quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Opinião do dia – Joaquim Nabuco*

Isto, por um lado, quem entre na vida pública tem que procurar nos Estados Unidos as boas graças de indivíduos muito diferentes dos que na Inglaterra abrem aos principiantes as portas de política; além disso, tem que aprender por um catecismo muito mais relaxado. A intervenção do grande pensador, do grande escritor, do homem competente, faz-se sentir na Inglaterra mais que nos Estados Unidos, onde as massas obedecem a influência que não têm nada de intelectual e não têm apreço por nenhuma espécie de elaboração mental. Tudo o que é superior tem, como efeito, o cunho da individualidade envolve, portanto, desdém pela sabedoria das massas. O gênio político, qualquer que seja, está para elas eivada de rebeldia. Singularmente, o cidadão vale menos nos Estados Unidos .do que na Inglaterra. Para ser uma unidade na política americana, é preciso que o indivíduo se matricule em um partido e, desde esse dia, renuncia à personalidade. Na Inglaterra não há semelhante escravidão do partido. O país é governado, como nos Estados Unidos, por dois partidos que se alternam e se equilibram, mas os partidos ingleses são partidos de opinião, não são machines, como os americanos, das quais certo número de bosses governam e dirigem os movimentos.

*Joaquim Nabuco (1849-1910) “Minha Formação” p. 140 – Ediouro, 1966.

Luiz Carlos Azedo - As tentações autoritárias

- Nas entrelinhas – Correio Braziliense

“São governos falidos, eleitores ressentidos, pagadores de impostos que querem mais benefícios e poderosos sindicatos que querem manter privilégio. Impossível atender a todos

Não foi a primeira vez — provavelmente, não será a última — que alguém próximo ao presidente Bolsonaro ameaça a oposição com o espectro do AI-5. Mas, desta vez, a coisa foi mais grave, porque se tratou do ministro da Economia, Paulo Guedes. Foi um raciocínio político com começo, meio e fim: “É irresponsável chamar alguém pra rua agora pra fazer quebradeira. Pra dizer que tem que tomar o poder. Se você acredita numa democracia, quem acredita numa democracia espera vencer e ser eleito. Não chama ninguém pra quebrar nada na rua. Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com 10 meses você já chama todo mundo pra quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”, disse o ministro. “É inconcebível, a democracia brasileira jamais admitiria, mesmo que a esquerda pegue as armas, invada tudo, quebre e derrube à força o Palácio do Planalto, jamais apoiaria o AI-5, isso é inconcebível. Não aceitaria jamais isso”, remendou Guedes, depois.

A declaração do ministro da Economia sobre o AI-5 provocou reações do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, durante Encontro Nacional do Poder Judiciário, em Maceió: “O AI-5 é incompatível com a democracia. Não se constrói o futuro com experiências fracassadas do passado”. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, também criticou o ministro Guedes: “Não dá mais para usar a palavra AI-5 como se fosse bom-dia, boa tarde, oi, cara, não dá”. Deu uma mão no cravo e outra na ferradura, ao se dizer assustado com o comportamento dos políticos, que parecem estar “mais se preparando para uma briga campal do que pra uma disputa eleitoral no futuro”, uma alusão ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Ricardo Noblat - Democracia com adjetivo é tudo, menos democracia

- Blog do Noblat | Veja

À brasileira, só peru

Um dia depois de ter invocado o Ato Institucional nº 5 como possível meio para barrar por aqui manifestações de rua como as que ameaçam os governos do Chile (de direita) e da Colômbia (de centro), o ministro Paulo Guedes, da Economia, tentou pela segunda vez reparar os estragos que produziu com o que disse.

Para que não parecesse que engatou por completo uma marcha ré, insistiu em classificar as manifestações de rua como “uma bagunça, uma convulsão social” capaz de afastar os investidores estrangeiros de olho no mercado nacional. E pregou a instalação no Brasil de uma democracia que chamou de “responsável”.

– Eu acho que devemos praticar uma democracia responsável. Sabe como jogar o jogo da democracia? Espere a próxima eleição. Não precisa quebrar a cidade. Acho que isso assusta os investidores, acho que não ajuda nem a oposição, é estúpido – declarou em Washington, onde se reuniu com empresários americanos.

Adjetivar a democracia é meio caminho andado para propor sua extinção. É também um truque antigo e conhecido usado por governantes autoritários para chamar de democracia o que muitas vezes não passa de uma ditadura com vergonha de se identificar como tal. Guedes viu isso de perto no Chile nos últimos anos 70.

Rosângela Bittar - Questão existencial

- O Estado de S.Paulo

Luciano Huck ainda não disse sim, mas a candidatura ao Planalto já entrou na sua vida

Luciano Huck ainda não disse sim, mas já não é o mesmo que disse não. Em novembro do ano passado, em reunião para avaliar os resultados eleitorais dos movimentos de renovação da política, um amigo perguntou-lhe sobre a experiência da candidatura a presidente e quais haviam sido suas sensações. Segurando uma taça de suco, declarou com firmeza: “Não sou mais a mesma pessoa, volto para casa diferente”. Foi a senha para a conclusão de que a política se entranhara e a candidatura para a próxima disputa era uma certeza.

