domingo, 26 de abril de 2020

Merval Pereira - Meses decisivos

- O Globo

Os três inquéritos do STF têm a possibilidade de montar um quadro bastante claro da atuação dos Bolsonaro na política brasileira

Nos últimos cinco meses deste ano fatídico, entre julho e novembro, viveremos tempos decisivos na política brasileira, com definições fundamentais envolvendo o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso, desde a realização das eleições municipais até os inquéritos envolvendo o presidente Bolsonaro e seu entorno.

O ministro Celso de Melo, decano do STF, se aposenta em novembro com uma última missão delicada institucionalmente, a relatoria do inquérito sobre as acusações do ex-ministro Sérgio Moro ao presidente Bolsonaro, que ele deve aceitar na segunda-feira.

Em julho, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), hoje presidido pelo ministro do Supremo Luis Roberto Barroso, tem que decidir sobre a realização das eleições municipais em outubro, pois a data limite para a realização das convenções é dia 5 de agosto e a propaganda eleitoral começaria no dia 15.

Em setembro, o ministro Dias Toffoli será sucedido na presidência do STF pelo ministro Luis Fux, e os dois gostariam de ser o presidente quando os inquéritos sobre fake news e organização de manifestações antidemocráticas, relatados pelo ministro Alexandre de Moraes, chegarem ao final. Toffoli abriu o inquérito das fake news há um ano, sob criticas generalizadas, e quer mostrar que tinha motivos para tal.

Nesses meses, portanto, estaremos decidindo o futuro imediato da política brasileira. Os inquéritos relatados pelo ministro Alexandre de Moraes são os que incomodam o presidente Bolsonaro, de acordo com as mensagens reveladas pelo ex-ministro Sérgio Moro.

Bernardo Mello Franco - O fascismo à espreita

- O Globo

Umberto Eco cresceu na Itália de Mussolini e teve que decorar discursos do Duce na escola. Isso o ajudou a decifrar o fascismo e identificar seus filhotes modernos

Aos 10 anos de idade, o escritor Umberto Eco (1932-2016) ganhou seu primeiro concurso de redação. O tema tinha tudo a ver com aqueles tempos: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?”. O jovem estudante respondeu que sim. “Eu era um garoto esperto”, gracejou, décadas depois, em conferência na Universidade Columbia.

Eco cresceu numa pequena cidade da Lombardia, a região da Europa mais castigada pelo coronavírus. Alfabetizou-se sob o regime fascista e teve que decorar discursos do Duce na escola. Mais tarde, espantou-se com a euforia das festas pela Libertação. “A paz me deu uma sensação curiosa. Tinham me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano”, relembrou.

As memórias de infância ajudaram o escritor a decifrar o fascismo — o original, dos camisas negras, e seus filhotes modernos, que reaparecem “às vezes em trajes civis”. Ele batizou o fenômeno de “ur-fascismo”, ou “fascismo eterno”, e listou características que ajudam a identificá-lo: o nacionalismo agressivo, o ódio contra minorias, o machismo violento, a exaltação do líder, a obsessão por teorias conspiratórias. “Os seguidores têm que se sentir sitiados”, explicou.

Míriam Leitão - Persio aponta os erros na economia

- O Globo

Arida acha que Bolsonaro volta às suas origens estatizantes e mostra erros técnicos na proposta defendida por Guedes

Ao fim da pandemia, o país terá um mar de desempregados e as dores da maior recessão da nossa história. Como enfrentar? Os dois caminhos que se colocam, o de Paulo Guedes e o dos militares, esboçado nos últimos dias, estão errados na opinião do economista Persio Arida. O dos militares, por ser uma velha proposta que nunca deu certo. O de Paulo Guedes, porque se baseia na premissa equivocada. “O erro é essa ideia de que basta conter o gasto público para o investimento privado crescer e o país se desenvolver.” Um governo frágil politicamente tenderá a escolher o caminho que parece mais fácil e familiar, o do Estado propulsor do desenvolvimento, como mostrado no Plano Braga Netto. “Bolsonaro volta às origens, sempre foi estatizante.”

– Esse é o caminho errado. O que tem que ser feito? Tem problema de desemprego, sim, precisa de mais crescimento, sim. Mas deve-se fazer via gasto público? Aí é a reencarnação da Dilma, desenvolvimentista. Não é surpreendente porque os militares sempre acreditaram no Estado como promotor do desenvolvimento, igualzinho a esquerda. Esse programa simplesmente expressa a visão estatizante de Bolsonaro. Para mim é surpresa zero. Acho que aconteceria mais cedo ou mais tarde, e foi mais cedo por causa do coronavírus – diz Persio.

Na visão do economista, do outro lado há também equívocos.

– Do outro lado, é a ideia do crowding out, de que quando retrai o PIB do governo aumenta o PIB privado, ou seja, basta conter o governo que a iniciativa privada floresce e, como a iniciativa privada é mais produtiva que o gasto do governo, o PIB cresce. Isso é uma agenda simplória, errada macroeconomicamente. Para crescer você precisa de uma outra agenda, que é a abertura de bens comerciais e serviços, privatizações, reforma do Estado e reforma tributária. São essas quatro coisas que fazem o país crescer rápido. Curiosamente o governo não tocou em nenhuma delas. Nunca enviou uma reforma tributária, nem a administrativa, para o Congresso. Não fez abertura alguma, assinou um acordo com a União Europeia que já nasceu velho e não será ratificado porque Bolsonaro atacou o Macron, então esquece – diz Persio.

