domingo, 14 de julho de 2019

Luiz Carlos Azedo: A esquerda em seu labirinto

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Pela natureza do animal político, digamos assim, como na fábula do escorpião e o sapo, é ingenuidade não perceber que a gana de poder de Bolsonaro é mais absolutista do que republicana”

A derrota acachapante dos partidos de esquerda na reforma da Previdência, na qual obtiveram apenas 131 votos, é a repetição de duas outras quedas históricas na Câmara: a votação do impeachment de Dilma Rousseff e a aprovação do teto de gastos no governo Temer. Qualquer estrategista político diria: tem algo errado aí! Ainda mais porque houve uma mudança de rumo na opinião pública e o vento passou a soprar a favor da reforma, inviabilizando tentativas de mobilizar trabalhadores e corporações historicamente lideradas pelos partidos de esquerda para barrar o texto. Ao olharmos o resultado das votações das emendas, que resultaram numa lipoaspiração de R$ 150 bilhões em relação ao proposto pelo relator Samuel Moreira (PSDB-SP), veremos que a esquerda somente saiu do isolamento quando se uniu aos ruralistas e à bancada da bala para barganhar a aprovação das emendas a favor do regime especial de professores e do pessoal da segurança. Pode-se dizer que isso é “fazer política”, mas não é a grande política no sentido da construção de alternativa de poder. Muita água ainda vai rolar sob a ponte até as eleições de 2022, mas as três derrotas da esquerda no Congresso sinalizam o que pode vir a acontecer: a reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

Explico: o presidente da República, com suas atitudes, perdeu o amplo apoio que obteve no segundo turno das eleições, mas entusiasma sua base eleitoral com propostas de direita, com viés reacionário em matéria de costumes. Bolsonaro mantém coerência com o discurso de campanha do primeiro turno, como se nela permanecesse, principalmente nas redes sociais. O caso da indicação do filho Eduardo para a embaixada em Washington humilhou o Itamaraty e chocou a opinião pública, mas é um lance claro de que pretende estreitar sua aliança com Donald Trump e transformar o filho num articulador internacional desse campo de forças de direita. Provavelmente, tentará fazê-lo uma espécie de chanceler de fato.

Em circunstâncias normais, as atitudes de Bolsonaro, com essa orientação política assumidamente de direita, permitiriam a articulação de uma ampla frente de forças políticas, unindo o centro democrático às forças de esquerda. A oportunidade é generosa, se levarmos em conta que a votação da reforma da Previdência rearticulou no Congresso as forças que ficaram de fora da disputa do segundo turno com a derrota do ex-governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB). Na Câmara, o reagrupamento desses setores ocorreu sob a liderança do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ); fora do parlamento, porém, ainda é uma incógnita. Está bloqueada pelo “Lula livre!” e a divisão do PSDB. O governador João Doria (SP), apesar de aliado a Maia, também enfrenta dificuldades para liderar esse bloco em razão do histórico isolamento de São Paulo em relação aos demais estados. Além disso, seu discurso modernizador mira uma alternativa de poder cuja viabilidade depende do fracasso de Bolsonaro e não do resgate da centro-esquerda perante a sociedade, deixando o campo livre para a velha política do PT.

Eliane Cantanhêde: Eduardo bin Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

‘03’ nos EUA confirma que Bolsonaro governa em família, como se fosse dono do Brasil

Quando a então primeira-dama Marisa Letícia manchou o gramado do Palácio da Alvorada com uma vistosa estrela vermelha do PT, foi um Deus nos acuda e todos nós criticamos o presidente Lula e sua mulher por se comportarem como se fossem donos da residência oficial da Presidência.

Ao indicar publicamente o seu filho Eduardo, o “03”, para ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos, o presidente Jair Bolsonaro age como se sentisse dono, não de um imóvel público, mas do próprio Brasil, supondo que pode fazer o que bem entende.

A estrela vermelha era inadequada, mas flores num gramado são apenas um símbolo. Indicar o próprio filho para a principal embaixada do planeta não é só símbolo, mas uma decisão concreta que diz muito sobre o presidente e o governo.

Quais as credenciais do deputado Eduardo Bolsonaro para ser embaixador, e logo em Washington, para onde vão os diplomatas mais experientes, preparados e reluzentes da carreira? Fez intercâmbio, fala inglês e espanhol, passou frio no Maine. Ah! E já fritou muito hambúrguer para os gringos.

Ele não cursou o Instituto Rio Branco e só passou em um concurso público: para escrivão de polícia. Segundo o embaixador Rubens Ricupero, ao Estado, “trata-se de uma medida sem precedentes em nossa tradição diplomática e na história diplomática de países civilizados e democráticos”.

Rolf Kuntz: Bolsonaro, escolhido por Deus, pisou em Luís XIV

- O Estado de S.Paulo

Se alguém aceitar indicação para o STF com base em religião, será um juiz confiável?

Luís XIV, o Rei Sol, era, afinal, um sujeito modesto. A frase mais famosa a ele atribuída é citada como síntese do espírito absolutista: “O Estado sou eu”. É uma declaração quase franciscana, quando comparada com as palavras do presidente Jair Messias Bolsonaro: “O Estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou, para plagiar minha querida Damares, nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os Poderes”. Em outras palavras, o cristianismo, pelo menos o do presidente e de seus companheiros, deve sobrepor-se à laicidade do Estado brasileiro e, portanto, permear os Poderes da República. Mais uma vez é indisfarçável o desprezo às instituições.

Esse desprezo ficou evidente em muitas ocasiões, como no dia 30 de junho, quando ele tuitou para cumprimentar os participantes de passeatas a favor da Lava Jato: “Respeito todas as instituições, mas acima delas está o povo, meu patrão, a quem devo lealdade”.

Instituições incluem, por exemplo, o Código Penal. Se o povo está acima do código, poderá determinar a aplicação da pena de morte a um condenado? Poderá inocentar um culpado e condenar um inocente? E quem dirá se a manifestação terá partido realmente do “povo”? E como se identifica, nos eventos políticos, essa entidade tão difícil de definir? Pelo tamanho da multidão? Pela natureza de seus protestos ou reivindicações? Se for pelo tamanho, havia mais “povo” nas manifestações de 15 de maio, quando se protestou principalmente contra os cortes de verbas para a educação.

Celso Ming: Afinal, o que é o povo?

- O Estado de S.Paulo

Esta é uma categoria social indefinida que, no entanto, encabeça documentos oficiais e tratados internacionais. Mais do que isso, passou a ser a base de um dos maiores valores sociais e políticos da modernidade.

“A democracia é o governo do povo, para o povo, pelo povo”, definiu o presidente americano Abraham Lincoln, na sua declaração mais conhecida. O preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos consagra o povo como sujeito supremo das leis e do exercício do governo: “We the People of the United States (...) establish this Constitution” (“nós o povo dos Estados Unidos (...) estabelecemos esta Constituição”).

Há a vontade do povo, a cultura popular, a voz do povo (que é a voz de Deus, como diz o ditado popular), o carro do povo (Volkswagen). Há até o time do povo ou do povão. Mas a sociologia não reconhece a categoria povo, que não se enquadra nem na teoria de classes nem na teoria das elites dirigentes. Parece considerá-la como espécie de assombração, que não é objeto de nenhuma das chamadas ciências da natureza.

