinguiam-se com veemência dos girondinos do próprio campo. A velha social-democracia, afinal, era o tronco comum de que agora se afastavam ruidosamente os bolcheviques, para quem todos os outros passavam a ser “renegados” da causa proletária. E sobre esses traidores deveria recair um anátema ainda mais virulento do que o dedicado aos inimigos de classe. Uma esquerda afeita ao confronto nascia aí, motivando seus gestos extremados com a expectativa messiânica da revolução mundial.

Eliane Catanhêde: Bolsonarinho paz e amor

- O Estado de S.Paulo

Presidente tenta governar para seus eleitores, mas Guedes não está nem aí para votos e gurus

O fatídico telefonema do presidente Jair Bolsonaro suspendendo o reajuste do diesel (na versão oficial, só “pedindo explicações”) pode ter chocado o mercado e surpreendido muita gente, mas não os ministros e assessores, já habituados com um argumento recorrente do presidente a favor ou contra alguma medida: “mas o meu eleitor...”, “e o meu eleitor?”

Ocorre que os eleitores já votaram e já elegeram Bolsonaro, embolados no mesmo repúdio à esquerda, ao PT e a Lula, no mesmo conservadorismo de costumes e no mesmo liberalismo tardiamente adquirido do candidato. Agora, o jogo é outro e quem estava no mesmo time na campanha pode estar em lados opostos no governo.

Exemplos mais evidentes: ambientalistas e agricultores, agricultores e caminhoneiros, evangélicos e bolsonaristas LGBT, servidores e liberais reformistas... Aliás, dois times aguerridos a favor do Bolsonaro na campanha disputam hoje o Fla-Flu do governo: os sóbrios militares e os desenvoltos “olavetes”, da seita de Olavo de Carvalho.

Incapaz de arbitrar, Bolsonaro assistiu de camarote a Vélez Rodríguez ser tragado pela própria incompetência e pela guerra dos dois grupos e, agora, vê seu sucessor, Abraham Weintraub, demitindo o brigadeiro Ricardo Machado Vieira do segundo posto do MEC. Demiti-lo significa tomar partido do time dos “olavetes”.

Petulância do novo ministro? Ou ele está simplesmente em linha com os filhos do presidente, o 01, o 02 e o 03, a maior fonte de poder do tal guru que, como todo guru, não passa de um guru.

Enquanto Bolsonaro continua atrás dos eleitores perdidos e seu governo se enrola em ideologias, numa guerra direita versus esquerda, o mercado continua iludido, querendo acreditar que o presidente é Paulo Guedes.

Alguém precisa dizer aos grandes empresários, investidores, banqueiros e economistas que o presidente se chama Jair Messias Bolsonaro. Que é como é. Sempre foi. E é quem tem a faca e o queijo, a caneta e o Diário Oficial na mão.

Vera Magalhães: Arquivem o inquérito

- O Estado de S.Paulo

Recuo na censura a veículos foi correto, mas risco de arbítrio segue

Passada a Páscoa e serenados os ânimos, a dupla José Antonio Dias Toffoli e Alexandre de Moraes poderia iniciar a nova semana no Supremo Tribunal Federal anunciando o arquivamento do inquérito 4.781, aquele com mil e uma utilidades, nenhuma delas justificável sob a luz do bom senso e dos limites que devem ser respeitados numa democracia.

O tal inquérito multiuso foi o caminho que aliados hoje menos expostos sopraram nos ouvidos de Toffoli para se contrapor a ameaças – a maioria delas imaginária, fruto de uma paranoia hoje disseminada nos meios políticos e que atinge também os tribunais, como se vê – à Corte e seus integrantes. Incluiu de lambuja os “familiares”. Como paranoia costuma se expandir sem controle, por “ameaça” pode-se entender desde investigações de órgãos como a Receita Federal até xingamentos em aviões, passando por reportagens, iniciativas do Ministério Público e manifestações de cidadãos comuns nas redes sociais.

Nem com muita ginástica argumentativa alguém com um mínimo de honestidade intelectual pode defender que um artigo do regimento interno do Supremo Tribunal Federal confere legitimidade jurídica a um inquérito assim tão amplo, mantido sob sigilo, com objeto indefinido, alvos indistintos e duração elástica.

O recuo quanto à censura à revista Crusoé e ao site O Antagonista foi correto, dadas as circunstâncias. Funcionou como a saída honrosa a que me referi na coluna de quarta-feira passada, quando apontei o desgaste para o STF advindo da teimosia da dupla Toffoli-Moraes em manter o inquérito e as decisões arbitrárias tomadas em seu escopo.

Marcus Pestana*: Os seis pontos de uma agenda para o centro democrático

- O Tempo (MG)

Entre o populismo de direita e a esquerda regressiva

“Alguma coisa está fora da ordem, da nova ordem mundial”, assim cantou o poeta baiano diante do conturbado mundo contemporâneo. Efetivamente, as duas grandes ideias vitoriosas no desfecho do século XX – a liberdade e a democracia – se encontram ameaçadas. Na Turquia, na Hungria, na Venezuela, nos Estados Unidos e até aqui mesmo nestas terras tropicais. Há claramente uma mudança de humor na sociedade. O cidadão médio, pelo padrão tradicional, não é muito afeito a radicalismos e pouco disposto a riscos elevados. Em geral, gosta de estabilidade.

Mas vivemos tempos cinzentos. As coisas parecem de perna para o ar. Diante de um mundo onde o avanço tecnológico não necessariamente incorpora as pessoas; onde mercadorias e capitais podem transitar livremente mundo afora, mas as pessoas não; onde a globalização não consegue produzir respostas suficientes à miséria; e a intolerância emerge como resposta à diversidade cultural, étnica, política e religiosa, o radicalismo abastece a insatisfação das multidões.

Hoje, no mundo inteiro, crescem o apoio a segmentos e líderes populistas, radicais e sectários, diante da incapacidade do sistema político tradicional de produzir soluções para as angústias e as demandas da maioria da população.