Luiz Carlos Azedo - O trilema da hora

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A saída de Moro contribuiu para a radicalização do cenário político, com a ampliação do movimento que deseja o impeachment de Bolsonaro”

A crise tríplice que o país enfrenta — sanitária, econômica e política — foi agravada pela demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, que deixou o cargo atirando contra o presidente Jair Bolsonaro, ao contrário de Luiz Henrique Mandetta, que deixou a Saúde sem confrontar o governo na política, apenas sustentando suas posições em relação ao distanciamento social que havia adotado contra a epidemia de coronavírus. A troca de acusações entre Bolsonaro e Moro deixa o país à beira da crise político-institucional. Diante da gravidade das acusações do ex-ministro da Justiça, não há como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) não investigá-las, com consequências imprevisíveis, se os fatos forem confirmados.

Moro acusou Bolsonaro de tentar transformar a Polícia Federal numa polícia política, quando sabemos que ela é uma instituição de Estado, técnica e judiciária, apesar de subordinada administrativamente ao Executivo. A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinando que os delegados encarregados do inquérito que apura as fake news sejam mantidos em suas funções foi um recado claro de que não poderá haver interferência de Bolsonaro no caso. Por outro lado, nos bastidores de Congresso, é dada como certa a abertura de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar as denúncias de Moro.

Estamos diante de um trilema: superar o conflito político entre Bolsonaro e os demais poderes e instâncias de governo; afastar o presidente da República por crime de responsabilidade ou derivar para um governo autoritário, que se impõe aos demais poderes à moda Fujimori (Peru) ou Chávez (Venezuela). Cada vez mais o governo Bolsonaro adquire características de um governo militar, de viés bonapartista, seja pela sua composição, seja pelas concepções que orientam sua ação.

Entrevista | José Murilo de Carvalho: 'Basta razão convincente para afastar Bolsonaro'

Segundo historiador, há ‘tempestade perfeita’ formada por crise econômica, crise política e novo coronavírus

Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo

RIO - Na crise aberta pela demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, o historiador José Murilo de Carvalho vê indícios de um governo que começa a se despedir antes do previsto. A crise política agravada pelo confronto de Moro com o presidente Jair Bolsonaro, as dificuldades econômicas e a pandemia do novo coronavírus se aliam em uma “tempestade perfeita”, que torna a sobrevivência do governo “cada vez mais difícil”, avalia. Segundo ele, a fragilidade da base parlamentar de Bolsonaro torna essa possibilidade muito factível.

“Basta haver uma razão convincente de impedimento para que, sem apoio sólido no Congresso, ele (Bolsonaro) possa ser afastado por impedimento”, afirma o historiador, ao comparar a crise atual com aquelas que envolveram os governos Dilma Rousseff e Michel Temer. Para ele, os últimos movimentos de Bolsonaro, livrando-se de possíveis rivais, como Moro, acenando ao Centrão e lançando um plano econômico que lembra o regime militar, tendem a aumentar o seu isolamento. A Bolsonaro, avalia, restaria uma base popular cada vez menor.

• O que a saída de Moro, um dos representantes do chamado ‘tenentismo de toga’, significa para a Lava Jato e para o País?

A Lava Jato já estava sendo esvaziada. Se o presidente quiser controlar a PF, a operação será sepultada de vez pelas mãos de quem prometia moralização. Inclusive porque o presidente está agora buscando apoio da ala podre da política.

• Bolsonaro quer controlar a PF porque teme investigações contra ele e seus filhos?

Tudo indica que é a razão principal do atrito com Moro. É de notar que o presidente só falou no (filho) 04 (Jair Renan, o mais novo), saltando os zero um (senador Flavio Bolsonaro), zero dois (vereador Carlos Bolsonaro) e zero três (deputado Eduardo Bolsonaro).

• O governo Bolsonaro se sustentará até dezembro de 2022?

É cada vez menos provável a sobrevivência dele até o final. Teríamos, além da crise econômica e da pandemia, uma crise política. Tempestade perfeita.

Vera Magalhães - Bola com o Supremo

- O Estado de S.Paulo

Como no mensalão, Judiciário assume o protagonismo da crise política

Sairá do Supremo Tribunal Federal o caminho para que Jair Bolsonaro enfrente o terceiro processo de impeachment de um presidente eleito em 28 anos. A bola, mais do que nunca nos últimos anos, está com os 11 ministros da principal corte do País. E olha que desde o mensalão o protagonismo do STF tem sido grande. Mas a conjuntura leva a que, desta vez, algumas coisas sejam diferentes.

O primeiro componente inédito é a vigência, há um ano, de um inquérito sigiloso, sem prazo e com abrangência grande e escopo para investigar fake news contra ministros do próprio tribunal. É ele, como escrevi na quarta-feira, que dará o fio da meada para que se trace uma cadeia de comando na rede de destruição de reputações que grassa nas mídias sociais e alimenta o bolsonarismo.

Graças a ele Bolsonaro perdeu as estribeiras em plena crise do novo coronavírus e decidiu demitir o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, assumindo inclusive o risco de perder Sérgio Moro e ganhar seu mais competitivo rival em 2022. O desespero com o inquérito foi maior que o medo de perder Moro.

Pouco ou nada vai adiantar Bolsonaro ter alguém “seu” no comando da PF para tentar esvaziar o inquérito-bomba: as provas coletadas até aqui estão em poder do ministro Alexandre de Moraes, seu relator, e ele também já se precaveu e também assegurou que os policiais e delegados designados para comandar a investigação não sejam trocados.

Eliane Cantanhêde - Suicídio

- O Estado de S.Paulo

Com mortes e caos econômico e social, Bolsonaro só vê ele, filhos e Adélio

Uma imagem vale mais do que mil palavras, e a do superministro Paulo Guedes no pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro, na sexta-feira, diz tudo. O único de máscara, em mangas e sem sapatos, o segundo pilar do governo parecia seguir, só de meias, os passos do já ex-ministro Sérgio Moro. Ou seja, está se lixando para o cargo e para Bolsonaro. Fim de festa.