Na sua origem, democracia é o governo do povo. Para os gregos, os mesmos que inventaram a democracia, o governo do povo excluía do processo decisório público as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Até mesmo estrangeiros ilustres moradores de Atenas, como Aristóteles, o tutor de Alexandre Magno, era um desses excluídos, porque nascera na insignificante localidade de Stagirus, cujas ruínas estão na atual Macedônia. Por aí se vê que, já na sua gênese, o conceito de povo era bem mais restrito do que usado hoje.

A democracia dos Estados Unidos, sacramentada no texto “We the people” acima citado, subscrito em nome do povo, também excluía mulheres, escravos e estrangeiros. Só muito recentemente as mulheres puderam votar nos Estados Unidos (em 1920) e no Brasil, em 1932. Por aqui, os analfabetos só foram admitidos como eleitores a partir de 1988.

*José Roberto Mendonça de Barros: O mundo entre otimistas e pessimistas

- O Estado de S.Paulo

Os pessimistas, entre os quais me incluo, veem uma reversão de ciclo e uma recessão próxima

A economia global está desacelerando. Isso é visível na Europa, na China e no mundo emergente, exceto Índia.

A única exceção, dentre as nações relevantes, é a economia americana. Ela não só é a maior do mundo (com um PIB de mais de US$ 20 trilhões) como vem crescendo sem parar há dez anos.

Mais do que nunca, a direção do país será a determinante do que ocorrerá com o mundo, especialmente porque a política agressiva e errática do presidente Trump vem elevando a incerteza e as tensões por conta das inúmeras disputas comerciais e dos atritos em regiões sensíveis, como no Oriente Médio. Entretanto, o conflito mais relevante segue sendo com a China, pois vai muito além do comércio: seu centro está relacionado ao desenvolvimento tecnológico e suas projeções sobre o poder militar.

Essa disputa ainda vai muito longe e a recente decisão, na reunião do G-20 no Japão, de retomar as negociações sobre tarifas tem de ser vista como apenas tática.

Janio de Freitas: A incógnita dos militares

- Folha de S. Paulo

Bolsonarismo não favorece o conceito das Forças Armadas

As Forças Armadas e a imprensa estão em situações equivalentes na opinião pública percebida pelo Datafolha: estão mal em seus respectivos papéis. A posição de mais confiável, ocupada pela instituição militar, é enganosa, porque seu destaque é influído pelo descrédito das demais instituições e categorias.

Os militares do bolsonarismo não estão favorecendo o conceito das Forças Armadas. Excluída a dança da margem de erro, pioraram as três faixas de opinião. Nos últimos três meses, o percentual dos que "confiam muito" nos militares caiu de 45% para 42%. Como, na verdade, quem "confia um pouco" não confia, esses e quem diz com clareza que "não confia" elevam a 57% a proporção dos que não têm confiança nas Forças Armadas.

É um indicador gravíssimo. Também exposto na dedução de que no máximo 43% têm a confiança necessária. Nos países de intenções democráticas, Justiça e Forças Armadas devem ser os pilares de confiança inflexível da população, para todos os efeitos individuais e coletivos. Da Justiça nem é preciso dizer alguma coisa. Das Forças Armadas, o Datafolha dá o básico e os militares do governo dão sua contribuição.

Negativa. O país até hoje não sabe que planos levaram tantos militares reformados, e bom número de ativos, a acorrerem para o governo de um ex-militar que renegou todos os princípios de que os militares se dizem praticantes: lealdade, pundonor (sic), entrega ao dever, e por aí vai.

Se era para controlar o desatino de Bolsonaro, como foi dito ao surgir a aliança, o plano desaguou em fracasso patético. Se, como dito depois, os militares dariam os rumos do governo e Bolsonaro animaria o auditório, a realidade é que os militares não mandam nada. Mal conseguem remendar algum eco do que um deles chamou de "show de besteiras".

Fernando Canzian: Centro, volver

- Folha de S. Paulo

Após curto-circuito político, Brasil volta ao centro

O Brasil tem só 20% de seus eleitores nos dois extremos do espectro político, à direita e à esquerda. Essa minoria mais radical se divide igualmente, com 10% em cada ponta.

Os demais são eleitores de centro e os que se posicionam mais moderadamente à esquerda ou à direita, cindidos mais ou menos ao meio.

Essa distribuição foi encontrada pelo Datafolha consultando os brasileiros sobre valores sociais, políticos, culturais e econômicos meses antes do curto-circuito que foi a eleição de 2018, quando a brutal recessão e a corrupção inédita atingiram políticos tradicionais.

Na campanha eleitoral, prevaleceu o radicalismo. Maior na direita bolsonarista contrária aos gays e pró armas; mas persistente na esquerda do Lula Livre e do "eles (a elite) contra nós (o povo)".

No primeiro turno, pequenas novidades e políticos manjados de centro, centro-esquerda e centro-direita fracassaram enquanto Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad/Lula (PT) foram em frente, com 46% e 29% dos votos válidos cada. No segundo turno, o mais radical de todos levou.

Mesmo tendo vencido com 55% dos votos válidos em outubro, Bolsonaro é visto hoje por 64% dos eleitores como ruim/péssimo ou apenas regular.

Bruno Boghossian: A reforma na direita

- Folha de S. Paulo

Em campo desorganizado, Maia e Bolsonaro disputam protagonismo pós-Previdência

Se é fácil identificar a esquerda como a grande derrotada na votação da reforma da Previdência, a estranha competição pela paternidade da proposta revela alguma desarrumação no outro lado do espectro político. A briga por protagonismo nesse episódio só tem alguma relevância porque a direita saiu disforme das urnas em 2018.

A criação de regras para limitar o volume de aposentadorias e benefícios pagos pelo Estado é uma pauta inequívoca do campo liberal. Aliados de Rodrigo Maia e de Jair Bolsonaro tentam tomar os louros da vitória porque entendem que podem ficar bem na fita desse lado do corredor.

O que está em jogo, no entanto, é menos a agenda ideológica e mais a consequência da aprovação da reforma. Nesse caso, os efeitos políticos são menos claros do que os dois personagens querem fazer crer.

Não é exagero dizer que o texto só passou pelo plenário por obra do presidente da Câmara, mas o dono das chaves do Palácio do Planalto é quem tende a colher os benefícios com mais facilidade. Embora Maia tenha autoridade para fazer propaganda de seu trabalho de articulação, Bolsonaro ficará com a fama se a economia melhorar de verdade.

Vinicius Torres Freire: O resto do ano da depressão

- Folha de S. Paulo

No país bestificado, parece que a era da revolta, 2013-2018, chegou ao fim

O país quase inteiro assistiu de modo resignado à aprovação da reforma da Previdência. Na prática e no grosso, espera de modo conformado que a economia dê sinal de vida.

Talvez a reação bestificada ou perplexa fosse esperança modesta e calada em algum alívio próximo. Não é o que parecem dizer pesquisas de confiança econômica, de outros sentimentos da vida e de prestígio do governo, que sugerem desilusão e medo.

Talvez tenhamos chegado à fase de aceitação, como se diz do último estágio do luto, como se não houvesse mais a fazer além de atravessar o deserto de modo paciente. Acabou a era da revolta, 2013-2018?

Claro que esta caricatura de psicologia é apenas um modo tentativo de descrever a pasmaceira, obviamente não um diagnóstico do silêncio. O país parece ruidoso nas redes insociáveis ou no governo e nas demais minorias extremistas, mas não se movimenta política ou socialmente mesmo diante de questão controversa como a Previdência.