No Brasil, temos uma Constituição democrática e vivenciamos nos últimos 34 anos o maior ciclo de liberdade de nossa história. Mas as eleições de 2018 se deram num clima de radicalismo inédito. E essa chama não se apagou. Ao contrário, as pontes de diálogo se estreitam, e os monólogos nas bolhas das redes sociais substituem o exercício da boa política que deveria buscar sempre consensos progressivos.

As instituições republicanas e democráticas precisam ser preservadas. É necessário dar um basta na atual marcha de insensatez. O presidente deprecia o Congresso Nacional, o Congresso quer uma CPI Lava Toga, o STF censura a imprensa, o Ministério Público age às vezes como se não houvesse ordenamento jurídico vigente, e a sociedade começa a se decepcionar precocemente com a chamada “nova política”. Essa trajetória é nitroglicerina pura. Não há a menor chance de dar certo.

Luiz Carlos Azedo: Santos e dragões

Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Após 20 anos de regime militar e 34, de democracia, o Brasil ainda não se livrou do populismo, do messianismo e do banditismo, que transitaram do Brasil rural para o urbano”

A trilogia Deus e o diabo na terra do Sol (1964), Terra em transe (1967) e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1968), que revolucionou o cinema brasileiro e teve grande impacto entre cineastas do mundo inteiro, apesar do contexto político em que foi realizada, trata de temas que permanecem atuais: o populismo, o messianismo e o banditismo. Messianismo e banditismo representam respectivamente Deus e o diabo, mas o maniqueísmo entre ambos, uma construção do cristianismo, não muda a realidade. Glauber tinha entre 25 e 30 anos quando produziu sua trilogia, da qual a obra mais importante, esteticamente, é Deus e o diabo, que estreou no dia 10 de julho de 1964.

O filme diz muito mais sobre a identidade nacional do que a simples alegoria do golpe militar de 1964, embora Glauber tenha sido perseguido, principalmente após o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, quando o regime se tornou uma ditadura aberta, na avaliação do ex-ministro da Educação Jarbas Passarinho. Inspirado na obra O Diabo e o bom Deus, do filósofo francês Jean Paul Sartre, Glauber adapta livremente o roteiro, para retratar a relação entre a religião e o poder no sertão brasileiro. Seus personagens, porém, são arquétipos que transcendem os contextos regional e temporal.

Manuel (Geraldo Del Rey) se liberta do patrão explorador (Mílton Roda) e, em companhia da mulher, Rosa (Yoná Magalhães), junta-se aos fanáticos liderados pelo profeta negro São Sebastião (Lídio Silva) e, depois, ao cangaceiro Corisco (Othon Bastos). O matador Antônio das Mortes (Maurício do Valle) é contratado pela Igreja e pelos latifundiários para eliminar as ameaças ao status quo que constituem tanto o líder messiânico quanto o justiceiro do cangaço. Glauber explora a literatura de cordel para tecer a trama do fanatismo religioso. Em meio a alucinações sebastianistas, revelava influências do neorrealismo italiano e da nouvelle vague, com cenas inspiradas em Luis Buñuel, Sergei Eisenstein e Akira Kurosawa. Glauber morreu aos 64 anos, consagrado como cineasta e incompreendido como gênio na cultura nacional.

A crítica ao sebastianismo e ao banditismo é sofisticada. Os discursos de Sebastião prometem o céu na terra: “Agora eu digo, o outro lado de lá, deste Monte Santo, existe uma terra onde tudo é verde, os cavalos comendo as flores e os meninos bebendo leite na água do rio. O homem come o pão feito de pedra e poeira da terra vira farinha. Tem água e comida, tem a fartura do céu e todo dia, quando o Sol nasce, aparece Jesus Cristo e Virgem Maria, São Jorge e meu Santo Sebastião”. Rosa percebe que as promessas do profeta não levarão a lugar nenhum. Sebastião também incomoda a elite local. O padre solicita a Antônio das Mortes, assassino de aluguel, que mate Sebastião e todos os seus seguidores; ele, porém, afirma ter receio de cumprir tais ordens por mexer com coisas de Deus. Antônio das Mortes tem medo de enfrentar Sebastião e seus seguidores.

Janio de Freitas: Salvar o que resta

- Folha de S. Paulo

Desgaste maior do Supremo fortaleceria o plano da extrema direita

Na situação extravagante em que está o Brasil, as decorrências sutis das anormalidades são piores do que a turbulência evidente, como a originada na reação polêmica do Supremo Tribunal Federal a ameaças e ataques. Caso os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes não tragam, com as investigações em curso, conclusões que justifiquem suas criticadas providências, o incremento à perda de autoridade do Supremo será grande e gravíssimo.

Não passa de bom tranquilizante a crença na firmeza da democracia incipiente em que estamos. Não pela presença, no poder, dos generais reformados que alicerçam o governo e servem de pedestal para Jair Bolsonaro posar de presidente. Os ventos poluídos vêm de outro quadrante.

Com a imprevista vitória eleitoral de Bolsonaro, a extrema direita passou a considerar viável o seu projeto, que, por definição, não se destina a um regime de consolidação do Estado democrático de Direito, liberdades civis, eleições livres, pluralidade política. Muito ao contrário. Tal projeto é que explica as escolhas desatinadas na composição do governo, continuadas a cada dia. Anúncios frequentes de medidas insensatas, umas, revoltantes outras. E mesmo atitudes que perturbam ministros, para maior embaraço da governança.

Por mais que a atual composição do Supremo possa ser insatisfatória, na média, para o devido pelo mais alto tribunal, por certo o é também para o plano de extrema direita. Por isso, Bolsonaro e os direitistas que o circundam incluíram no projeto da Previdência, apresentado por Paulo Guedes, a antecipação de cinco anos na aposentadoria compulsória de ministros dos tribunais superiores. Do Supremo, pois. Se aprovada, a antecipação permitirá a Bolsonaro nomear ministros ao seu feitio. São citados, aliás, para a primeira nomeação, João Gebran, desembargador da corrente extremada no Tribunal Regional Federal do Sul, e depois, claro, o retribuído Sergio Moro.