Com o governo esfarelando, um militar de alta patente define o clima: “Muita tristeza”. Junto com o governo, esfarelam-se os sonhos de por ordem na bagunça, combater com Moro a corrupção e o crime organizado, recuperar com Guedes a economia, os empregos e a esperança. Seria impossível com um tenente rechaçado, depois um parlamentar inútil. Mas só agora eles admitem. Talvez, tarde demais para descolar as Forças Armadas do desastre. Triste mesmo.

Jair Bolsonaro é incansável em seus movimentos suicidas, envolto em sombras, combatendo inimigos por toda parte, fazendo só o que lhe dá na cabeça. Ou o que os filhos lhe põem na cabeça. Por que a obsessão em demitir o delegado Maurício Valeixo da Polícia Federal? Em nomear um pau-mandado na PF do Rio, sua base? E abrir crise na PF e derrubar Moro, o maior troféu do governo, dias depois de Mandetta e em meio ao caos?

Moro resumiu numa única palavra, ao pedir “a razão” de tudo isso. A resposta está na psicologia, egolatria, medo, culpa e na proteção dos filhos 01, 02 e 03 de investigações sobre rachadinhas, fake news, gabinete do ódio e organização e financiamento de atos golpistas. Ante pandemia, mais de 4 mil mortos, o desespero de empresários, empregados e Ministério da Economia, Bolsonaro só pensou nele e nos filhos.

Affonso Celso Pastore* - Estadistas, populistas e a pandemia

- O Estado de S.Paulo

Temos na Presidência um populista obcecado pelo objetivo de reeleger-se

No início do ano, foi publicada uma excelente biografia de Frank Ramsey, um cientista ligado à Universidade de Cambridge, que em sua curta vida de apenas 27 anos deixou contribuições marcantes nos campos da filosofia, da matemática e da teoria econômica. Na economia, uma de suas contribuições foi uma modelagem matemática que permitiu responder à pergunta: “Quanto a sociedade deve poupar para favorecer as próximas gerações?”. Quanto mais deixarmos de consumir no presente, mais investiremos elevando o produto, o consumo e o bem-estar das populações no futuro. Para responder qual é a distribuição ótima entre as gerações, os economistas contemporâneos incluem uma taxa de desconto para trazer a valor presente o consumo das gerações futuras. Taxas de desconto mais elevadas favorecem um consumo maior da geração presente, e planejadores que dão um peso elevado ao bem-estar das gerações futuras preferem taxas de desconto mais baixas. Ramsey tinha um profundo senso ético e grande apreço pelo bem-estar das próximas gerações, o que o levou a utilizar uma taxa de desconto nula, dando peso igual a todas as gerações.

Em um horizonte bem mais curto do que o de uma geração, a pandemia impõe aos governos uma escolha semelhante. A adoção do afastamento social poupa vidas à custa de uma recessão no presente, cujos efeitos são parcialmente atenuados por medidas que impeçam a quebra de empresas e compensem a queda de renda dos menos favorecidos, em troca de um crescimento mais vigoroso adiante. No outro extremo, o afastamento social é abolido na esperança de evitar uma recessão no presente, porém à custa de um enorme número de mortes e de menor crescimento futuro. Se o governante responsável pela decisão tiver respeito pelo futuro do país, decidirá como se tivesse uma taxa de desconto baixa ou mesmo nula, respeitando as recomendações dos cientistas e optando por um isolamento social mais rígido. Mas se o objetivo for manter sua popularidade elevada no curto prazo para favorecer sua reeleição, atirará às urtigas o futuro do país usando uma taxa de desconto muito alta.

Rolf Kuntz * - Campanha eleitoral sobre cadáveres

- O Estado de S.Paulo

Agenda presidencial dá prioridade à reeleição sobre a segurança e a vida das pessoas

Foi uma quinta-feira tenebrosa. Mais 407 mortes, um recorde sinistro, foram comunicadas oficialmente. Em Manaus, ambulâncias corriam de hospital em hospital com doentes em busca de uma vaga. Em São Paulo, a Prefeitura liberou enterros à noite e anunciou a abertura emergencial de 13 mil sepulturas. Num site jornalístico, um médico descrevia a experiência de ser a última pessoa vista por um moribundo, sem a presença de familiares. Enquanto isso, no Palácio do Planalto, o presidente cuidava das prioridades mais altas da República Bolsonariana, incluída a exoneração do chefe da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo. Naquela altura, outra ação de grande importância na agenda palaciana havia aparecido no Diário Oficial. Os brasileiros poderão, graças a um decreto redentor, comprar até 550 unidades de munição por mês. Portaria anterior, anulada pelo mesmo ato, fixava o limite de 600 unidades por ano.

A demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, consumou-se na sexta-feira. Ele havia resistido à exoneração do diretor-geral da Polícia Federal. Havia tentado até negociar a nomeação de um substituto, segundo afirmou, para evitar um desentendimento maior num momento de pandemia. Não deu certo. Não se sabe se ele usou a palavra pandemia na conversa com o presidente. De toda forma, é difícil dizer se isso faria alguma diferença. A segurança e a vida dos brasileiros, como já sabia qualquer pessoa razoavelmente informada, estão fora das prioridades presidenciais.

Segurança, vida e bem-estar sempre estiveram longe do primeiro plano desde o começo do mandato. Há um ano, o desemprego superava 12% e os desempregados eram mais de 12,5 milhões. Mas no alto da agenda estavam as armas de fogo, apresentadas como itens fundamentais para a tranquilidade e o futuro dos brasileiros.