Antes da tramitação quase pacífica ou funérea da reforma das aposentadorias e pensões, parecia razoável estimar que o plano de mudanças previsto para o ano causasse conflito. Vai?

*Ruy Castro: Um outro 14 de julho

- Folha de S. Paulo

Nos 150 anos da Revolução Francesa, tudo ia bem para a marquesa

Paris sempre foi uma festa no dia 14 de julho, mas o de 1939 foi especial. Eram os 150 anos da Revolução. Por toda parte, debates, conferências, bailes, shows patrióticos, desfiles militares. As cores nacionais, bleu-blanc-rouge, pendiam das sacadas em cartazes, bandeiras, estandartes, lençóis e até ceroulas. As pessoas dançavam nas ruas, vestidas de Robespierre ou de Maria Antonieta, segundo a preferência. Os tataranetos dos guilhotinados confraternizavam com os tataranetos de seus carrascos.

Enquanto isso, a Europa estava toda olhos e ouvidos. Em março, Hitler tomara a Tchecoslováquia. Dias depois, era o fim da Guerra Civil espanhola, com a vitória de Franco e o massacre dos republicanos. Na Páscoa, a Itália de Mussolini invadira a Albânia. Na própria Paris, o Quartier Latin fervia de refugiados espanhóis, tchecos, turcos, romenos e judeus. Tudo parecia conduzir à guerra. A qual, se viesse, teria a França bem no centro do tabuleiro.

Míriam Leitão: Absurdos diários de Bolsonaro

- O Globo

Após seis meses no cargo, Bolsonaro ainda não entendeu o mais elementar do papel de governar para todos os brasileiros

Tanto tempo depois, já era de se esperar que o presidente Jair Bolsonaro soubesse as funções do cargo que exerce. Seis meses é prazo suficiente para qualquer aprendizado, ainda que o natural seria que ele já soubesse, ao se candidatar, as funções de quem chega ao cargo máximo do país. A grotesca e inconstitucional defesa do trabalho infantil num país que vem lutando contra essa chaga há anos, a ideia de nomear o filho para o posto diplomático mais estratégico do país, a declaração mesquinha sobre João Gilberto mostram que ele não entendeu o mais elementar do papel de governar para todos os brasileiros.

Com Bolsonaro não dá para registrar todas as impropriedades de uma vez. São tantas nestes seis meses que ocupariam um jornal inteiro. Os absurdos têm que ser listados em bases diárias, no máximo semanais, para caberem num espaço de uma coluna.

A semana terminou em vitória para ele, pela aprovação da reforma da Previdência, mas ela ocorreu a despeito dele. Durante esse período da tramitação, Bolsonaro levantou sucessivas polêmicas sobre os mais aleatórios assuntos, como se ainda fosse o deputado bizarro que ocupou por 28 anos o mandato sem relatar um único projeto. Enquanto a reforma andava, ele não construiu pontes, não dialogou e atacou quem defendia o projeto. Ele sequer entendeu a reforma que propôs. Prova disso é sua mobilização em favor dos policiais. O projeto consagra a estranha situação de um policial legislativo, que fica lá entre os tapetes verde e azul, ser o brasileiro que se aposenta mais cedo. Jair Bolsonaro continua sendo o que foi: um político paroquial e corporativista, com posições histéricas em questões de direitos humanos e que faz declarações histriônicas e impensadas.

Bernardo de Mello Franco: O capitão e os generais

- O Globo

Trapalhadas de Bolsonaro podem afetar imagem dos militares, diz José Murilo de Carvalho, que relança livro sobre as Forças Armadas na política

Há quatro anos, uma editora avisou José Murilo de Carvalho de que não tinha planos para sua obra “Forças Armadas e política no Brasil”, então sumida das livrarias. “Eles pensaram que o problema já estava resolvido”, brinca o historiador, um dos principais convidados da 17ª Flip. Com a ascensão da família Bolsonaro, ele decidiu relançar o livro pela Todavia. No prefácio à nova edição, explica por que o assunto voltou à tona.

“A origem militar do presidente eleito em 2018, amplamente alardeada por ele próprio, e a inédita e massiva presença de militares em postos-chave do governo fizeram ressurgir em alguns setores da população o receio de regresso a uma nova ditadura. Justificado ou não, o temor trouxe de volta o interesse pelo tema da relação entre Forças Armadas e política”, escreve.

Para o imortal da Academia Brasileira de Letras, que faz 80 anos em setembro, a presença de militares no poder não permite dizer que estamos diante de um regime parecido com o de 1964. “Ironicamente, o pouco de sensatez e equilíbrio em meio a posturas radicais e desastrosas do presidente, incentivado por seus apoiadores mais fanáticos, tem sido devido aos generais em posições-chave”, observa.

“O curioso é que agora os generais têm que obedecer a um capitão indisciplinado”, acrescenta, em conversa com a coluna em Paraty.

Ex-professor da Escola de Guerra Naval, Carvalho pondera que os oficiais de hoje não são iguais aos que lideraram o golpe contra João Goulart. Mesmo assim, ele se diz preocupado com novos episódios de interferência militar na política. Um dos mais barulhentos foi o tuíte do general Eduardo Villas-Bôas em abril de 2018, na véspera de um julgamento do Supremo Tribunal Federal que poderia libertar o ex-presidente Lula. O então comandante escreveu que o Exército estava aliado aos “cidadãos de bem” e “atento às suas missões institucionais”.

Merval Pereira: Crise da renovação

- O Globo

A maior renovação da Câmara Federal nos últimos 20 anos está na base da aprovação da reforma da Previdência e do choque entre as direções partidárias de esquerda e os novos deputados
eleitos

A maior renovação já havida na Câmara Federal nos últimos 20 anos está na base não apenas da votação expressiva de aprovação da reforma da Previdência mas, sobretudo, do choque entre as direções partidárias de esquerda e os novos deputados eleitos sem compromissos com erros do passado.

Nada menos que oito dos 27 deputados da bancada do PDT e 11 dos 32 do PSB votaram a favor da reforma e agora enfrentam possíveis punições, que podem ir até a expulsão. Esse embate, que tem na deputada Tabata Amaral o rosto mais visível, coloca com clareza a disputa entre os genuínos novos políticos e a velha estrutura partidária, especialmente da esquerda brasileira, que vive momento de isolamento no debate nacional.

A crise partidária provocada pela rejeição aos políticos tradicionais fez com que surgissem diversos movimentos para formar novos candidatos. O Agora, que tem entre seus idealizadores o apresentador de televisão Luciano Huck, que chegou a ser cogitado como candidato à Presidência da República; o RenovarBR, curso de liderança política organizado pelo empresario paulista Eduardo Mufarej; o Acredito; e o Rede de Ação Política pela Sustentabilidade elegeram 36 deputados.

Outro movimento, o Unidos Contra a Corrupção, que deu apoio a deputados que assinaram seu manifesto, viu 34 deles serem eleitos. Estes estão na base da aprovação, sem muitos cortes por enquanto, do pacote anticrime enviado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.

A eleição de 2018 foi responsável por colocar em minoria, pela primeira vez nos últimos anos, os deputados que se reelegeram. Dos 513 deputados que tomaram posse, apenas 48,9% se reelegeram, quando a média histórica era de 54% a 58%.