Desgaste maior do Supremo, portanto, fortaleceria o plano da extrema direita. Duvidosa embora, para muitos estarrecidos com a série de decisões decepcionantes do tribunal, ainda é lá que permanece a possibilidade de dificultar-se o plano medievalesco personificado em Jair Bolsonaro.

Bruno Boghossian: A valsa da base aliada

- Folha de S. Paulo

Presidente dança valsa atrapalhada enquanto auxiliares tentam formar base aliada

Depois de servir cafezinho no gabinete presidencial para Romero Jucá, Gilberto Kassab e outros caciques, no início do mês, Jair Bolsonaro tentou se explicar para seus seguidores. “Nada foi tratado sobre cargos, nem da parte deles, nem da nossa parte. Quem falou que haveria questões envolvendo cargos caiu do cavalo”, afirmou.

O presidente dança uma valsa meio atrapalhada em seu esforço para conseguir apoio no Congresso. Enquanto foge do assunto e trata com ironia a distribuição de espaços na máquina federal, seus auxiliares se esforçam para fazer essa partilha entre potenciais aliados.

Metade dos figurões do Palácio do Planalto trabalha hoje para destravar nomeações políticas que podem ajudar o governo a construir uma base de apoio consistente nas votações da Câmara e do Senado —em especial na reforma da Previdência.

Elio Gaspari: O Pacificador pôs fogo no STF

- Folha de S. Paulo / O Globo

A promessa de Toffoli era parolagem, mas ninguém esperava tantos incêndios

O ministro José Antonio Dias Toffoli assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal prometendo “pacificação” na corte e oferecendo um “pacto” aos demais poderes. Era parolagem típica de Brasília, mas ninguém poderia supor que sua conduta posterior provocasse tantos incêndios. Conflagrou o tribunal, confrontou-se com a Procuradoria-Geral da República e se tornou um defensor da censura com argumentos conceitualmente desastrosos e factualmente inconsistentes.

Como diria Lula, nunca na história deste país um ministro do Supremo Tribunal Federal defendeu a censura com tamanha insistência e indigência. Nem quando o STF sacramentava a censura dos generais, pois os ministros pouco falavam.

Graças aos ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, a piromania foi contida. O ministro Alexandre de Moraes revogou a censura ao site O Antagonista e à revista Crusoé, e é de se esperar que Toffoli sossegue em sua pregação desconexa. Fica faltando limar a truculência de um inquérito escalafobético que saiu por aí apreendendo computadores nas casas dos outros.

O ministro Moraes constrangeu um cidadão argumentando que ele fez propaganda de “processos violentos e ilegais para a alteração da ordem política e social”. Uau. Quem seria esse Che Guevara? Era o general da reserva Paulo Chagas, que “defendeu a criação de um tribunal de exceção para julgamento dos ministros do STF ou mesmo para substituí-los”.

Chagas tem suas ideias e foi candidato ao governo do Distrito Federal. Teve 110 mil votos (7%), ficou em quarto lugar e não foi ao segundo turno. O que ele propôs é farofa no bufê dos ventos políticos de hoje. Um filho do presidente já disse que para fechar o STF bastam “um cabo e um soldado”. (Em janeiro, Chagas postou que “o Brasil não é uma monarquia e a família Bolsonaro não é a família imperial”.)

Tudo isso são opiniões e ouvi-las (ou não) é o jogo jogado. Durante a ditadura do século passado que Chagas defende, a Justiça Militar mandou para a cadeia o historiador Caio Prado Jr. por ter dado uma entrevista inócua a um jornalzinho de estudantes. Na época, o que a ditadura queria era intimidar o meio acadêmico.

A crise do Supremo das últimas semanas teve uma peculiaridade. Pela primeira vez ela saiu de dentro do tribunal, contaminando o meio externo. Em todas as outras ocasiões a encrenca, grande, vinha de fora. Agora havia um mal-estar lá dentro e a partir dele criou-se a crise. Não se pode dizer que fosse um problema dos 11 ministros. Seriam três ou quatro, no máximo. Em algum lugar há uma fonte emissora de radioatividade. Nada melhor que a luz do sol para procurá-la.

Míriam Leitão: PGR não pode espelhar governo

- O Globo

Mandato de Raquel Dodge na PGR confirmou temores sobre ela, e um sucessor de fora da lista tríplice pode aprofundar crise institucional

Havia muitas esperanças em Raquel Dodge, várias se frustraram. Havia alguns temores e eles se confirmaram. Seu mandato terminará dentro de cinco meses, e não deve ser renovado, mas a dúvida é o que virá depois. Se o presidente Jair Bolsonaro ficar dentro da lista tríplice do Ministério Público Federal tem mais chances de acertar. Se buscar um espelho seu no MP encontrará. Sempre haverá quem se disponha a ser um aliado do Executivo, mas não é papel da PGR defender o governo.

Se Bolsonaro escolher alguém do Ministério Público Militar para a PGR estará produzindo um monstrengo institucional, porque quem escolhe o procurador-geral militar é o procurador-geral da República. Se buscar um, fora da lista tríplice, que se encaixe na ideologia que ele professa, vai encontrar, porque existem procuradores que defendem coisas como a escola sem partido e transformação de terras indígenas em centros de mineração. Nesse momento o MP está em plena campanha com procuradores buscando votos. Outros correm por fora e fazem acenos para o presidente. Quem for escolhido, só fará bem seu papel se entender que na democracia os poderes são independentes, e o pressuposto é que haja pesos e contrapesos.

Toda instituição tem a defesa dos interesses corporativos, mas também a defesa dos valores comuns. A lista tríplice é muito mais a segunda vertente, mas é acusada de ser uma distorção sindical. Têm lista tríplice os 26 Ministérios Públicos estaduais, o MPDF, o MPM. E, portanto, o MPF.

O procurador Geraldo Brindeiro ficou com a pecha de ser o engavetador-geral. O PGR precisa ser pessoa de estado e não de governo. Brindeiro é acusado de ter sido de governo. Os escolhidos na lista, a partir de 2003, pelo governo do PT, não foram servis aos interesses do poder daquele momento e isso foi fundamental para o avanço da democracia. Basta conferir o que fizeram os procuradores-gerais. Antonio Fernando denunciou o mensalão, Roberto Gurgel conduziu, instruiu e pediu a condenação dos envolvidos no mensalão. Rodrigo Janot pediu a execução das penas, começou a Lava-Jato e fez a força-tarefa. Raquel Dodge, contudo, fez menos do que poderia contra o governo que a indicou. É criticada por inação e algumas atuações discutíveis.