Bolívar Lamounier * - A democracia na era pós-pandêmica

- O Estado de S.Paulo

Pela primeira vez teremos uma ótima chance de liquidar o patrimonialismo

No século 19, a democracia liberal apenas engatinhava, mas sua morte já era dada como iminente. Um caso de mortalidade infantil.

Nunca é demais lembrar que a democracia liberal (ou representativa) só começa a se configurar no século 19. Cento e cinquenta anos atrás, com a parcial exceção do Reino Unido e dos Estados Unidos, o mundo se dividia em países desabridamente autoritários e em embriões de democracia. Estes últimos existiam em sociedades oligárquicas, nas quais o jogo político se limitava a pequenos grupos de elite – proprietários e “notáveis” –, a uma minúscula parcela da população habilitada a votar e a uma vasta maioria analfabeta, empregada em atividades rurais e completamente excluída da vida pública. Tomando a nuvem por Juno, os críticos do liberalismo julgavam estar vendo um cemitério, quando, na verdade, se tratava do início de uma construção cheia de opções e possibilidades.

Nas primeiras décadas do século 20, na esteira da Revolução Russa e da ascensão do fascismo, passou-se a entender que a causa mortis da democracia seria sua congênita debilidade. Anêmica, ela não teria como resistir à maré montante dos embates entre capital e trabalho. A 2.ª Guerra Mundial liquidou o fascismo como forma de organização política, mas fortaleceu o comunismo soviético, dando ensejo a um terceiro prognóstico para o fim da democracia. A radicalização ideológica entre direita e esquerda, engendrada internamente em cada país e turbinada de fora para dentro pela guerra fria entre Estados Unidos e URSS, seria a nova causa mortis. Esse prognóstico tinha mais substância, basta lembrar as tragédias a que sucumbimos, Brasil, Argentina e Chile, aqui mesmo, no Cone Sul latino-americano. Fato é, no entanto, que a democracia representativa, bem ou mal, ressuscitou. Atualmente, os piores casos de antiliberalismo político devem-se muito mais à propensão tirânica de certos líderes – Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela; Viktor Orbán, na Hungria; Recep Erdogan, na Turquia – do que a causas supostamente universais.

Arminio Fraga* - Respostas a uma tempestade perfeita

- Folha de S. Paulo

A sinalização de que existe solução viável para a crise ajuda a reverter o pessimismo

Há décadas tenho me dedicado ao estudo das crises econômicas. Nesse período convivi com o tema atuando aqui e no exterior como economista, professor e gestor de investimentos. Tive inclusive a ocasião de trabalhar duas vezes no Banco Central, ambas abundantes em crises.

A atual é a mais desafiadora que já vi. No nosso caso, trata-se de uma verdadeira tempestade perfeita. Isto porque temos que lidar ao mesmo tempo com três graves crises: sanitária, econômica e política.

As três vêm sendo objeto de intensa cobertura e debate. Por isso, vou apenas resumir o quadro, para a seguir focar no que fazer a respeito (em tese, pelo menos).

A pandemia vem exigindo relevante isolamento social, em parte por determinação oficial, em parte por medo da doença. Seus impactos já se mostram dramáticos e heterogêneos. Sofrem como sempre mais (e muito) os mais pobres, assim como as empresas que lidam diretamente com clientes, sobretudo as pequenas e médias.

O desemprego, que já vinha alto, vai aumentar muito. O crescimento, que já era anêmico, vai virar queda substancial no PIB. Esse quadro de doença e desemprego é motivo de ansiedade geral. Infelizmente, falta ainda uma estratégia clara e de âmbito nacional para se lidar com a pandemia.

Na economia, medidas vêm sendo tomadas na direção de amortecer a perda de renda de milhões de pessoas e a falta de crédito para as PMEs mais atingidas. Com o (necessário) aumento dos gastos ligados à crise e com a queda na arrecadação decorrente da recessão, as necessidades de financiamento do Estado vão crescer muito.

Os mercados terão que absorver muita dívida. Paira no ar o medo de que gastos temporários se tornem permanentes, hoje uma ameaça concreta, como uma bactéria oportunista.

Angela Alonso* - AI-cinquista e paneleiros

- Folha de S. Paulo

É fácil saber contra quem panelas batem e hashtags sobem, difícil é coordenar protestos

Cloroquinistas desfilaram de carro, e AI-cinquistas aglomeraram-se à roda do presidente, que tossia. É imponderável se sobreviverão à epidemia e ao desgoverno Bolsonaro, mas é certo que se creem invulneráveis ao vírus e às leis. O primeiro tem sido mais eficaz que as segundas em enquadrá-los.

O inusitado é duplo: são manifestações de rua em tempo de confinamento e usam técnica democrática contra a democracia.

Intriga pouco a sintonia entre AI-cinquistas e seu eleito. Discursos e ações de Bolsonaro ao longo de suas carreiras, a exitosa de político e a gorada de militar, testemunham, cristalinos, a devoção por ideias, líderes e métodos da ditadura. Quem votou nele concordou ou encheu os ouvidos de cera. O presidente horroriza, mas não surpreende.

Intrigante é a ausência de manifestação concertada dos contrários. O sentimento antigoverno de cerca de metade dos brasileiros não gerou grandes protestos de rua antes da Covid-19.

Os organizadores habituais de protestos nos últimos anos são de três campos, que ora ocupam a rua sozinhos, ora em pares e, excepcionalmente (em 2013), em trio. O autonomista, de movimentos sociais recentes em torno de identidades sexuais, liberação de costumes e direitos sociais, tem pouca representatividade, com predomínio de ativistas saídos de um estrato da elite social —jovem, branco, cosmopolita, altamente educado. É antibolsonarista, mas carece de capilaridade.