A renovação radical da representação tem um número definitivo: 91 candidatos, nada menos que 18% dos eleitos, nunca haviam disputado uma eleição antes, como Tabata, que tem 25 anos e é cientista política formada pela Universidade Harvard.

Também foi reduzido o número de políticos que já fizeram parte da Câmara em outras ocasiões, como o hoje deputado federal Aécio Neves, que foi eleito senador e agora voltou como deputado federal. A representatividade na Câmara reflete a polarização contínua entre esquerda e direita. O maior número de candidatos novos eleitos é do PSL, partido que tinha uma bancada minúscula antes de ser escolhido por Bolsonaro para ser a sigla pela qual concorreria à Presidência da República.

Dorrit Harazim: A serventia de um embaixador

- O Globo

Anunciado pelo pai 48 horas após completar 35 anos, o escrivão da Polícia Federal, deputado federal mais votado em São Paulo, aceita seu destino

A semana é oportuna para se relembrar a utilidade primária de um embaixador: enviar avaliações francas, sem enfeites, sobre o país ao qual foi alocado, através de canais de comunicação confidenciais e presumivelmente seguros. A partir do momento em que o receio de vazamentos e/ou a autocensura começam a interferir, o trabalho do diplomata deixa de ter peso político e valor histórico.

Por pouco mais de dois anos, Sir Kim Darroch serviu como embaixador do Reino Unido em Washington, posto mais relevante na carreira de todo diplomata da era moderna. Até ser forçado a pedir demissão do cargo dias atrás, vinha sendo um olheiro astuto da tempestuosa governança Donald Trump e um valioso servidor público de seu país.

O vazamento seletivo de seus telegramas diplomáticos para o tabloide londrino “Mail on Sunday”, que aponta para a briga intestina entre brexistas e menos brexistas no esfacelado governo britânico, também atesta o valor das avaliações francas de Darroch.

Não que ele tenha desvendado um cenário intocado até então. A pilha de livros e relatos na mídia sobre o estado de fervura permanente na Casa Branca indicam, dia a dia, a “insegurança”, “intempestividade”, “caos” de seu principal ocupante.

Desta vez, porém, o que mais doeu em Trump, a ponto de chamar o embaixador de “maluco... sujeito burro... bobalhão pomposo” e cortá-lo de cerimônias oficiais, foi a humilhação pública de se ver assim retratado por um embaixador da Velha Albion. E Kim Darroch não é um embaixador qualquer —já foi representante permanente da Grã-Bretanha na União Europeia, assessor de Segurança Nacional do governo anterior, e tido como nome estelar do Foreign Office.

Ascânio Seleme: Uma enxurrada de dinheiro em Brumadinho

- O Globo

Dinheiro nem sempre é solução para os problemas de uma pessoa, de uma família ou de uma comunidade. Claro que ajuda, mas precisa ser bem administrado porque pode também atrapalhar. O caso do dinheiro esparramado pela Vale em Brumadinho, em razão da tragédia da barragem do Córrego do Feijão, ajuda indivíduos, mas parece estar atrapalhando a cidade. Desde janeiro, os moradores do município estão recebendo até um salário mínimo de indenização. Também recebem a ajuda mensal pessoas que tinham casa a até um quilômetro da calha do Rio Paraopeba, de Brumadinho até a cidade de Pompéu. A Vale assina 99.835 cheques a cada mês.

O derrame de dinheiro, que alcança a todos, mesmo os que não foram atingidos diretamente pela tragédia, é absolutamente justo. Eles estão sendo reparados imediatamente, sem qualquer impacto sobre decisões da Justiça mais adiante, porque além das perdas humanas e materiais evidentes, houve uma desvalorização geral dos imóveis na localidade. A Vale não faz mais do que sua obrigação. Ocorre que dinheirama igual jamais foi vista nos bolsos dos brumadinenses. Todos ficaram “ricos” de uma hora para outra.

Esta “riqueza” etérea, que tem data para acabar, dezembro deste ano, desarrumou a economia local. Trabalhadores sem vínculo empregatício, que fazem empreitadas, foram os primeiros a entrar em férias voluntárias. Em seguida, empregados domésticos entenderam ser mais interessante ficar em casa do que trabalhar. Em menor número, empregados do comércio de Brumadinho também começaram a faltar ao trabalho ou a abandoná-lo simplesmente.

Elio Gaspari: Os planos de saúde voltam a atacar

- O Globo / Folha de S. Paulo

As operadoras querem levar a lei dos seus sonhos ao escurinho de Brasília

Está no forno de um consórcio das grandes operadoras de planos de saúde um projeto destinado a mudar as leis que desde 1998 regulamentam esse mercado. Chama-se "Mundo Novo", tem 89 artigos e está trancado numa sala de um escritório de advocacia de São Paulo. O plano é levá-lo para o escurinho de Brasília, deixando-o com o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e com o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia. Ambos ajudariam o debate se divulgassem o "Mundo Novo" no dia em que chegasse às suas mesas, destampando-lhe a origem.

É a peça dos sonhos das operadoras. O projeto facilita os reajustes por faixa etária, derruba os prazos máximos de espera, desidrata a Agência Nacional de Saúde Suplementar e passa muitas de suas atribuições para um colegiado político, o Conselho de Saúde Suplementar, composto por ministros e funcionários demissíveis ad nutum.

Irá para o Consu a prerrogativa de decidir os reajustes de planos individuais e familiares, baseando-se em notas técnicas das operadoras (artigos 85 e 46) e não nos critérios da ANS. Cria a girafa do reajuste extraordinário, quando as contas das operadoras estiverem desequilibradas. Uma festa.

A ANS perderá também o poder de definir o rol de procedimentos obrigatórios que as operadoras devem oferecer. Essa atribuição passa para o Consu, que não tem equipe técnica, mas pode ter amigos. Desossada, a ANS perderá também o poder de mediação entre os consumidores e as operadoras. (Tudo isso no artigo 85.)

Ricardo Noblat: Como ganhar dinheiro com o combate à corrupção

- Blog do Noblat / Veja

Por que Dallagnol não entrega o celular para perícia

A nova leva de mensagens trocadas por procuradores da Lava Jato e publicada, hoje, pela Folha de S. Paulo em dobradinha com o site The Intercept, explica por que Deltan Dallagnol se nega a entrar seu celular à Polícia Federal para ser periciado.

Parte dos segredos guardados na memória do celular começou a ser revelada, e deixa Dallagnol exposto à acusação de que ganhou ou de que tentou ganhar dinheiro com o combate à corrupção. Os diálogos dele com o colega Roberson Pozzobon são vergonhosos.

Em um deles, de dezembro do ano passado, quando discutiam a montagem de um plano de negócios de eventos e palestras para lucrar com a fama e contatos obtidos durante as investigações da Lava Jato, Dallagnol escreveu:

“Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto perderíamos em termos monetários”.

Antes, em conversa com sua mulher, o procurador havia informado:

“Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade”.

A lei proíbe que procuradores gerenciem empresas e permite que apenas sejam sócios ou acionistas de companhias. Mas Dallagnol imaginou uma forma de contornar a lei: a empresa seria aberta em nome da sua mulher e da mulher de Pozzobon.

“Antes de darmos passos para abrir empresa, teríamos que ter um plano de negócios e ter claras as expectativas em relação a cada um. Para ter plano de negócios, seria bom ver os últimos eventos e preço” – ensinou Dallagnol. Pozzobon respondeu:

“Temos que ver se o evento que vale mais a pena é: i) Mais gente, mais barato ii) Menos gente, mais caro. E um formato não exclui o outro”.