Bernardo Mello Franco: Um antiministro no Meio Ambiente

- O Globo

Ricardo Salles transformou o ministério num playground dos ruralistas. Sua meta é destruir o que devia proteger

Entre a eleição e a posse, o presidente Jair Bolsonaro desistiu de extinguir o Ministério do Meio Ambiente. Talvez fosse melhor ter mantido o plano original. A nomeação de Ricardo Salles transformou a pasta num playground da bancada ruralista. Ele atua como um antiministro, empenhado em destruir o que deveria proteger.

A escolha do advogado paulista já foi uma provocação. Antes de assumir o cargo, ele foi condenado por improbidade administrativa, acusado de fraudar um plano de manejo para favorecer mineradoras. Fundador do grupo Endireita Brasil, candidatou-se a deputado pelo Partido Novo, financiado por fazendeiros e fabricantes de armas. Não se elegeu, mas arrumou uma boquinha no governo do capitão.

Desde janeiro, Salles tem se dedicado ao desmonte do ministério. Acabou com a secretaria de mudanças climáticas e apoiou a transferência do Serviço Florestal Brasileiro e da Agência Nacional de Águas para outras pastas.

O antiministro também se especializou em ameaçar e perseguir servidores. Em fevereiro, promoveu uma demissão em massa no Ibama. Cortou as cabeças de 21 dos 27 superintendentes regionais do órgão, responsável pelo combate ao desmatamento.

Merval Pereira: O peso da imagem

- O Globo

Bolsonaro terá nova chance, ao receber nos EUA o prêmio Pessoa do Ano, de melhorar sua própria reputação e a do Brasil no exterior

Os ecos de um passado polêmico, não poucas vezes ultrajante, que ainda se fez presente na campanha eleitoral de Bolsonaro e marcou diversos momentos dos primeiros cem dias de seu governo, promoveram desgastes na imagem do Brasil no exterior. Desde que foi eleito, o presidente sofre com essa péssima imagem, o que ficou evidenciado na recusa do Museu de História Natural de Nova York de servir de palco para a homenagem que lhe será feita pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos como a Pessoa do Ano. 

Esse retrocesso deve-se muito também à campanha petista de acusar as eleições de 2018 de terem sido fraudadas, pelo fato de o ex-presidente Lula, condenado em segunda instância pela Justiça brasileira, ter sido impedido de se candidatar.

Está preso há um ano, condenado a mais de 12 anos, mas os petistas tentam vender ao mundo, às vezes com sucesso, a ideia de que é um preso político, e não mais um político latino-americano preso por corrupção. 

A festa da Pessoa do Ano é um evento tradicional que escolhe um brasileiro e um americano para homenagear, com o objetivo de incrementar a relação comercial entre os dois países. Ex-presidentes como Fernando Henrique e Bill Clinton já foram homenageados, assim como figuras como o ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg e o então juiz Sergio Moro, hoje ministro da Justiça. 

Bloomberg, por sinal, protagonizou anteriormente uma situação inusitada, pois alegou falta de agenda para não aceitar o prêmio junto com o atual governador de São Paulo João Doria. Quem foi homenageado na ocasião foi o ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil Thomas Shannon.

Ascânio Seleme: Hora de renascer

- O Globo

Não há melhor momento para dar uma virada do que na Páscoa. Passadas as reflexões e homenagens que se faz durante a celebração do martírio e da morte de Cristo, comemora-se hoje o renascimento, a sobrevida, a virada. Os ovos de Páscoa distribuídos nesse dia guardam o simbolismo do nascimento e da vida na cultura cristã, que toca 86,8% dos brasileiros, segundo o Censo de 2010 do IBGE.

Milhões de cristãos em todo o país, os que de fato guardam fé em seus corações, julgam ser esta a data mais adequada para mudar, mudar para melhor. Muitos enfrentam a quaresma como uma etapa de sacrifício e purificação que culmina no domingo do renascimento.

Um governo que teve em seu lema eleitoral a expressão “Deus acima de todos” poderia comungar dessa ideia e apostar numa virada a partir de agora. Não custa jurar diante do Altíssimo que se quer errar o menos possível. Não há nada mais puro do que a promessa de que se vai buscar o acerto e consultar aqueles que sabem mais sempre que se for tomar uma decisão importante, que mexa com a vida de pessoas, empresas ou instituições.

Dorrit Harazim: A catedral do poder

- O Globo

Foi a grandiosa demonstração de torneiras abertas que reacendeu ressentimentos e rompeu a trégua sentimental entre franceses

Durou pouco a irmandade genuína e civilizatória que brotou das chamas da Catedral Notre-Dame. Apesar da ausência de cenas horrendas comuns aos atentados na França de anos recentes — apenas três pessoas tiveram ferimentos leves no incêndio da semana passada — , a família humana ficou em choque com a perda desse bem universal. Bela e eterna, Notre-Dame era quase um parente. E a França, num primeiro impacto, pareceu cerrar fileiras para reencontrar parte da alma perdida.

Como foi fartamente noticiado, as primeiras doações pipocaram enquanto as chamas ainda ardiam dentro da nave da catedral. François-Henri Pinault, o segundo homem mais rico do país (fortuna avaliada em 26 bilhões de euros), anunciou um aporte de 100 milhões de euros. Poucas horas depois, Bernard Arnault, seu rival mais bem-sucedido na indústria do luxo (fortuna estimada em 76 bilhões de euros), dobrou a filantropia do concorrente e anunciou que doaria 200 milhões para a empreitada. Outras famílias abonadas do país, empresas francesas e corporações globais também compareceram, além de cidadãos comuns, se somaram ao apelo.

Mas foi justamente essa grandiosa demonstração de torneiras abertas, tão invejada mundo afora, que reacendeu ressentimentos e rompeu a trégua sentimental entre franceses.