Relatou outras descobertas de sua rápida passagem pelo mundo novo. Disse, por exemplo, ter notado que os partidos políticos, ao contrário da impressão que passam, são muito fortes, e que a estrutura de poder no Brasil é sólida. Um aprendizado importante para os passos seguintes.

Em meados de novembro deste ano, em São Paulo, convocou-se encontro semelhante para avaliar os resultados do trabalho de um ano de atuação dos novos políticos. Reacenderam-se as expectativas e a certeza da candidatura, embora Huck ainda mantenha envolto em mistério seu intrincado, delicado e certamente emocionante processo de decisão. É a vida que está, de novo, em jogo.

Só que, agora, o tempo para construção trabalhará a favor. As conveniências de seu projeto pessoal já se confundem com os objetivos dos políticos e partidos que gravitam ao seu redor. Huck traz uma marca forte: é o único, constatam, que poderá derrotar Jair Bolsonaro. “Não importa a cor do gato”, diz o lema que a todos conduz: “O objetivo é preservar a democracia”.

Vera Magalhães - Nem em tese

- O Estado de S.Paulo

A democracia é um valor absoluto e intransitivo, que não permite relativização

Peço licença ao leitor do BRPolítico para desenvolver, nesta coluna, uma análise que publiquei no site nesta terça-feira. É que o assunto é inescapável. Trata-se, por óbvio, da entrevista do ministro Paulo Guedes nos Estados Unidos, em que teceu uma tese segundo a qual, se a esquerda radicalizar, não se poderá reclamar caso o “lado de cá”, do governo, replique falando em um novo AI-5.

Algumas coisas não devem ser ditas por homens públicos, em on ou em off, no caso concreto ou em tese. Menos ainda pelo responsável pela Economia do País e aquele a quem a sociedade, o mercado, o setor produtivo e o mundo veem como a âncora de confiabilidade de um governo em que esse ativo já foi completamente dilapidado em 11 meses.

Eu sei que Guedes não defendeu medidas extremas em sua fala. Não tenho por que desconfiar da convicção democrática do ministro. Já ouvi dele próprio o raciocínio que levou à sua declaração, em uma conversa informal recente.

A base é um lamento: ele sabe que sua agenda de reformas pós-Previdência foi abatida enquanto decolava com a soltura de Lula, a radicalização de seu discurso e a reação imediata de Jair Bolsonaro – a meu ver, misto de paranoia, autoritarismo e nenhuma fé no credo liberal.

Fernando Exman - Fórmulas partidárias para romper o dipolo

- Valor Econômico

Construção de alternativas eleitorais é desafio

Partidos de esquerda, de centro e de direita intensificaram os movimentos para tentar romper o dipolo no qual se transformou a política brasileira - um sistema constituído por dois polos semelhantes, mas de sinais opostos, separados por pequena distância.
A atual dinâmica interessa apenas ao presidente Jair Bolsonaro e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E por eles tem sido incentivada, de forma a reduzir as chances eleitorais de outros concorrentes.

Mas o tempo foi passando e as eleições municipais, aproximando-se. Com isso, partidos de diversas orientações ideológicas que haviam demorado a perceber o quão exíguo estava ficando o espaço de ação resolveram reagir. A soltura de Lula e o início do processo de criação do novo partido do presidente Bolsonaro fizeram com que apertassem o passo. Afinal, a letargia dos adversários só interessava aos dois, que com modos e estilos cada vez mais parecidos, trabalham para consolidar seus respectivos exclusivismos em cada uma das pontas do espectro ideológico.

Ao centro e à direita, a ação hoje se concentra mais no Congresso. Maioria, esses partidos decidiram aceitar de vez o que antes lhes parecia pejorativo: assumiram a figura de um grupo relativamente coeso, influente nos temas econômicos e determinante para o destino de qualquer projeto em tramitação. Com viés mais liberal na economia e conservador nos costumes, essas siglas representam um bloco que faz jus a um apelido grafado no aumentativo pelo seu tamanho e capilaridade nos Estados.

Elas perderam a vergonha, enfim, de se apresentar e atuar de facto como um “Centrão”. E vão criar as condições para manejar o Orçamento, com o objetivo de se fortalecerem em suas bases eleitorais.

“É hora de erguer os dois cotovelos até a altura dos ombros. Forçar para abrir espaço, até a gente conseguir erguer novamente a cabeça”, ilustra um líder desse bloco. “Vamos evitar que sejamos prensados pelos dois lados.”