Quem é representativo e sempre levou gente à rua é a esquerda socialista, campo de muitos movimentos em torno de direitos do trabalho e da redistribuição. Anda, porém, em crise. Durante os governos petistas, vários líderes seus viraram formuladores ou administradores de políticas. Tanta gestão secou o ímpeto de mobilização.

Vinicius Torres Freire – Governos acabam, mas sobrevivem

- Folha de S. Paulo

Ainda está em aberto o destino de Bolsonaro, embora seja certo que o país vai acabar mal

Governos acabam, mas sobrevivem. O governo de Michel Temer acabou no “Joesley Day” e se arrastou até o fim do seu mandato. Mesmo o governo Dilma Rousseff 2, acabado em março de 2015 por falta de apoio popular, parlamentar e uma campanha de deposição, caminhou no passo do zumbi por um ano, até o impeachment.

Não é uma regra ou lei. É uma hipótese, uma história aberta, que pode até acabar em desgraça maior, no entanto.

Quanto ao governo de Jair Bolsonaro, nem se pode dizer que acabou, por não ter propriamente começado e porque, dados os últimos acontecimentos, o juízo sobre o seu primeiro fim estava em suspenso na sexta-feira. Assim pode ficar por um tempo.

O destino imediato da crise estava em suspenso porque, para começar, as próprias lideranças do Congresso deixaram como está para ver como é que fica –note-se o silêncio de Rodrigo Maia.

O bloquinho dos mensaleiros e petroleiros, sublegenda do centrão, ainda espera tirar um cascão de um governo que, antes de mais nada, procura se defender do impeachment e precisa arrebanhar uns 150 deputados extras.

Elio Gaspari - Bolsonaro sonha com o fim do mundo

- Folha de S. Paulo / O Globo

Desde a chegada da pandemia, assombrado pelo medo de que seu governo possa acabar, Bolsonaro cultiva um radicalismo delirante

Os eleitores de Jair Bolsonaro viveram o suficiente para ver o ex-juiz Sergio Moro lembrando que durante a Operação Lava-Jato a presidente Dilma Rousseff não procurou intervir nas investigações que corroíam seu governo. Isso na mesma fala em que denunciou a interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal e o uso essencialmente fraudulento de sua assinatura eletrônica na exoneração “a pedido” do delegado Maurício Valeixo. A pedido de quem?

Formalmente, Moro pediu demissão. No mundo real, ele foi expulso do governo por Jair Bolsonaro. O ministro procurou negociar a substituição de Valeixo, mas esse caminho foi bloqueado no escurinho de Brasília. Sua saída agrava uma crise que Bolsonaro deliberadamente estimula.

Desde a chegada da pandemia, assombrado pelo medo de que seu governo possa acabar, Bolsonaro cultiva um radicalismo delirante. Demitiu o ministro da Saúde, foi para o portão do QG para estimular golpistas, apadrinhou uma mirabolância econômica que transforma o ministro Paulo Guedes em adereço de passista. Se tudo isso fosse pouco, avançou na jugular de Sergio Moro.

O repórter Gerson Camarotti sintetizou a conduta de Bolsonaro: ele entrou no “modo desespero”. Isso existe. Bernard Madoff era visto como um mago da finança americana e havia presidido a bolsa de tecnologia de Nova York. Em 2001, seu fundo de investimentos, um negócio de US$ 65 bilhões, rendia 10% ao ano, alegrando granfinos, inclusive alguns brasileiros. Era tudo mentira e sua explosão, questão de tempo. Ele passou a torcer para que o mundo acabasse. Assim ninguém saberia que ele era um vigarista. No dia 11 de setembro de 2001 ele viu o atentado da torres gêmeas e aliviou-se: “Ali poderia estar a saída”.

Não estava. Ele foi apanhado anos depois e está na cadeia, cumprindo uma pena de 150 anos de prisão. Um de seus filhos matou-se e todos os seus bens foram a leilão, inclusive os chinelos.
Num país assolado pela pandemia e por uma recessão econômica, assombrado e dispersivo, Jair Bolsonaro sonha com o fim do mundo.

Janio de Freitas - A história que segue

- Folha de S. Paulo

Presença das Forças Armadas junto aos Bolsonaro faz mal à instituição

Há um ano e 19 dias, o general e já vice-presidente Hamilton Mourão fazia um comentário muito significativo em dois pontos: “Se o governo falhar, a conta irá para as Forças Armadas”. Aí estava implícito o reconhecimento da índole militarizante, um retorno sem armas ostensivas, sob o rótulo de governo Bolsonaro, o Cavalão de Troia. E ali estava explicitado, no destinatário da possível conta, quem teria a responsabilidade, de fato, pelo que seria o novo governo.

Justifica-se então a pergunta: o que mais, e mais grave, ainda precisará ocorrer para que os representantes das Forças Armadas no governo as desvinculem, afinal, da responsabilidade pela catástrofe moral e governamental que arrasa este país?

A presença desses representantes junto aos Bolsonaro, sua trupe e suas relações cavernosas faz mal às Forças Armadas como instituição, deforma-as outra vez e as desmoraliza. E faz mal ao país com a aceitação e o apoio, aparentes faces de concordância, aos desvarios, ligações milicianas, mentiras, fraudes, traições, incidentes internacionais, destruição de recursos nacionais, incentivos à violência generalizada, medidas antissociais, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade pelos quais Bolsonaro deveria responder. De preferência com algemas, porque é perigoso.

