Para cientista político, a crise do sistema de representação provoca queda da qualidade da democracia brasileira
Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo
Qual o estado da democracia representativa
hoje no Brasil?
Temos uma democracia que os cientistas
políticos costumam designar como democracia eleitoral. Isso significa que ela
garante os mecanismo de alternância de governo e engloba dois aspectos muito
importantes que teóricos, como Robert Dahl, chamam a atenção: participação
da grande maioria dos adultos e a possibilidade de contestação por meio da
existência de partidos políticos e regras que permitam que o adversário de quem
está no governo chegue ao poder. Nós temos isso.
Qual nosso problema então?
O problema com a democracia brasileira não é se ela existe ou não. O problema é a qualidade de democracia. E isso tem relação com a crise do sistema de representação. Temos um conjunto de regras que, em invés de introduzir o eleitor no sistema político, trabalha para desconectar representados e representantes. Isso transparece em pesquisas de opinião quando as pessoas não se sentem representadas ou acreditam não influir no sistema. O que a diferencia a democracia das alternativas autoritárias é que na democracia as pessoas comuns são os soberanos; não o rei, o príncipe ou o secretário-geral do partido. Mas essa soberania é delegada por meio do sistema de representação, em primeiro lugar, aos partidos políticos. Quando os partidos começam a falhar nessa função e já não recebem a delegação dos soberanos para passá-la à frente ao presidente ou ao prefeito, você tem uma queda na qualidade da democracia. A soberania dos eleitores não se expressa apenas no direito de escolher o representante, ela se expressa por meio das instituições de mediação para propor temas ao sistema político que correspondam aos interesses dos eleitores.
Existe algum aspecto novo nessa crise após
2018?
Há um aspecto para entender os limites dos
avanços que tivemos. Este é o fato de que, nos 30 anos que antecedem 2018, os
militares haviam voltado à caserna e estavam subordinados a líderes eleitos,
exercendo, dentro dos limites constitucionais, suas funções. Mas em 2018 houve
uma quebra grave desse quadro, que foi a intervenção do comandante do Exército, general Villas Bôas, antes do
julgamento do habeas corpus de Lula, o que pode ter interferido nas eleições.
No Brasil, a democracia tem alguns condicionantes que ainda não estão
resolvidos, e a questão militar é um desses.
Essa crise da representação abre caminho
para a usurpação da soberania?
Abre perspectiva para que alguns atores
imaginem que podem ser os portadores da soberania e já não mais estabelecer a
conexão com os eleitores. Esse é um aspecto da crise dos partidos. Eles não têm
só um conteúdo programático frágil; a conexão com os eleitores se perdeu.
Aquilo que começou a existir logo depois da campanha das Diretas Já,
com cinco partidos políticos que deram origem ao nosso sistema partidário, ao
longo do tempo foi se perdendo. Essa crise está visível a partir das jornadas de 2013,
que reuniram milhões de pessoas. Foi uma crítica severa ao modo das elites
políticas da época fazerem política.
Onde a eleição de Bolsonaro se
encaixa nessa história?
Alguns avanços de realização da democracia ocorreram. Temos alternância do poder, temos uma série de direitos dos cidadãos mais reconhecidos do que antes. Mesmo a imprensa funciona com ampla liberdade. Mas o que ocorreu foi que, a partir da crise de 2014, com o governo de Dilma Rousseff, em parte porque ela não foi capaz de coordenar a coalizão de apoio que conseguiu formar e criou divisões internas, a crise se degenerasse. O agravamento da crise também veio com as denúncias de corrupção. Quando ficou mais evidente que o esquema de corrupção era sistêmico, envolvendo dirigentes de partidos e executivos de grandes empresas, aumentaram todos os índices de desconfiança em relação às instituições, às elites, ao governo de Dilma Rousseff, mas também em relação aos partidos. As duas instituições que tiveram os índices mais altos de rejeição foram os partidos e o Congresso. A crise aumentou porque flagrou os principais partidos responsáveis pela democratização. E, quando chega nas eleições de 2018, nenhuma das elites desses partidos em crise foi capaz de dar uma resposta a um sentimento de rejeição e exclusão, que a maioria dos eleitores estava sentindo. Nenhum dos líderes democráticos fez menção ao tema da corrupção ou assumiu compromisso com os eleitores de que isso mudaria, que não seria mais uma componente naturalizado da política brasileira. Isso abriu o espaço que foi ocupado por Bolsonaro, que apareceu como campeão do combate à corrupção capaz de cuidar de outro tema importante: a Segurança Pública. É um contexto de fragilidade de algumas das principais instituições da democracia brasileira. E, embora na campanha não tenha dito uma palavra sobre o embate com as instituições, assim que começou seu mandato a lógica dele se organizou em torno do enfrentamento das instituições e da mobilização de apoiadores contra o Judiciário e o Legislativo e uma tentativa de controle dos mecanismo de fiscalização, como o Coaf, Polícia Federal e Receita. O vácuo deixado pelas lideranças democráticas foi ocupado por uma alternativa de mentalidade autoritária. Essa mentalidade tem se refletido em sucessivas políticas pública. A mais importante delas é o negacionismo em relação à pandemia, a incapacidade de perceber o papel do estado diante da crise sanitária. Houve ainda uma desconstrução grave da legislação do meio ambiente e da tentativa de dar uso de armas a setores da população sem nenhuma justificativa. Bolsonaro se inscreve na crise como organizador de um movimento político que se insurgiu contra todos os avanços que tinham ocorrido nos 30 anos anteriores. Ele deteriora as condições da democracia.