Em 14 de fevereiro último, Dallagnol propôs que a empresa a ser aberta em nome da sua e da mulher de Pozzobon tivesse como responsável pela organização de eventos a dona da firma Star Palestras e Eventos, Fernanda Cunha.

Ele sabia que a jogada era de risco. Tanto que disse a Pozzobon:

“É bem possível que um dia ela [Fernanda Cunha] seja ouvida sobre isso pra nos pegarem por gerenciarmos empresa”.

Pozzobon respondeu em tom jocoso:

“Se chegarem nesse grau de verificação é pq o negócio ficou lucrativo mesmo rsrsrs. Que veeeenham”.

Há mensagens de Dallagnol para o então juiz Sérgio Moro, o verdadeiro condutor da Lava Jato, aconselhando-o a ganhar dinheiro com palestras e a cobrar mais caro do que ele e Pozzobon pretendiam cobrar. Moro, de fato, fez palestras pagas.

Dallagnol nega que tenha criado a empresa. Mas não nega a troca de mensagens a respeito com sua mulher e Pozzobon. Limita-se a repetir que não as reconhece e que elas podem ter sido adulteradas. É a mesma posição adotada por Moro.

Fez bem o ex-juiz de ter pedido licença do cargo e embarcado para descanso nos Estados Unidos. Por sinal, ao entrar no avião, foi reconhecido e aplaudido por passageiros.

Riscos de nepotismo e obscurantismo no Itamaraty: Editorial / O Globo

Intenção do presidente de nomear um dos filhos para embaixada nos EUA contrasta com histórico da instituição

Anuncia-se a abertura ao público da correspondência oficial, reservada, mantida pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro com o presidente João Figueiredo durante a Guerra das Malvinas, em 1982. É bem-vinda a iniciativa da Fundação Getulio Vargas. Há 37 anos, no dia 2 de abril, a ditadura militar argentina surpreendeu o mundo com a invasão das Ilhas Malvinas. O confronto com o Reino Unido se tornava irreversível, e o Brasil ficou no fio da navalha.

Com a perspectiva de guerra no Atlântico Sul, não podia correr risco de isolamento continental, dando a impressão de apoio ao Reino Unido — até porque não apoiava. Também recusava o alinhamento à Argentina. E a tradicional rivalidade no Cone Sul inspirava preocupação com eventual fortalecimento do regime militar argentino.

Empregados do Itamaraty, o ministro Guerreiro e o embaixador brasileiro em Washington, Azeredo da Silveira, manejaram com destreza o Direito Internacional em defesa dos interesses nacionais. Ao responder a um pedido de ajuda no rascunho do “pensamento do senhor presidente”, Guerreiro traçou uma estratégia. E sugeriu evitar “declarações de autoridades militares”.

Mais reformas: Editorial / Folha de S. Paulo

Cabe planejar com realismo a extensa e difícil agenda legislativa pela frente

A reforma da Previdência consumiu mais da metade do ano legislativoaté que fosse levada a votação no plenário da Câmara dos Deputados. É compreensível, pois se trata de projeto extenso e controverso por natureza. E não será o último dos trabalhos árduos que o Congresso terá pela frente.

Para que venham outras reformas imprescindíveis e o país tome enfim o caminho da recuperação econômica, caberá às lideranças noção precisa das prioridades, pragmatismo e realismo político.

Assunto tão conflituoso quanto a Previdência, o sistema tributário nacional deve ser o próximo alvo da agenda. Estão em pauta planos diversos e por vezes inconciliáveis de mudar o peso de impostos para diferentes setores produtivos, alterar o Imposto de Renda, reduzir a autonomia de estados e municípios e mesmo de recriar a CPMF.

STF e a laicidade do Estado: Editorial / O Estado de S. Paulo

No extenso rol das competências privativas do presidente da República, como dispõe o artigo 84 da Constituição, consta, no inciso XIV, “nomear, após a aprovação pelo Senado Federal, os ministros do Supremo Tribunal Federal” (STF). A indicação para a Corte é quase uma livre escolha do chefe do Poder Executivo. Só não o é porque a própria Lei Maior estabelece, no artigo 101, os pré-requisitos para a ascensão ao topo do Poder Judiciário: os indicados devem ser cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos, de notório saber jurídico e reputação ilibada.

No curso de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro terá oportunidade de indicar dois nomes para o STF. O primeiro, para ocupar a vaga a ser aberta pela aposentadoria do ministro Celso de Mello no ano que vem. O segundo, para substituir o ministro Marco Aurélio Mello, que se aposentará em 2021. Pela primeira vez em público, durante um culto religioso celebrado pela Frente Parlamentar Evangélica na Câmara dos Deputados, Jair Bolsonaro afirmou que para uma dessas vagas pretende indicar um nome “terrivelmente evangélico”. Não se sabe exatamente o que o presidente vê de bom nessa estranha qualificação, mas isso não vem ao caso.

Lourival Sant'Anna: Roteiro populista

- O Estado de S.Paulo

No seu âmago está um impulso de retorno às origens, nostalgia de um passado ‘bom’

Berço da democracia, a Grécia foi a precursora da atual onda de populismo, com a eleição, em 2015, do premiê Alexis Tsipras, do movimento Coalizão da Esquerda Radical (Syriza). No último domingo, os eleitores gregos puseram fim a esse experimento, trazendo de volta a Nova Democracia, de centro-direita.

Como já escrevi nesta coluna, não se deve extrapolar experiências de um país para outro, e a noção de “tendência” é simplista demais num mundo tão complexo e diverso. Mas isso não nos impede de reconhecer, na tragicomédia grega, o roteiro que o populismo costuma seguir, em qualquer tempo e lugar, entre a fantasia e o choque com a realidade. Tsipras elegeu-se no auge da crise da dívida, prometendo atropelar as exigências dos credores internacionais de corte nos gastos e aumento nos tributos. Depois de eleito, ainda submeteu os gregos a um ridículo plebiscito, no qual venceu sua proposta de recusar o plano de resgate dos credores.

Semanas depois, o governo em Atenas se resignou à falta de alternativa e passou a aplicar a receita. As contas começaram a se acertar, e a economia, a crescer, após uma década de recessão. Os eleitores gregos chegaram então a uma conclusão óbvia: se é para seguir as regras da economia, então pelo menos que seja com alguém que não briga com elas.

O futuro premiê, Kyriakos Mitsotakis, estudou Relações Internacionais em Stanford, fez MBA na Harvard Business School, trabalhou na empresa de consultoria McKinsey e no banco Chase Manhattan, entre outros. Promete vencer o desemprego de 18% melhorando o ambiente de negócios e cortando impostos sem desequilibrar as contas públicas, algo que os credores e a Comissão Europeia vigiarão com lupa.

A sorte dos gregos foi imensa, pois, como aconteceu com o então presidente Lula, Tsipras abandonou a rebeldia juvenil contra as leis da economia que nutria e assumiu, não sem antes relutar um pouco, as responsabilidades de governante. Se o ciclo petista tivesse durado 4 anos, como na Grécia, em vez de 13, provavelmente não teríamos cavado um buraco tão profundo.

O Syriza foi precursor dos movimentos populistas na Europa. Não pela sua identificação de esquerda, mas pela sua hostilidade ao globalismo e às convenções políticas. O populismo tem florescido mais com uma coloração de direita do que de esquerda (com exceção do M5S na Itália). Mas suas plataformas têm muito em comum.