Hélio Schwartsman - O vírus chinês

- Folha de S. Paulo

Doenças mudam, mas o ser humano continua o mesmo

As doenças mudam, mas o ser humano continua o mesmo. Duas de nossas obsessões são equiparar nossos inimigos a agentes infecciosos e batizar agentes infecciosos com o nome de nossos inimigos. Não surpreende, portanto, que representantes da direita nacionalista se apressem em culpar a China pela Covid-19. Numa só tacada, acham o seu bode expiatório, que ainda calha de ser comunista.

A história da sífilis se encaixa nessa tendência de forma tão conspicuamente bem documentada que adquire uma dimensão até cômica. Infectologistas ainda debatem a real origem dessa doença, que adquiriu características epidêmicas na Europa no século 16. Mas não há dúvida de que ela era uma arma de propaganda perfeita contra inimigo ou desafetos.

Os franceses rapidamente a batizaram de "mal de Nápoles", enquanto os italianos a chamaram de "mal francês" ou, no bom latim corrente à época, "morbus gallicus". Cada nação que era afetada pela moléstia a denominava com o objetivo de responsabilizar o outro. "Mal germânico", "mal polonês", "mal espanhol" e "mal cristão" foram alguns dos nomes que o treponema recebeu.

Bruno Boghossian -Uma república a seus pés

- Folha de S. Paulo

Presidente admitiu que trabalha para transformar Polícia Federal em milícia particular

Jair Bolsonaro admitiu que trabalha para transformar a Polícia Federal em milícia particular. Sem muito constrangimento, o presidente confessou que mandou delegados investigarem casos de seu interesse e que ameaçou o chefe do órgão de demissão por interesses pessoais.

A crise que culminou na saída de Sergio Moro exibiu de maneira explícita o modo como Bolsonaro enxerga o poder. O presidente se acomodou tanto na cadeira que nem tenta disfarçar a intenção de explorar o governo como uma máquina a serviço de sua família e de aliados.

Bolsonaro decidiu atropelar a independência da Polícia Federal e pagar o preço de um choque com uma das estrelas de seu governo simplesmente para blindar seu grupo político.

Ricardo Noblat - Ao vivo, o suicídio político de um presidente e do seu governo

- Blog do Noblat | Veja

A intervenção dos Bolsonaro no aparelho do Estado

Então quer dizer que o garoto Carlos Bolsonaro está envolvido com a rede de produção de notícias falsas que atacam a reputação de supostos adversários do seu pai, sejam eles internautas, políticos de variados matizes e ministros de tribunais superiores… Sei.

E que o garoto, citado como chefe do “gabinete do ódio” com sede no Palácio do Planalto, tem ligações com os extremistas de direita que financiaram e promoveram recentes manifestações de rua a favor da volta da ditadura… Sei. O pai compareceu a uma delas.

Então foi o garoto, com o aval dos irmãos, quem convenceu o pai a nomear Alexandre Ramagem, delegado da Polícia Federal, diretor da Agência Brasileira de Inteligência, ninho estatal da espionagem, sucessora do Serviço Nacional de Inteligência… Não diga!

E menos de um ano depois, foi outra vez do garoto a ideia acolhida pelo pai de nomear Ramagem diretor-geral da Polícia Federal, o que levou o então ministro Sérgio Moro, da Justiça, a demitir-se e a sair do governo atirando… Garoto poderoso!

Ruy Castro - Razões do fracasso

- Folha de S. Paulo

Não basta desligar o aquecedor da piscina. O importante é escolher bem o ministério

Um dia, se indagado por que o governo de Jair Bolsonaro saiu-lhe pela culatra, eu direi que tudo se deveu à ingratidão que ele cometeu contra um aliado, apaixonado e capacho: o ex-senador, cantor de pagode gospel e pastor evangélico baiano Magno Malta, a quem ele deve de certo modo a vida.

Você se lembra. Bolsonaro foi esfaqueado num comício em Juiz de Fora. Mal arrancada a faca de Bolsonaro, Magno Malta já estava ao seu lado no quarto, resfolegando sobre sua cicatriz e, como se ele estivesse morto, orando sofregamente por sua ressurreição. O fato de Magno Malta ter adentrado o recinto cercado de aspones, um dos quais gravando o ágape para veiculação nacional, não invalida o caráter tocante da cena. Via-se claramente que Magno Malta, pelas ordens que dava a Jesus Cristo em sua prece, tinha grande influência no além. E Ele não o desapontou —Bolsonaro salvou-se e se elegeu. Quem decepcionou Magno Malta foi Bolsonaro, ao negar-lhe o ministério --qualquer um— de que ele se julgava credor.

Miguel Caballero - Bolsonaro pode ter a cabeça levada à guilhotina, mas quem baixa a lâmina são os deputados

- O Globo

A artilharia disparada por Sergio Moro em sua demissão fará com que o presidente Jair Bolsonaro viva, nos próximos meses, sob a constante pressão não apenas das novas denúncias lançadas pelo ex-ministro, mas também dos inquéritos já em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF). A urgência do presidente em atropelar seu ministro mais popular sinaliza que a Polícia Federal (PF) avançou para perto demais de sua família no caso das fake news.

Ainda que consiga escalar no Ministério da Justiça e mesmo na direção da PF pessoas que aceitem tentar abafar investigações indesejadas, é improvável que Bolsonaro consiga resolver assim o seu problema. A liberdade de ação de delegados em inquéritos já abertos é bastante ampla. Os anos de Lava-Jato no governo Dilma e a inócua investida de Michel Temer com a nomeação de Fernando Segovia na PF são exemplos recentes. A decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes blindando a equipe que conduz os casos das fake news e dos protestos antidemocráticos mostra que não será fácil alterar esse panorama.