Sinal dos tempos, foi um tuíte de menos de 140 caracteres que melhor encapsulou a fervura social entumecida pela tragédia. “Victor Hugo agradece os generosos doadores dispostos a salvar a Notre-Dame e propõe que façam o mesmo com Os Miseráveis”, postou o escritor Ollivier Pourriol, referindo-se às obras do romancista que imortalizou a catedral. “Como é possível? 100 milhões, 200 milhões num piscar de olhos?”, pergunta Philippe Martinez, líder da central sindical CGT.

Mario Vargas Llosa*: Uma tragédia peruana

- O Estado de S.Paulo

Seria trágico se a comoção do suicídio sabotasse o trabalho dos procuradores peruanos

Eu o conheci durante a campanha eleitoral de 1985, por intermédio de Manuel Checa Solari, um amigo comum que se empenhou para que nós travássemos conhecimento. Era um homem inteligente e simpático, mas algo nele me alertou e, no dia seguinte, fui à TV para declarar que não votaria em García, mas em Luis Bedoya Reyes. Não era um homem rancoroso já que, eleito presidente, ofereceu-me a embaixada na Espanha, que não aceitei.

Seu primeiro governo (1985-1990) foi um desastre econômico e a inflação chegou a 7.000%. Ele tentou nacionalizar os bancos, as seguradoras e todas as instituições financeiras, medida que não só acabaria arruinando o Peru, mas também eternizaria no poder o seu partido, Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra), conhecido também como Partido Aprista Peruano (PAP). Nós o impedimos em uma grande mobilização popular hostil, que o obrigou a recuar. Seu apoio foi decisivo para Alberto Fujimori vencer a próxima eleição presidencial, em 1990, e dois anos depois dar um golpe de Estado.

García teve de se exilar. Seu governo seguinte (2006-2011) foi muito melhor do que o primeiro, embora, desgraçadamente, tenha sido arruinado pela corrupção, sobretudo a associada à empresa brasileira Odebrecht, que venceu licitações de obras públicas importantes corrompendo altos funcionários do governo. O Ministério Público vinha investigando Alan García sobre esta mesma questão e havia decretado sua detenção provisória quando ele cometeu suicídio. Pouco antes, ele pediu asilo no Uruguai, alegando ser vítima de uma perseguição injusta, mas o governo uruguaio negou seu pedido entendendo, com toda razão, que no Peru o Judiciário é independente do governo e ninguém é perseguido por suas ideias e convicções políticas.

Durante o seu segundo mandato, eu o vi várias vezes. A primeira, quando o fujimorismo quis impedir que fosse aberto o Lugar de la Memoria, onde seriam relatados seus muitos crimes políticos sob pretexto da luta antiterrorista. A pedido de García, eu presidi a comissão que levou adiante esse projeto que, felizmente, é uma realidade.

Quando fui agraciado com o Nobel de Literatura, ele me telefonou, me felicitou e me ofereceu um jantar no palácio do governo, quando me incentivou a me candidatar à presidência. Acho que eu o vi pela última vez em uma peça na qual também atuei, As Mil e Uma Noites.

Clóvis Rossi: Classe média é espremida aqui e na OCDE

- Folha de S. Paulo

Encolhimento não é um fenômeno apenas econômico e social, mas tem também implicações políticas

Caro leitor, se você é da classe média, como eu e como a maioria dos leitores desta Folha, tenho um aviso desagradável: estamos encolhendo. É pelo menos o que diz um amplo relatório da OCDE(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o clubão dos 36 países mais ricos do mundo).

“Hoje em dia, a classe média parece crescentemente estar em um barco navegando águas turbulentas”, disse Angel Gurría, secretário-geral da organização, ao lançar o relatório.

Cá entre nós, você já deve ter pensado o mesmo em algum momento recente, certo? O encolhimento da classe média não é um fenômeno apenas econômico/social: tem também implicações políticas. Classe média costuma ser um fator de estabilidade política.

Para Gurría, economista e ex-ministro mexicano, uma classe média cujo padrão de vida seja protegido e estimulado “ajuda a promover crescimento sustentável e a criar um tecido social mais coeso e estável”.

Em uma das edições do fórum de Davos, ouvi John Sweeney, então presidente da poderosa central sindical americana AFL/CIO, criticar a sabedoria convencional que atribuía a uma guinada neoliberal de Bill Clinton a prosperidade dos anos dourados que então se viviam. Sweeney dizia que o grande fator de estabilidade e da prosperidade da época era exatamente a imensa classe média americana.

O informe da OCDE mostra que, em três décadas, a porcentagem de famílias consideradas de classe média caiu de 64% para 61%.

O Brasil não está incluído no estudo por não ser ainda membro do clubão, mas também nele a classe média está “espremida”, como diz o título do estudo. Detalhes mais adiante.

Um dos motivos do declínio nos países da OCDE é simples de explicar: o custo de vida subiu mais que as rendas dessas famílias. Exemplo: habitação consome hoje um terço do ingresso disponível, quando comia apenas um quarto nos anos 90.

Samuel Pessôa*: Mediocridade a perder de vista

- Folha de S. Paulo

Sem a liderança da Presidência, a reforma será magra; lenta recuperação sem rupturas à frente

Parece que Bolsonaro foi bem-sucedido em seu objetivo. Conseguiu responsabilizar o Congresso Nacional pela necessidade de aprovação da reforma da Previdência.

Apesar de o Congresso responder aos interesses dos grupos e corporações lá representados e de ter dificuldade de ecoar o interesse difuso, a percepção de que não encaminhar nosso problema fiscal nos condena à recessão econômica é suficiente para movimentá-lo.

Ou seja, aparentemente a reforma será aprovada sem que Bolsonaro tenha que liderar o processo ou sem que ele tenha que operar nosso sistema político na chave tradicional.

Sempre achei muito ruim essa escolha do presidente. Penso haver evidências de ser possível operar nosso presidencialismo de coalizão de forma saudável.

