Depois de um duro dia de trabalho, liguei a TV para assistir aos debates no Supremo. Sou amarrado em debates. Sinto falta deles no Brasil de hoje.
Como não se fazem mais, qualquer coisa me diverte. Dormi num sítio em Olhos D"Agua e ouvi um velho rádio de pilha na escuridão do Cerrado. As vezes os locutores diziam bobagens monumentais. Eu ria um pouco e me sentia mais próximo do sono. Engraçadas ou não, eram vozes humanas chegando pelos ares, fazendo-me companhia naquela solidão que antecede o primeiro cantar dos galos.
Era fascinante ver os juízes debatendo algo que me parecia lógico. Uma vez dada a sentença, as pessoas passariam a cumprir a sua pena, exceto as que estavam pendentes de um recurso infringente. Gostei muito do infringente, mas ouvi outras coisas mais interessantes, como reflexo intempestivo. Fui um pouco mais longe na pesquisa para constatar que tempestivo é comum na linguagem jurídica, é algo oportuno, que corre dentro de um ritmo adequado.
Discutiram horas e constataram que estavam de acordo, ou pelo menos reconheceram que estavam de acordo, embora ainda fosse preciso pôr no papel a sua concordância. Pensei comigo: como discutem esses ministros! Discutiram meses para chegar a uma sentença e agora discutem horas para definir se é para valer ou não. Devem estar cansados e creio que os deixarei em paz nos próximos meses, com a devida gratidão pelos verbos e adjetivos que acrescentaram ao meu conhecimento.
O processo foi tão arrastado que, ao se concretizar, deu a impressão de algo já visto, uma reprise. José Dirceu e Genoino apresentaram-se com o punho erguido. Já escrevi sobre esse gesto, pensei. Nada tenho a acrescentar. No passado foi o símbolo da resistência comunista, chegou a roubar a cena numa Olimpíada. "Por que, então, o punho erguido?", perguntou um homem na rua. Disse-lhe que, no meu entender, a cadeia é muito difícil de suportar. Entrar na cadeia pensando que cometeu algo pelo bem do povo sempre ajuda a absorver a monotonia e o desconforto da prisão. "Mas não são inocentes", observou o interlocutor. Como quase todos na cadeia, arrematei. Quem visita um presídio constata que a maioria se diz inocente.
"E as regalias?", questionou. O que são regalias senão obter algo que os outros não conseguem? A pena mais dura é a supressão da liberdade, ainda que em prisão domiciliar. Filmei as celas que lhes seriam destinadas na Papuda, cubículos frios, sem vestígios de nenhuma regalia.
A entrada na cadeia de dirigentes do PT, num sistema penitenciário como o do DF, administrado pelo próprio PT, será uma experiência singular. Estamos muito longe das condições de cadeia suecas. Mas longe também do nível civilizatório que nossas possibilidades autorizam.
Homens que conduziram o País em determinada época são obrigados agora a conhecer uma dimensão que ignoraram. Com a experiência podem oferecer ao próprio partido um modelo de reforma que desarme a bomba-relógio que construímos, com nosso silêncio, para as novas gerações. Mas no momento nada indica que seguirão esses passos. É hora de negação.
Será difícil para um partido no poder com dirigentes presos fingir que a prisão não existe, que não cai água da goteira, que esse amontoado de gente em nossas cadeias não configura superlotação. A realidade vai acabar se infiltrando por alguns poros, mas o PT seguirá montado numa tese fantasiosa que talvez nem consiga abalar, nas eleições, sua pretensão de poder prolongado.
Que abandonem a realidade é problema deles. O nosso é testemunhar o desfecho de uma aventura histórica, amparada no conceito de que os fins justificam os meios. Reconhecer isso é deixar a casca de uma esquerda autoritária e aceitar amplamente a democracia, sem se sentir dotado de uma causa superior a ela e, portanto, podendo atropelá-la.
Reflexo intempestivo, para mim, é o Sol saindo subitamente da nuvem, mergulhando o objeto numa luz contrária que enche de aberrações violeta e lilases as nossas lentes. Mesmo nesses casos o Sol contrário não consegue ofuscar o objeto. Um pequeno rebatedor de fundo branco devolve à cena a luz do próprio Sol.
Esse rebatedor é o processo do mensalão, que foi julgado abertamente na TV e passou a ser visto como a semente de um novo tempo, em que a justiça se faz mesmo para os poderosos e todo o aparato jurídico que conseguem mobilizar. Você pode ver isso como obra de uma elite reacionária. Sinceramente, a História não vai registrar o episódio assim. Para grande parte dos brasileiros, a roda moveu-se. Para muitos, no último fim de semana estivemos mais perto de uma República.
A decisão do Supremo confirmou a ideia que tinha do episódio. Restava apenas acompanhar, pelos inúmeros debates, o processo por meio do qual a democracia brasileira iria metabolizar o grande pepino de julgar a direção de um partido no poder, capaz, portanto, de indicar os próprios ministros do Supremo. Foi uma tempestade tempestiva, para usar o meu novo vocabulário. Mais rápida, traria perigosa inundações; mais lenta, encenaria uma constrangedora comédia.
A tendência, no momento em que escrevo, é o debate sobre o direito dos presos do mensalão dentro do sistema penitenciário. Se levar a uma compreensão ampla da precariedade do próprio sistema, será um efeito colateral positivo. O efeito mais decisivo, porém, ainda levará muito tempo a passagem definitiva da esquerda, que dirige o País, para a aceitação plena dos caminhos democráticos, incompatíveis com o princípio de que os fins justificam os meios.
Tudo indica, por enquanto, que ela continuará dirigindo o País. Mas para onde? A esfera da política desprendeu-se da sociedade e o vazio se aprofunda. Negando ou aceitando a realidade do mensalão, deve prosseguir no poder. O problema é sacudir uma herança do século passado, século de punhos cerrados, em que nos sentíamos parteiros do futuro, capazes, pois, de ignorar as regras do jogo.
* Jornalista
Fonte: O Estado de S. Paulo