O possível surgimento de provas contra Bolsonaro ou seus filhos nesses inquéritos é apenas um dos complicadores da situação do presidente. Está também na perspectiva a deterioração de seu desempenho em outros dois quesitos tidos como necessários para a inviabilização de um mandato presidencial: a economia não vai melhorar tão cedo, e é razoável supor uma perda importante de popularidade decorrente do rompimento público com Sergio Moro. A aceleração do número de mortes pelo coronavírus pode agravar o cenário no curto prazo.

Dorrit Harazim - Elenco de loucos

- O Globo

Brasil do bem torce pela imperiosa recuperação de Aldir Blanc

Spoiler: o texto não trata dos loucos de Brasília.

Dias atrás a filha Isabel fez saber aos amigos que seu pai, essa centrífuga multitalento chamada Aldir Blanc, estava internado em estado grave num hospital do Rio, com Covid-19. Desde então, um eclético Brasil do bem torce pela imperiosa recuperação desse músico e pensador que ensinou o país a cantar “O bêbado e a equilibrista”.

Toda contribuição extemporânea para fazer Aldir relembrar tempos melhores é válida. Então aqui vai o relato de uma reunião impromptu de quase 30 anos atrás, ocorrida em seu apartamento da Rua Garibaldi, no bairro carioca da Tijuca, com elenco formidável e sem campainha funcionando. Além do anfitrião involuntário, participaram, entre outros, o roteirista mineiro Alcione Araújo, o diretor teatral Aderbal Freire-Filho, o também ator Dudu Sandroni, e, último a chegar com a assessora Carla Rodrigues, Betinho, a locomotiva da convocatória.

A indignação do país naquele final de 1993 não tinha mais o colorido descompromissado dos caras-pintadas da era Collor. Era uma nação à procura de si mesma. Unânime apenas em torno da figura franzina porém poderosa de Betinho (Herbert José de Souza), que se tornara apessoa mais admirada do Brasil por ter idealizado e materializado o impossível — uma bem-sucedida Campanha Nacional Contra a Fome.

Naquela reunião de outubro de 1993 Betinho pretendia formatar mais um de seus projetos urgentes urgentíssimos: a organização de um “Auto de Natal” capaz de sacudir o Rio de Janeiro e contaminar o resto do país. O texto da obra seria reproduzido sob forma de folheto e distribuído em todos os estados para ser encenado com coloridos, sotaques e recursos regionais. O roteiro original ficaria a cargo de Alcione, Aderbal cuidaria da encenação, a música só poderia ser de Aldir Blanc, e Dudu Sandroni garantiria a viabilidade da coisa. A partir do título — “Auto de Natal” — era começar do zero.

Betinho iniciou os trabalhos contando que chegou a telefonar para Chico Buarque pedindo que escrevesse a obra, mas Chico estava atolado até a sobrancelha na finalização do disco “Paratodos”. “Desenvolvi a teoria de que você só chama o Chico em caso de catástrofe — guerra mundial, falência do Rio etc.”, explicou.

Dora Kramer - Rolando o lero

- Revista Veja

Fala de Bolsonaro só teve tamanho: foi longa e inconsistente

Se a ideia era “restabelecer a verdade”, como disse que faria em relação ao pronunciamento de despedida de Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro não alcançou seu propósito. O discurso foi longo (com a evidente intenção de igualar os cerca de 40 minutos usados de manhã por Moro), mas inconsistente.

Limitou-se a qualificar como “infundadas” as acusações sobre tentativas de interferir no trabalho da Polícia Federal e simplesmente ignorou a fraude da assinatura do então ministro a Justiça no ato de exoneração do diretor-geral da PF, Maurício Valeixo. Nem de longe o conteúdo do pronunciamento presidencial equiparou-se à fala do ministro demissionário.

Bolsonaro evitou ataques mais pesados a Moro, talvez como medida de precaução a tréplicas, pois não é crível que o ex-juiz fizesse acusações sem estar calçado em algum tipo de prova. A fim de preencher essa lacuna, o presidente acusou Moro de tê-lo chantageado exigindo que demitisse Valeixo apenas depois de presenteá-lo com indicação para a vaga de Celso de Melo no Supremo Tribunal Federal.

No mais, tergiversou. Ora falando levemente em “deslealdade” e divergência de pensamentos com Moro, ora distorcendo o sentido de interferência para dizer que apenas buscava uma melhor “interação” com a PF, ora invocando “súplicas” que teria feito para aprofundamento das investigações sobre o atentado de Juiz de Fora e o caso do depoimento do porteiro do condomínio onde tem casa no Rio relacionando-o com os assassinos de Marielle Franco.

Monica de Bolle* - Bens públicos

- Revista Época

Eis o dilema: a oferta de conhecimento como bem público o degrada aos olhos de alguns

A saúde é um bem público, a proteção social também. Bens públicos, na definição dos economistas, são aqueles que são não excludentes e não rivais. O que isso significa? Primeiramente que indivíduos não podem ser excluídos de seu uso e deles podem se beneficiar sem pagar. Em segundo lugar, são bens em que o uso individual não reduz sua disponibilidade para que outras pessoas deles desfrutem. Por fim, bens públicos podem ser desfrutados por mais de uma pessoa simultaneamente. Muitos temas podem ser enquadrados como bens públicos: a conscientização coletiva sobre saúde, questões sociais e ambientais, a manutenção da biodiversidade, o saneamento básico. Além disso, bens públicos estão sempre sujeitos ao problema que economistas chamam de free rider — como bens públicos são gratuitos ou são oferecidos a um preço abaixo do preço “de mercado”, sua utilização pode se tornar excessiva, levando a uma redução prejudicial da oferta, ou mesmo à degradação do próprio bem ou serviço oferecido.