Assim, dada a recusa do presidente em empregar os instrumentos tradicionais da política, a reforma será aprovada "por gravidade". Por esse motivo iniciei a coluna afirmando que há sinais de que Bolsonaro foi bem-sucedido. Há custos, no entanto. Ao operar a política dessa forma, o que será aprovado será muito pouco e muito tarde. Essa é minha expectativa.

Temos que avaliar, portanto, qual será a reação da economia a esse desfecho medíocre da reforma.

José Roberto Mendonça de Barros*: Do ponto de vista do PIB, o ano está perdido

- O Estado de S.Paulo

O apoio de Bolsonaro à reforma tem sido limitado. Sem fazer política, não vai dar certo.

Após a eleição, as expectativas dos produtores e consumidores, famílias e empresas melhoraram de forma notável, refletindo a percepção de que tínhamos uma oportunidade única para retomar o crescimento sustentável, o que sempre nos pareceu correto.

Muitas coisas avançaram nos últimos anos: inflação ancorada firmemente abaixo da meta, os juros mais baixos da história da Selic, um setor externo muito robusto e muitas empresas ajustadas.

Além disso, houve grande avanço na percepção de que a crise fiscal ficou insustentável (basta olhar a situação de muitos estados) e a reforma da Previdência se tornou indispensável como início de várias mudanças na área fiscal.

Em terceiro lugar, o investimento necessário para a retomada do crescimento só ocorrerá com o capital privado atuando em projetos de infraestrutura que, incidentalmente, serão fundamentais para a melhoria do mercado de trabalho. Por esse caminho, poderíamos voltar a crescer.

Entretanto, desde o primeiro momento, chamamos a atenção para duas questões importantes: a falta de experiência de governo do presidente e de seus principais ministros já indicava que haveria, necessariamente, uma curva de aprendizado que cobraria um preço.

Ao mesmo tempo, o ministro Paulo Guedes começou a construir um ambicioso programa liberal. Ora, a história indicava que o presidente nunca havia tido essa visão de mundo. Ao contrário, sempre fora praticante de um nacionalismo e de um corporativismo. Logo, como conviveriam essas duas visões?

Crise empareda governos estaduais: Editorial / O Globo

Um resultado do aumento de gastos previdenciários sem controle é a penúria dos sistemas de saúde

Três renegociações de dívidas realizadas por estados com a União apenas retardaram o cerco da crise fiscal a muitos governadores. Entendem economistas, portanto, que esta é a demonstração cabal de que o turbilhão financeiro em que se encontram estados se deve ao fluxo de seus gastos e não ao estoque de seus endividamentos. E, nestes gastos, destacam-se aposentadorias/pensões e folha de salários dos servidores, nesta ordem. Terça-feira, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou dados sugestivos: em 2018, sobre 2017, a média dos gastos com pessoal de 23 estados, incluindo o Distrito Federal, subiu, em termos reais —deduzido o efeito da inflação — 2,9%; mas, com aposentados e pensionistas, o crescimento foi de 7,9%, enquanto a folha dos servidores ativos, apenas 0,7%. Já o PIB do país avançou esquálido 1,1%. É indiscutível que a expansão sem controle das despesas previdenciárias sufoca governadores e também prefeitos.

Explicam-se as cenas dramáticas que se veem com frequência no noticiário de televisão de pessoas da população menos favorecida sendo mal atendidas —quando atendidas—em emergências de hospitais e postos de saúde públicos. Governadores e prefeitos não costumam tocar no assunto por conveniência política, para não desagradara corporações sindicais do funcionalismo.

Os elevados índices de participação das despesas de pessoal na receita corrente líquida (RCL), quando deduzidos desta ingressos extraordinários, mostram o tamanho do problema. O Rio de Janeiro é caso típico. Há, ainda, outras manobras contábeis para mascarara situação.

Nova política, velha e inepta: Editorial / O Estado de S. Paulo

Desorganizado, acuado e forçado a negociar antes da hora detalhes da reforma da Previdência, o governo do presidente Jair Bolsonaro falhou até hoje na execução de novas políticas de alguma relevância. O ministro da Economia, Paulo Guedes, já admitiu antecipar a Estados até R$ 6 bilhões do leilão do pré-sal previsto para outubro. Objetivo: garantir apoio de governadores à mudança das aposentadorias. Seu chefe, encastelado no Palácio do Planalto, interveio na gestão da Petrobrás, forçou o adiamento de um reajuste do diesel e acabou conseguindo um aumento menor. Resumindo: 1) votos continuam sendo comprados, sem escândalos como o do mensalão, mas o troca-troca inegavelmente permanece em vigor; 2) ao mesmo tempo, o intervencionismo é reeditado e, pior que isso, praticado de forma voluntarista, numa ação de varejo, sem ser sequer disfarçado como parte de um projeto econômico. É isso a nova política?

As figuras mais sérias do Executivo nem mesmo tentam negar a confusão dominante no governo por mais de três meses. Tentam, no entanto, dar boas notícias. Apesar de ruídos políticos, tem melhorado o diálogo dentro do Executivo e entre o Executivo e o Legislativo, disse em São Paulo, num evento da Câmara de Comércio França-Brasil, o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida. O secretário, remanescente da gestão do presidente Michel Temer, é, dentro da equipe, uma rara figura com experiência de governo.

O tabu do mínimo: Editorial / Folha de S. Paulo

Melhor caminho para retomar a valorização do piso salarial é desvinculá-lo dos benefícios da Previdência

As diretrizes propostas para o Orçamento de 2020 consideram um salário mínimo de R$ 1.040 mensais, o que implica a mera correção inflacionária —sem ganho real. Ainda que esta não deva ser tomada como uma decisão definitiva, o governo Jair Bolsonaro (PSL) tem reduzida margem de manobra para uma política de valorização.

No Congresso, onde a articulação do Planalto se mostra frágil, lideranças partidárias já falam em assegurar um aumento de 1,1% acima do INPC, taxa correspondente à expansão da economia em 2017.

Nessa hipótese, seria seguida a sistemática estabelecida em lei a partir de 2011, que entretanto perdeu a validade neste ano.