No seu âmago está um impulso de retorno às origens, uma nostalgia de um passado supostamente bom, que ou só era bom para um grupo ou nunca foi tão bom assim.

Há a condição real de camadas da população prejudicadas pela globalização, e os governos precisam adotar políticas compensatórias para incluí-las. E há a manipulação desse sentimento, por parte de políticos malandros, que atropelam as regras - sejam econômicas ou políticas - para se apropriar de um poder maior do que os limites da contabilidade pública ou da democracia permitem.

As expressões mais visíveis disso são a valorização da intuição em detrimento da técnica e a confusão entre o público e o privado, ambas apresentadas na forma de boa vontade, irreverência, despojamento e proximidade com as pessoas comuns.

Por mais simpático - ou simplório - que seja um filho do presidente se dizer pronto para ser embaixador em Washington porque fez intercâmbio e fritou hambúrgueres nos Estados Unidos, será essa a escolha tecnicamente melhor, para o país?


Foi emblemática a decisão de uma corte de apelações americana, que impediu o presidente Donald Trump de bloquear seguidores do seu perfil no Twitter, já que ele utiliza a rede social para divulgar suas ações de governo. Um presidente não é um cidadão comum. O mundo não é simples e as aparências enganam.

Entrevista | Câmara dos Deputados vai conduzir reforma social, diz Rodrigo Maia

Após à aprovação da nova Previdência, presidente da Casa quer levar adiante agenda reformista, com revisão tributária e de programas sociais

Rodrigo Maia: 'Para recuperar o respeito da sociedade, parlamento precisa assumir seu protagonismo'

Em entrevista ao GLOBO um dia depois da aprovação da reforma da Previdência, presidente da Câmara mira reformas tributária, social e reestruturação de carreiras

Geralda Doca, Martha Beck e Paulo Celso Pereira / O Globo

BRASÍLIA - Um dia depois de aprovar a reforma da Previdência em primeiro turno na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), concedeu entrevista ao GLOBO na qual falou sobre os próximos passos daagenda econômica . Embora ainda seja preciso aprovar a proposta em segundo turno no plenário da Câmara, Maia apontou três novos eixos: reforma tributária ,reestruturação de carreiras do funcionalismo e reforma social . Essa última envolve ações para melhorar a alocação do dinheiro público. Segundo Maia, “para recuperar o respeito da sociedade, o parlamento precisa assumir seu protagonismo”.

Segundo Maia, é preocupante o governo não ter uma agenda num momento em que houve aumento da pobreza e do desemprego. Para ele, a liderança do governo no Congresso não tratou dos interesses dos mais pobres na reforma da Previdência e sim das corporações que ajudaram a eleger o presidente Jair Bolsonaro.

- O que a gente quer é que o governo dê certo. Demos uma demonstração disso, e esperamos que eles possam olhar para os brasileiros mais pobres. O presidente Bolsonaro sempre representou corporações, que têm estabilidade no emprego. Esse é um eleitor que não passa fome, não fica desempregado - afirmou Maia.

Leia a íntegra da entrevista:

• Aprovada a Previdência na Câmara, a agenda reformista veio para ficar?
Meu sentimento é que sim. A agenda das reformas tem um objetivo. Ninguém quer reformar por reformar. Os deputados estão brigando por R$ 10 milhões de emendas, enquanto a Previdência está tomando da gente R$ 50 bilhões a mais a cada ano. Estamos perdendo esse montante para financiar uma distorção em detrimento de podermos atender ao eleitor que nos trouxe ao parlamento.

• Quais são os grandes temas que vêm pela frente?
Além da Previdência, reestruturação de carreiras, reforma tributária e reforma social. Esta última, a Câmara pode fazer. A (deputada) Tábata (Amaral) trouxe aqui o (economista) Ricardo Paes de Barros para falar sobre a rede de proteção dos trabalhadores. Estamos trabalhando para avaliar a aplicação desses recursos e qual é o melhor formato a ser proposto.

• O que seria a reforma social?
Você precisa primeiro avaliar os programas que existem. A aplicação do Bolsa Família. Como ter um formato onde você possa, de fato, trabalhar com foco na educação da primeira infância e na evasão no final do ensino fundamental. Como estimular que as crianças entrem mais cedo na escola e fiquem mais tempo na escola. E estudar os incentivos. Por exemplo, o da cesta básica. Existem economistas que têm convicção de que os R$ 14 bilhões que nós damos como incentivos não chegam na ponta no preço do produto. Temos que pegar tudo o que existe e ver a melhor forma que alocar os recursos, criar programas com recursos existentes, discutir a melhor forma de usar o FGTS. A gente tem um idoso abaixo da linha da pobreza para cinco crianças por uma decisão política do BPC (Benefício de Prestação Continuada), que ninguém tem coragem de mexer. A gente tomou uma decisão de alocar recursos no idoso em detrimento da criança.

Entrevista |Governo Bolsonaro sem coalizão deixou Congresso mais forte, diz Maia

Presidente da Câmara diz que presidente terá dificuldade em aprovar projetos se mantiver base aliada frágil

Thais Arbex, Leandro Colon / Floha de S. Paulo

BRASÍLIA - O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou neste sábado (13), em entrevista à Folha, que o Congresso tem se fortalecidopor causa da forma com que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) faz política, sem uma base de coalizão apoiando o governo.

Para Maia, se Bolsonaro mantiver esse modelo de relação com o Parlamento, terá dificuldade em aprovar projetos do governo.
Na avaliação dele, somente propostas que interessam ao estado brasileiro, como as reformas da Previdência e a tributária, terão sucesso.

Na entrevista, realizada na residência oficial da Presidência da Câmara, Maia negou se considerar um “primeiro-ministro”, mas disse ter chegado ao “topo” de sua carreira política no comando da Casa com a aprovação do primeiro turno da reforma da Previdência, concluído na noite desta sexta-feira (12).

Maia disse ainda que o ministro Paulo Guedes (Economia) errou ao criticar a Câmara e que caberá a ele retomar a relação com os deputados.

• Há uma sensação de que o sr. ocupou um espaço de poder deixado por Bolsonaro. O sr. hoje é a figura mais poderosa da política brasileira?
No sistema presidencialista, o presidente é sempre a figura mais poderosa. Acho que a forma como o presidente compreende a relação com o Legislativo dá a impressão de que o Parlamento está mais forte. Mas o Parlamento está mais forte exatamente pela forma com que o presidente faz política. Quando os governos fazem presidencialismo de coalizão, assumem prerrogativas do Legislativo. E a decisão do presidente de governar sem uma coalizão nos obriga a recuperar a nossa prerrogativa.

• O sr. se sente um primeiro-ministro?
Não. Apesar de achar que o sistema parlamentarista tem qualidade, virtudes, o Brasil é presidencialista, não quer parlamentarismo. Então a gente não pode querer ocupar um espaço que não existe e que a sociedade discorda.

• O sr. considera que o discurso na votação da reforma foi o principal da sua carreira?
Sem dúvida nenhuma. Foi o momento mais importante da minha carreira política. [Emocionado, Maia faz uma pequena pausa e seus olhos enchem de lágrimas].