Como saúde e proteção social, o conhecimento é um bem público. Aqueles que se dispõem a dividir o conhecimento que têm sobre determinados assuntos estão sujeitos ao mau uso, ou até à degradação do que compartilham. Trata-se de uma experiência curiosa essa de dividir conhecimento sem pagamento. Como professora universitária, compartilho meu conhecimento com alunos que por ele pagam uma mensalidade à universidade. Como participante do debate público por meio de colunas como esta que tenho em ÉPOCA, também recebo honorário. Contudo, desde que a pandemia eclodiu, eu me senti compelida a partilhar meu conhecimento de forma gratuita, no canal que criei no YouTube. A pesquisa que desenvolvo desde o Ph.D. na London School of Economics trata de crises. Quando trabalhei no FMI, tive a oportunidade de conhecer crises na prática, pensando em soluções para aliviar países. Hoje, leciono sobre crises na Universidade Johns Hopkins. Tenho usado essa experiência para fazer o que jamais imaginaria que faria: transmissões diárias ao vivo sobre temas relativos à crise que atravessamos e sobre o funcionamento da economia de modo mais geral.

O que a mídia pensa - Editoriais

• A necessidade da utopia – Editorial | O Estado de S. Paulo

A utopia bolsonariana não é a da democracia plena, mas a promessa de um mundo em que tudo se resolve pela vontade do líder

Há pouco mais de um século, em janeiro de 1919, o Estado publicou, neste espaço, um editorial em que defendia mais uma candidatura presidencial de Rui Barbosa, uma forma de protestar contra os arranjos oligárquicos e militaristas que degradavam a então jovem democracia republicana. Embora fosse político experiente, Rui Barbosa era, na ocasião, o que hoje se convencionou chamar de outsider, por ter sido o primeiro a fazer campanha eleitoral dirigindo-se aos eleitores, algo raro numa República que, embora nominalmente democrática, definia os presidentes nos salões do poder e depois os instalava no governo por meio do voto de cabresto e de fraudes nas listas de votação. Rui Barbosa perdeu a eleição para Epitácio Pessoa, que passou toda a campanha em Paris.

O editorial, ao cobrar que o voto deveria ser a expressão da vontade popular, e não o instrumento de um poder antidemocrático do qual as elites se serviam, salientava que “segrega-se da regularidade das soluções tradicionais o país em que os governos incorrigíveis teimam no erro e no crime, e em que povos, cansados de deitar nas urnas votos inúteis, desistem do direito de votar”. E mais: “Na nossa desgraçada República os governos, quase sem exceção, e o povo, quase em unanimidade, de há muito se haviam fixado neste sistema anormal de se viver - os governos contando com a covardia eterna do povo, e este simplesmente resignado”.

Música | Nara Leão: Grândola, vila morena

Poesia | Pier Paolo Pasolini - Versos do testamento

A solidão: é preciso ser muito forte
para amar a solidão; é preciso ter pernas firmes
e uma resistência fora do comum; não se deve arriscar
pegar um resfriado, gripe ou dor de garganta; não se devem temer
assaltantes ou assassinos; há que caminhar
por toda a tarde ou talvez por toda a noite
é preciso saber fazê-lo sem dar-se conta; sentar-se nem pensar;
sobretudo no inverno, com o vento que sopra na grama molhada
e grandes pedras em meio à sujeira úmida e lamacenta;
não existe realmente nenhum conforto, sobre isso não há dúvida,
exceto o de ter pela frente todo um dia e uma noite
sem obrigações ou limites de qualquer espécie.
O sexo é um pretexto. Sejam quais forem os encontros
― e mesmo no inverno, pelas ruas abandonadas ao vento,
ao longo das fileiras de lixo junto aos edifícios distantes,
que são muitos ― eles não passam de momentos da solidão;
mais quente e vivo é o corpo gentil
que exala sêmen e se vai,
mais frio e mortal é o querido deserto ao redor;
é isso o que enche de alegria, como um vento milagroso,
não o sorriso inocente ou a prepotência turva
de quem depois vai embora; ele traz consigo uma juventude
enormemente jovem; e nisso é desumano,
porque não deixa rastros, ou melhor, deixa um único rastro
que é sempre o mesmo em todas as estações.
Um jovem em seus primeiros amores
não é senão a fecundidade do mundo.
É o mundo que chega assim com ele; aparece e desaparece,
como uma forma que muda. Restam intactas todas as coisas,
e você poderia percorrer meia cidade, não voltaria a encontrá-lo;
o ato está cumprido, sua repetição é um rito; pois
a solidão é ainda maior se uma multidão inteira
espera sua vez; cresce de fato o número dos desaparecimentos ―
ir embora é fugir ― e o instante seguinte paira sobre o presente
como um dever; um sacrifício a cumprir como um desejo de morte.
Ao envelhecer, porém, o cansaço começa a se fazer sentir,
sobretudo naquela hora imediatamente após o jantar,
e para você nada mudou; então por um triz você não grita ou chora;
e isso seria enorme se não fosse mesmo apenas cansaço,
e talvez um pouco de fome. Enorme, porque significaria
que o seu desejo de solidão já não poderia ser satisfeito;
e então o que o aguarda, se isto que não se considera solidão
é a verdadeira solidão, aquela que você não pode aceitar?
Não há almoço ou jantar ou satisfação do mundo
que valha uma caminhada sem fim pelas ruas pobres,
onde é preciso ser desgraçado e forte, irmão dos cães