Ocorre que a continuidade dessa fórmula se torna cada vez mais proibitiva para os cofres públicos, na medida em que o salário mínimo serve de referência para aposentadorias e pensões, benefícios trabalhistas e assistenciais. Cerca de dois terços dos segurados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) recebem o piso.

O governo estima que cada R$ 1 adicional no valor custe quase R$ 300 milhões anuais ao Tesouro Nacional. Ou seja, um ganho real de apenas 1% impactaria as contas em cerca de R$ 3 bilhões.

*Alon Feuerwerker: Margem para aumentar o fogo

- Blog do Noblat / Veja 

Enquanto isso, no Congresso...

Regra na política: um lado querer exatamente o que acusa o outro de tramar, quando o outro está no poder. O governo Bolsonaro, por exemplo, adoraria achar um caminho para alinhar completamente o Supremo Tribunal Federal ao Executivo. Há iniciativas abertas, como a CPI da #LavaToga, ou a amputação, escondida na reforma da previdência, da chamada Lei da Bengala. E há o sonho de mudar a aritmética do STF ampliando decisivamente o número de ministros.

Era previsível, e foi previsto: o maior risco político de 2019 seria a frustração do Bonaparte, atrapalhado pela profusão de núcleos de poder numa Brasília desorganizada pela fraqueza dos governos Dilma II e Temer. Parece uma aberração histórica, mas só parece: o Bonaparte da hora precisa dar um jeito de o seu “Congresso de Viena” não ficar só no papel, mas para tanto é essencial concentrar a força. E o único jeito é suprimir os focos de resistência. E o STF é a bola da vez.

Os últimos dois bolsões resistentes ao bonapartismo-raiz são o STF e o assim chamado centrão. Mas é difícil enquadrar o segundo se o primeiro continua a ser uma válvula de escape. Então é hora de colocar os tanques para rodar. A dúvida? Se a empreitada vai acabar como a Batalha de Berlim (1945), na capitulação incondicional do inimigo, ou como a de Moscou (1941-42), com a necessidade de recuo. Ou se, desta vez, a Lava-Jato vai encontrar sua Stalingrado (1943).

O STF precisou bater em retirada da manobra do chega-pra-lá na imprensa. O acordo essencial entre esta e o bolsonarismo vai firme: se não mexerem na liberdade de imprensa, lato sensu, façam o que quiserem. Há lamúrias localizadas, por o combate à dita velha política atrapalhar a reforma da previdência, mas é só. No resto, vale o risco que a faca fez no chão. E o Planalto foi inteligente, não vacilou: aproveitou para declarar seu amor à imprensa livre. E marcou uns pontinhos.

Do episódio todo, a constatação de estarmos um pouco mais avançados que os americanos na partidarização aberta das instituições. Ali não teve como acusar formalmente Donald Trump de conspirar com os russos para se eleger, pois infelizmente os investigadores não acharam nenhum traço de prova. Agora, a oposição democrata agarra o fio desencapado da “obstrução”. Mas nem disso Trump foi acusado após a longa caçada. Como tuitaria ele próprio, SAD!

Se fosse aqui… Por isso, os ministros-alvo no STF preferem não ficar esperando sentados, na ilusão de que “as instituições estão funcionando”. Eles mesmos convivem há anos com o sepultamento do in dubio pro reo e do falecido art. 5º, LVII da Constituição, o que só define a culpa após o trânsito em julgado. Entre outras flexibilidades jurídicas. Mas, se o sistema de freios e contrapesos está desligado, uma hora a conta vai chegar. E chegou. Agora é correr atrás do prejuízo.

Como vai acabar? E quando? É improvável que o conflito aberto entre poderes esteja perto de terminar, talvez estejamos mais perto do fim do começo que do começo do fim. Mas o Planalto pode suportar bem uma longa queda de braço com o outro extremo da Praça dos Três Poderes, se a terceira ponta do triângulo entregar a mercadoria. Nesse jogo de três, ganha quem junta dois.

O Planalto pode aumentar o fogo que esquenta a chapa do Supremo mas precisa ao mesmo tempo fazer a coisa andar no Congresso. Se não, virá automaticamente o aumento do nervosismo no mercado financeiro, que hoje em dia é o parâmetro decisivo para as decisões governamentais. Vide as idas e vindas do aumento do preço do diesel. Bonapartes não podem dar a impressão de estarem manietados.
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Enquanto olavistas, militares, lavajatistas, liberais, garantistas, neo-iluministas e outros bichos se engalfinham na disputa pelo poder, a oposição, inteligentemente, assiste de fora e cuida de seus próprios assuntos. Não tem problema dar uns pitacos, mas o mais arriscado seria se meter nessa briga de facções. #FicaaDica.

*Alon Feuerwerker, jornalista e analista político da FSB Comunicação

*Gaudêncio Torquato: Chimpanzé, Maquiavel e Gandhi

- Blog do Noblat / Veja

Poder em jogo
A democracia é um jogo de cooperação e oposição. No certame de cooperação, as regras são a persuasão, a negociação, os acordos, a busca de espaços de consenso. Já no jogo de oposição, procura-se medir forças, confrontar o adversário, provocar tensões, impor a vontade pela força. Ultimamente, o jogo das oposições não tem sido bem jogado, tanto em função da derrota por elas sofrida no último pleito como pela reclusão do seu principal jogador, o ex-presidente Lula.

Mas no Brasil, as manobras divisionistas acabam se superpondo às táticas de cooperação. Veja-se o governo Bolsonaro. Pela vitória obtida por ele, as reformas deveriam estar em situação adiantada. Mas caminham devagar, quase parando.

E não se pense que esse andar de tartaruga se deve à oposição, aos chamados partidos de esquerda, PSOL, PT, PSB. O confronto mais forte provém de grupos incrustados nas entranhas do próprio Governo. Os partidos do centrão, todos com um pé atrás, olham para onde caminha o governo, lutam por espaços de poder e influência.

Pinço a analogia do sociólogo Carlos Matus, em seu ensaio Estratégias Políticas. Impera entre nós o estilo chimpanzé de fazer política. Que se baseia no projeto de poder pessoal, de rivalidade permanente. É assim o chimpanzé. Cada partido quer ser melhor e com mais força que outro. Já o presidente Bolsonaro e seu entorno militar parecem optar pelo modelo Maquiavel, onde o personalismo do Príncipe se subordina a um projeto de Estado.

