A grande discussão política que domina os debates sobre a próxima eleição presidencial de outubro é se o presidente Lula terá a capacidade de transferir sua popularidade para a candidata que tirou do bolso de seu colete, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. E se a eleição será plebiscitária.
A centralidade da figura de Lula na sua sucessão é a confirmação de que ele encerra seus oito anos de Presidência em situação singular na história política brasileira recente.
Não bastassem os 83% de popularidade interna, o reconhecimento internacional consolidou-se no final de 2009 com diferentes homenagens à sua liderança, vindas de órgãos da grande imprensa europeia, como os jornais “El País”, da Espanha (considerado hoje o mais importante jornal europeu), “Le Monde”, da França, e o “Financial Times”, de Londres, que colocou Lula entre os 50 personagens que mais influenciaram a década que se encerra.
Mas querer, como Lula quer, transformar a próxima eleição em um plebiscito onde ele estará em jogo, não é meramente um movimento político esperto, mas uma redução do momento que o país vive, uma tentativa de evitar que a população escolha o melhor candidato para restringir a escolha a uma questão quase pessoal.
Dentro das circunstâncias, a estratégia do governador de São Paulo, José Serra, virtual candidato do PSDB à sucessão de Lula, está se mostrando adequada. Muitos o criticaram, inclusive eu, por ter evitado críticas diretas ao presidente Lula e, ao contrário, até mesmo querer mostrarse em público como um político próximo a Lula.
Mesmo correndo o risco de criar a impressão de que não se coloca como uma alternativa de mudança em outubro, Serra está na verdade empenhado em não deixar que a eleição se torne plebiscitária.
Impedir que o eleitorado o identifique como o “anti-Lula”, transferindo para Dilma o papel que foi escolhida para representar de “o mesmo que Lula”, é a decisão certa.
Ao fazer isso, Serra mantém sua possibilidade de ampliar o eleitorado para a direita e para a esquerda, da mesma maneira que o lulismo fez nas eleições de 2006, mudando a geografia eleitoral do candidato Lula.
O professor Cesar Romero Jacob, da PUC do Rio, já havia identificado esse fenômeno a partir da análise da penetração da votação de Lula nos grotões do Norte e Nordeste com base nas políticas assistencialistas como o Bolsa Família e no aumento do salário mínimo.
O cientista político André Singer, que já foi porta-voz do presidente Lula e hoje é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, publicou recentemente um estudo onde mostra que os votos do “subproletariado”, beneficiado pelos programas assistencialistas do governo e pelo aumento do salário mínimo, foram para Lula, mas dentro da lógica da direita, que identificou no governo um fiador da estabilidade econômica e garantidor de sua nova situação financeira.
Segundo o estudo, em 2006, enquanto os eleitores de escolaridade superior dividiamse por igual entre os campos da esquerda (31%), do centro (32%) e da direita (31%), entre os que frequentaram até a quarta série do ensino fundamental, a direita tinha 44% de preferência, mais do que o triplo de adesão que tinha a esquerda (16%) e o centro (15%).
Segundo Singer, “na ausência de um avanço da esquerda, o primeiro mandato de Lula terminou por encontrar outra via de acesso ao subproletariado, amoldandose a ele, mais do que o modelando, porém, ao mesmo tempo, constituindo-o como ator político”. A isso ele chama de “lulismo”.
O voto em Lula sofre então “uma mudança ideológica”, segundo André Singer, aumentando em direção aos extremos, “tanto esquerdo como direito”, e caindo em direção ao centro. Lula passaria a representar, então, uma opção nova, que “mistura elementos de esquerda e de direita, contra uma alternativa de classe média organizada em torno de uma formulação de centro”.
Permanecendo em posição neutra com relação ao presidente, exercendo suas críticas ao governo em direção a pontos específicos, como a política do Banco Central de juros e câmbio, o governador paulista tenta manterse uma alternativa viável para esse eleitorado de Lula.
Tanto de direita, representado pelo que Singer chama de “subproletariado”, como mostra sua boa penetração no Nordeste, graças, segundo as pesquisas qualitativas, ao seu trabalho como ministro da Saúde, quanto de esquerda, que possam identificálo como uma opção mais consistente do que a ministra Dilma Rousseff.
Essa tendência explicaria também a guinada à esquerda do governo Lula no segundo mandato, e a escolha de uma política ligada aos movimentos de guerrilha na época da ditadura militar, para garantir esse eleitorado, que no primeiro turno de 2006 foi em parte para os candidatos oriundos do PT, Cristovam Buarque e Heloísa Helena, e hoje têm tanto em Serra como na senadora Marina Silva opções ao voto oficial.
O aprofundamento dos programas assistencialistas, como o aumento do valor do pagamento do Bolsa Família e a garantia de aumentos reais para o salário mínimo, garantiriam os votos do subproletariado.
A tentativa de fazer uma eleição plebiscitária esbarra também na percepção por parte do eleitorado de que Dilma não é Lula, e portanto a escolha pode ser outra, até mesmo Ciro Gomes no Nordeste.
Para um eleitorado mais escolarizado, há também o incômodo de querer transformar a eleição em uma espécie de “herança” em vida para uma escolhida, mesmo que não tenha melhores qualificações que os adversários.
Para Dilma, há uma dificuldade adicional, por paradoxal que seja: quanto mais Lula ganha homenagens e se torna um mito para seu povo, mais ela se distancia de seu criador, suas deficiências aparecem e fica mais difícil convencer o eleitorado de que ela é “Lula de novo”.