• Como isso muda de patamar a sua vida em termos de projeção?
No parlamentarismo, a posição mais importante de um político é ser o chefe do Legislativo para ser o primeiro-ministro, não é isso? Eu cheguei no topo da política. Presido a Câmara dos Deputados num momento importante da política brasileira. Então eu não sei se tem outra posição que possa me dar no futuro mais alegria do que ser presidente da Câmara.

• Candidato a presidente da República em 2022?
Olha, é claro que um elogio, uma referência, é claro que gosto, mas não estou olhando 2022. Acho que quem tem pretensão de ser governador, de ser presidente, eu respeito. O [governador de São Paulo, João] Doria está colocado, o governador do Rio [Wilson Witzel] também tem pretensão. O Luciano Huck não diz isso, mas você sente que ele está querendo construir um ambiente de diálogo sobre o futuro do Brasil.

• No mesmo discurso, o senhor disse que o centrão, “essa coisa do mal”, aprovou a reforma. Qual era o recado?
A coisa é tratada sempre de forma pejorativa. E às vezes se desgasta o coletivo de forma injusta. De forma majoritária, o ambiente reformista na Câmara está nos partidos colocados como do centrão. Não tem essa unidade que as pessoas imaginam. Não é um corpo unido.

• O sr. falou em nova relação com o governo. O que seria?
A reforma da previdência era do estado brasileiro, não do governo. Mas os projetos de interesse do governo, ou se melhora o diálogo e a relação, ou o governo não terá nenhuma chance de aprová-los. Se não melhorar a relação, uma privatização, que é uma agenda do governo, não passa. Ou o governo mostra ao seu entorno que a democracia precisa ser respeitada ou terá dificuldade.

• A deputada Tabata Amaral virou um símbolo da votação e está sendo perseguida dentro do PDT. Como o sr. vê esse episódio?
Não gosto de me intrometer na decisão do partido dos outros. Todo mundo sabe como a Tabata chegou à Câmara, como foi a formação dela, em um ambiente que na agenda econômica é liberal. Não sei se o PDT tinha essa informação. Acho que é ruim se colocar uma menina jovem, que tem uma história de vida muito bacana, como símbolo de um erro.

• Qual balanço do primeiro turno da reforma?
Muito positivo. A gente não está tratando de qualquer reforma, temos que comparar com o que foi feito no mundo e havia de expectativa no Brasil há um ano. A economia será de R$ 1,1 trilhão, sendo R$ 900 bi da reforma e R$ 200 bi da MP 871 (pente-fino do INSS). Ter R$ 900 bi num país com uma base de governo minoritária é um resultado excepcional.

• O economista Paulo Tafner fala em economia entre R$ 820 bilhões e R$ 850 bilhões.
Ele está errado. O Leonardo Rolim (secretário de Previdência) estava aqui (na residência oficial) hoje e a economia está em R$ 890 bi, e quem faz as contas para o Tafner é o Rolim. Mesmo que fosse R$ 850 bi, é o dobro do que havia sido projetado no governo de Michel Temer. 

• Especialistas criticaram a redução de 20 anos para 15 anos no tempo mínimo de contribuição para homens. Tafner vê um retrocesso, por exemplo.
Isso foi ajustado com a equipe econômica. Você não vai resolver o problema da informalidade aumentando o tempo mínimo de contribuição. O problema não está no sistema previdenciário, mas na formação do trabalhador e do mercado de trabalho. Discordo que foi um retrocesso. Respeito e admiro o Tafner, o citei em meu discurso, mas os grandes economistas deveriam agora trabalhar para ajudar a aprovar o segundo turno e não atrapalhar.

• O sr. falou no discurso que sua preocupação era acabar com as desigualdades. Mas ao ceder para algumas categorias, como professores e policiais, a Câmara não ajuda a aumentar isso?
Entre a nossa vontade e a realidade do plenário temos um caminho muito longo. No sistema democrático, a gente não faz o que quer, mas o que o plenário da Câmara, eleito de forma legítima, consegue construir em sua maioria.

• Um dos fatores que ajudaram na reforma foi a liberação de emendas. Não é uma vitória da velha política?
Não acho. Acho que a relação do governo com o poder legislativo é legítima. Você atender suas bases eleitorais é legítimo. Da forma com que se escreve às vezes dá a impressão de que alguém está lutando para receber uma emenda pessoal. O governo parou nos últimos meses. Precisamos que o governo toque a coisa, que o orçamento seja executado. E dentro do orçamento tem a emenda dos deputados.

• Qual é a perspectiva para a votação em segundo turno da reforma?
Da mesma forma que a oposição ficou mais tranquila no final, de alguma forma, quando viu que a gente não ia ter condição de votar ainda no mês de julho, a gente também tem tempo de mapear quantos votos a gente teve no [texto] principal e quantos votos perdeu.

• Muitos deputados criticaram o fato de o presidente colocar a indicação do filho Eduardo para a embaixada dos EUA no meio da aprovação da reforma. Ele jogou uma pauta negativa no meio da positiva.
Acho que só tira o protagonismo dele no tema e aumenta o protagonismo da Câmara. Só isso. Fortalecer o parlamento é o que me interessa, na hora em que estamos fortalecendo o parlamento e ele está tratando de outro tema, ajuda.

• Além da previdência, quais outras prioridades?
Tem alguns eixos. Um deles era o texto da reforma da Previdência. O outro é organizar o sistema tributário, que de fato privilegia parte da sociedade, ninguém quer abrir mão. O outro é a reforma do estado, você precisa ter uma melhor produtividade do serviço público. Além do eixo social.

Qual é a agenda de prazo da reforma tributária?
Acredito que vai levar um tempo maior na comissão e tem que tomar cuidado para não ir no varejo. Tem que ter uma organização, um corpo e não dá para mutilar o corpo. Tem alguns problemas em uma reforma com a qual vai se criar um IVA nacional. Os estados, majoritariamente, aceitam a legislação, mas tem algumas críticas. Calibrando bem isso, dá para ser resolvido. Tem o problema da Zona Franca, não dá para acabar com a Zona Franca. E tem o setor de serviços que tem uma cadeia curta.

• E o sr. refez a amizade com o Paulo Guedes (Economia)? Está tudo bem agora?
Está tudo bem. Falei com ele por mensagem.

• Não senti firmeza…
Sou o maior admirador do Paulo Guedes, mas ele errou e eu represento a Câmara. Essa coisa vai ter que se ajustar na recomposição dele com a Câmara, não comigo.

Entrevista | 'Eu ainda não bloqueei o Guedes no WhatsApp', diz Rodrigo Maia

Em entrevista ao 'Estado', o presidente da Câmara minimizou atritos com o ministro da Economia Paulo Guedes, disse que o governo Bolsonaro terá dificuldades para emplacar projetos e garantiu que não pretende disputar a Presidência em 2022

Adriana Fernandes e Felipe Frazão / O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Responsável pelo sucesso na articulação e tramitação da reforma da Previdência, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não almeja disputar a Presidência da República ou o governo do Rio de Janeiro. Para ele, sem reformas aprovadas, não há motivo para tentar um cargo numa eleição majoritária. “Não quero ser administrador de crise”, disse. Maia recebeu a reportagem do Estadonesse sábado, 13, na residência oficial. Para ele, um candidato que queira ter capacidade para enfrentar Bolsonaro em 2022 precisa caminhar da direita para o centro ou para a centro-esquerda.