Presenciamos uma luta entre os dois estilos. De um lado, os políticos, inspirados no lema “o poder pelo poder”, usam a arma do voto no Congresso para atingir o objetivo de ampliar territórios. Disparam processos de tensão, ameaçam o Governo com retiradas de apoio. Assim, a natureza política se assemelha ao instinto chimpanzé, para quem a luta tem como foco a conservação da própria espécie (“o fim sou eu mesmo”).

Machado de Assis visto pelo olimpo

Livro reúne textos de Mário de Andrade, Rui Barbosa, Lima Barreto e outros escritos entre 1908 e 1939, sobre o maior ícone literário brasileiro

André Cáceres / Aliás / O Estado de S.Paulo

“A 21 de junho do ano da graça de 1839, reinando no Brasil a jovem majestade de D. Pedro II, nascia no Rio de Janeiro, de pais pobres, uma criança de sangue mistura. Três quilos de carne humílima, pigmentada, nevrótica – mas que misteriosamente evoluiriam presididos por musas e filósofos, na predestinação de dar ao mundo Alguém.” É assim que narra Monteiro Lobato o nascimento de Joaquim Maria Machado de Assis, em um dos textos do livro Escritor por Escritor – Machado de Assis Segundo seus Pares.

Organizado por Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn, esse precioso trabalho de pesquisa reúne artigos, poemas, cartas e excertos de 33 dos principais escritores do Brasil sobre o autor de Dom Casmurro.

Dispostos em ordem cronológica, entre a morte do Bruxo do Cosme Velho, em 1908, e as comemorações de seu centenário, em 1939, os textos oferecem um panorama de sua recepção pelos autores que viveram à sombra do presidente da Academia Brasileira de Letras. É curioso perceber que, já em vida, Machado era considerado quase unanimemente “o melhor do nosso patrimônio literário”, como escreve Artur Azevedo, em um processo de canonização impensável para qualquer escritor contemporâneo ou futuro, por melhor que seja.

O tom hagiográfico dos textos, repletos até de termos religiosos, pode, de acordo com Hélio de Seixas Guimarães, ter prejudicado a leitura crítica de sua obra. “A própria ideia da consagração literária, da formação do cânone, tem uma acepção religiosa. No caso do Machado, há o uso de uma retórica laudatória que dificulta o acesso àquilo que lhe dá a grandeza. Esses clichês são uma forma de construir uma figura sem entrar em contato com a dificuldade da própria obra.” Ieda Lebensztayn acredita que essa veia apologética mascara “o problema da falta de leitores no País e a difícil popularidade do romancista”. Ela cita um artigo de Graciliano Ramos, de 1939, que será incluído no segundo volume da obra, em que ele “critica a transformação, empreendida em muito pelo Estado Novo, de Machado em estátua, num processo de admiração supersticiosa pela figura do escritor que não se acompanhava da leitura da obra.”

Com a ascensão do modernismo, o declínio do interesse pela obra machadiana foi palpável. Hélio constata que o acervo digital do Estado “registra apenas 126 textos que fazem alguma menção a Machado de Assis durante toda a década de 1920, ao passo que na década de 1910 registram-se 249, e na de 1930, 222.” Ieda relata que foi justamente após os anos 1930 que a fortuna crítica se adensou, com trabalhos de Augusto Meyer (1935), Lúcia Miguel Pereira (1936) e Astrojildo Pereira (1939). Em 1960, a crítica norte-americana Helen Caldwell revolucionou a compreensão da obra ao apontar Bentinho como um narrador não confiável em Dom Casmurro, dando espaço para a perspectiva de Capitu e para uma interpretação mais aberta do autor.

Em 2019, coincidentemente, Memórias Póstumas de Brás Cubas será um dos primeiros lançamentos da recém-criada editora Antofágica, cuja proposta consiste justamente em reacender o interesse do público pelos clássicos da literatura brasileira e estrangeira, com textos de apoio acessíveis e sofisticados projetos gráficos. A reedição de Memórias Póstumas, por exemplo, conta com ilustrações de Candido Portinari; a Metamorfose, de Franz Kafka, ganhou ilustrações por Lourenço Mutarelli.

Escritor por Escritor começa com as palavras que Rui Barbosa pronunciou diante da lápide do Bruxo, quando o proclama “exemplar sem rival entre os contemporâneos da elegância e da graça”. Mário de Alencar dá um depoimento tocante do sofrimento de Machado nos anos subsequentes à perda de Carolina, que Mário acompanhou de perto. Para Olavo Bilac, “Machado de Assis temia acima de tudo o barulho e a cintilação das palavras vazias, que tanto agradam aos espíritos fúteis.” É interessante ver que os trabalhos de Machado, hoje vistos como uma obra profundamente crítica à sociedade brasileira, era retratada por seus contemporâneos como descolada da realidade, vista como arte pela arte, para o bem e para o mal.

Entre os primeiros textos, carregados de luto, destaca-se o de Euclides da Cunha, que descreve o leito de morte do autor, onde se reuniam imortais da ABL. Bate à porta um adolescente. “Ninguém ali o conhecia; não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isso, ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visitá-lo.” O anônimo foi então levado ao enfermo. “Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu. (...) Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua terra.”

Cecília Meireles: Romanceiro da Inconfidência (trecho)

Não posso mover meus passos
Por esse atroz labirinto
De esquecimento e cegueira
Em que amores e ódios vão:
- pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
- avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
- descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.

Batem patas de cavalos.
Suam soldados imóveis.
Na frente dos oratórios,
que vale mais a oração?
Vale a voz do Brigadeiro
sobre o povo e sobre a tropa,
louvando a augusta Rainha,
– já louca e fora do trono –
na sua Proclamação.

Ó meio-dia confuso,
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
Cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados …
- liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
e o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentiras e verdade estão.

Marcus Viana e Orquestra Sinfônica de Minas Gerais - Canção do Herói (Tiradentes)