O presidente da Câmara disse que defendeu a reforma da Previdência por convicção, não por compromisso com o governo, e reiterou que pode apoiar quem quiser para a presidência em 2022. “Por que eu tenho que ter lealdade a esse governo, do ponto de vista político?”, disse. Ao falar sobre o afastamento entre ele e Paulo Guedes, após oministro da Economia criticar os parlamentares, Maia disse que ainda o admira. “Troco WhatsApp. Eu não bloqueei ele ainda”, disse.

Após a votação da reforma da Previdência, Maia deixou claro que o governo terá dificuldades para emplacar a sua pauta de projetos. "Vamos tocar as pautas de Estado. As pautas de governo, se esse diálogo não melhorar, vai haver muita dificuldade de tocar", disse. Ele avisou que será difícil ter voto para aprovar as privatizações. Essa é uma das principais agendas do plano do ministro Paulo Guedes para a fase pós-previdência.

Leia a íntegra da entrevista.

• Por que o choro na hora do resultado da votação da reforma?
Boa parte do plenário apoiando é uma demonstração de confiança de apoio. Eu sou um cara que me emociono. Ter o seu trabalho reconhecido pelo seus pares não é algo que acontece todos os dias. Somado a todos os acontecimentos dos últimos meses e a dificuldade para ter chegado até a votação.

• Foi mais emocionante do que a sua reeleição?
Eu acho que o apoio nesse momento foi maior do que nas minhas três eleições. Eu vi muitos deputados vindo para mim e dizendo: “eu acho que hoje acertei no voto para presidente da Câmara". Esse apoio foi mais forte do que o da reeleição, em que tive 334 votos. Nessa semana, foi um apoio espontâneo de parte importante da Câmara à minha condução como presidente e aquilo que estou representando nos últimos meses.

Clarice Lispector analisa obra de Maksim Gorki em ensaio redescoberto

Autora falou sobre o escritor que é um dos pais da literatura russa no texto que estava perdido no acervo da Biblioteca Mário de Andrade

Gutemberg Medeiros*/ O Estado de S. Paulo

A Biblioteca Mário de Andrade lança nesta quarta, 17, às 19h, na Rua da Consolação, 94, duas novas edições de sua tradicional revista, uma dedicada a Clarice Lispector e a outra a Monteiro Lobato. Como editor da edição sobre Clarice, a primeira providência que tomei foi realizar o levantamento de obras de ou sobre a autora no amplo acervo da biblioteca. O que mais me surpreendeu foi uma coletânea de ensaios dedicada ao escritor russo Maksim Gorki (1838-1936), publicada no Rio de Janeiro em 1968, pela Editora Teatro Novo, assinados por Clarice, Otto Maria Carpeaux, Antônio Houaiss, José Lino Grünewald, Walmir Ayala e Gianni Ratto. O texto que traz a assinatura de Clarice intitula-se Atualidades de Gorki.

Na sequência, entrei em contato por e-mail com os gestores dos direitos autorais da escritora pedindo a liberação para publicar o ensaio, cuja resposta foi: “A família não reconhece a autoria, de modo que não poderá indicar a publicação.” Não localizei menção a este texto nos materiais sobre a autora e este volume não consta em seu acervo na Casa Rui Barbosa, localizada no Rio de Janeiro.

Porém, o diretor de teatro Gianni Rato (1916-2005) registra em suas memórias A Mochila do Mascate (Editora Hucitec, 1996) a montagem, com sua direção, da peça Ralé, de Gorki, na Companhia Teatro Novo, no Rio de Janeiro, em 1968.

Ratto informa, em paralelo à peça, sobre a publicação encontrada na Biblioteca Mário de Andrade, rodada na gráfica do jornal Correio da Manhã, provavelmente vinda no Acervo de Otto Maria Carpeaux. O ensaio de Clarice Lispector tem várias características relevantes. Em toda a sua extensão lembra a carpintaria de texto da autora – e o tom memorialístico impresso nas crônicas.

É uma homenagem emocionada de uma autora nascida russa a outro autor russo, um dos que mais a comoveu na adolescência, etapa revivificada com a leitura da peça Ralé na maturidade.

A autora aponta a importância da Revolução Russa ao ser a “salvação, pois a morte de um povo estava a acontecer”. Para continuar: “Não estou dizendo que o comunismo resolva a miséria da vida de qualquer país, tirando-lhe a dignidade: mas a Rússia resolveu”.

O texto emana o calor do momento em que foi escrito, logo após o estrangulamento da democratização da Checoslováquia com a invasão dos tanques soviéticos, em 20 de agosto de 1968.

Apesar de salvar a Rússia da fome, o que veio logo depois com a então URSS foi um império ditatorial. A atualidade de Gorki é, conforme o ensaio, a de clamar por uma terra de justiça entrevista em 1917, mas perdida no correr do século. Retomar Gorki com Ralé é retomar o necessário sonho da Utopia.

Atualidades de Gorki, por Clarice Lispector
Gorki foi um dos escritores que mais me comoveram na adolescência, mas ainda não havia lido ainda nenhuma peça dele. Agora, me cai nas mãos, não só a peça Ralé, como a minha própria adolescência.
Em Ralé, o modo de aceitarem tragicamente a trajetória humana é um desafio, como se abrissem a camisa e mostrassem despudoradamente o corpo nu pronto para a flechada.

“Ninguém vai chorar a morte de Ana. Que há de triste nisso? A gente nasce, vive algum tempo e depois morre. Eu morrerei e você também. O que há de triste nisso?”

Isso é o cinismo de quem já chegou em vida ao fim da vida áspera. Gorki tem um modo de dizer as verdades as mais sábias provocando em nós, apesar de fartos de saber, um arrepio frio quando ele diz que se vive algum tempo e se morre. Um calor de choro contido vem do coração e dos olhos diante dessa simplificação – nasce-se, vive-se, vive-se um pouco, morre-se. Nada mais se pode acrescentar. E depois a situação de miséria humana máxima: “Não fique magoada, minha filha. Eles... não... choram os mortos? Minha querida... os vivos, ninguém os chora... nós mesmos somos incapazes de chorar por nós, então, que fazer?”

O comunismo na Rússia não foi apenas uma forma política e sim de salvação pois a morte de um povo estava prestes a acontecer. Não estou dizendo que o comunismo resolva a miséria da vida de qualquer país, tirando-lhe a dignidade: mas a Rússia resolveu. Até que se tornou imperialista chegando mesmo a invadir a Checoslováquia, isto é, um país que não estava precisando de ajuda russa. Pois inclusive já era socializada. O povo russo, com sua alma, profunda e indisciplina, com sua música das mais ardentes do mundo, precisava de quem o guiasse, de quem o mantivesse dentro de uma disciplina, mesmo que a disciplina doesse – até que os sentimentos desiguais, social e psicologicamente fossem entrando pela “porta estreita” e viesse a luz: a liberdade de viver, sem que haja a ralé imunda e desgraçada da Rússia do século 19. No meio daquela degradação da pessoa humana, um homem é chamado de bom; ele responde – “É necessário, filhinha, que alguém seja bom... É preciso ter piedade dos homens. – Cristo se apiedou dos homens. Nossa herança é fazer o mesmo.”

Poema | Graziela Melo: Menina triste

Triste olhar
e uma dor
sem nome...

menina pobre
que não conhece
o amor

mas dia
após dia,
sente a dor
da fome!!!

Todos
os dias
a vejo
na esquina!

Volto
para casa
e não consigo
esquecer

o olhar
da menina!!!

Música | Edu Lobo: Canto Triste