José Eli da Veiga* - Batata pelo futuro

- Valor Econômico

A inocência juvenil sobre as relações entre poder e ciência tende a ser superada pelas interações do FFF com algumas entidades irmãs

Depois de amanhã, São Paulo terá mais uma sexta-feira global pelo futuro, programada por movimento tão inédito que aturdiu a grande imprensa brasileira. Houve até analista que xingasse de chantagista a garota sueca, de 16 anos, Greta Thumberg, o fenômeno que mais impulsionou tais mobilizações. Injúria em total contraste com a carta que 224 acadêmicos do Reino Unido haviam publicado no The Guardian, com enfáticos aplausos à determinação de seus alunos em participar das manifestações por ela convocadas.

Tal desacordo fica ainda mais expressivo se consideradas as serenas ponderações publicadas em periódicos científicos de primeira linha. No 14 de março, véspera da primeira grande iniciativa do “Fridays for Future” - ou simplesmente “FFF” - coube à revista Nature informar que “milhares de cientistas apoiarão os jovens que amanhã irão para as ruas”.

Na edição da semana seguinte, comemorou o surgimento do primeiro “movimento de base” contra o aquecimento global, com manifestações em “cerca de duas mil cidades em mais de 120 países, do Nepal a Vanuatu”. Informando, também, que um abaixo-assinado de mais de 12 mil cientistas - da Alemanha, Áustria e Suíça - inspirara outro, firmado, apenas na Nova Zelândia, por 1.500 pesquisadores. O destaque, dado no “olho” da matéria, foi para comentário de uma professora da Universidade de Lancaster: “Além de inovadora e provocativa, aí está a forma correta de desobediência civil não violenta”. Posição idêntica à de carta coletiva que a revista Science trouxe na edição de 12 de abril.

Bruno Boghossian – Rasgando a fantasia

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro busca pretexto para repressão e fica confortável em ameaças à democracia

O desembaraço com que Paulo Guedes menciona o risco de um novo AI-5 é a tradução fiel de um projeto que se abastece diariamente de sonhos autoritários. Em busca de pretextos para aplicar uma agenda de repressão, o governo vai ficando cada vez mais confortável para ameaçar os princípios da democracia.

O ministro da Economia seguiu a moda lançada por Jair Bolsonaro e passou a trabalhar com protestos hipotéticos e vândalos presumidos. Em viagem aos EUA, ele disse que não seria surpresa se houvesse cobrança por medidas de arbitrário em caso de manifestações contra o governo.

“Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez?”, declarou.

Vinicius Torres Freire –Dólar está mais barato que o governo

- Folha de S. Paulo

Afora esquisitice de Brasil já ter juro menor que zero, não há crise financeira

O preço do dólar é um fenômeno “pop” e popular. O povo diz que daqui a pouco o dólar vai poder pegar ônibus em São Paulo, onde a passagem custa R$ 4,30. Apesar da algazarra e queixas de financistas que perderam dinheiro, aconteceu algo de extraordinário no mercado ou na economia?

Na conversa com gente do mercado, ninguém conta nada de excepcional, pelo menos a este jornalista.

O que de mais divertido que se vê por estes dias é que o Brasil agora também já tem taxas de juros negativas, “coisa de Primeiro Mundo”, vejam só. Desde o final da semana passada, o governo paga menos do que zero para quem se dispuser a emprestar dinheiro até 15 agosto de 2020 (comprando NTN-B, o título conhecido como “IPCA mais juros” no Tesouro Direto). Isto é, cobra de quem lhe emprestar algum.

Afora essa graça episódica, talvez uma anomalia técnica, nada muito mais de esquisito. De mais notável, apenas um repiquezinho da expectativa de inflação para 12 meses e um cadinho de alta de juros perceptível apenas para quem negocia zilhões no mercado.

Merval Pereira - O mal menor

- O Globo

Não é um bom sinal quando um país passa a discutir a possibilidade de voltar à ditadura militar a que foi submetido por 21 anos. Ainda mais em um governo presidido por quem defende há anos que não houve ditadura, que esse período foi o melhor de nossa história, e que as medidas repressivas deveriam ter sido mais fortes, negando ou minimizando as torturas ocorridas nas delegacias e nos quartéis.

Por isso, cada vez que o AI-5 é lembrado, seja por que razão for, tem-se a sensação de que algo há por trás dessa repetição. O ministro da Economia, Paulo Guedes, não pediu a volta do AI-5, mas, como fez o deputado federal Eduardo Bolsonaro, classificou o ato de exceção como uma possível resposta do governo contra eventual radicalização dos movimentos de esquerda.

Ambos atribuíram a Lula e ao PT o estímulo às manifestações de rua, à radicalização, o que é verdade, na boca do próprio ex-presidente: “A gente tem que atacar, não apenas se defender.” Se referia aos protestos no Chile, que, em diversas oportunidades, citou como exemplo do que deveria ser feito pelos militantes, “principalmente os jovens”. Mas não é sair às ruas uma vez, e depois parar. É preciso uma movimentação constante, diária, ensinou Lula.

Foi essa atitude que Guedes chamou de comportamento “irresponsável” e “burro”. Não por acaso, os dois lados se dizem defensores da democracia. O presidente Jair Bolsonaro disse que, se alguém apresentar o AI-5, ele apresenta o AI 38, referindo-se ao número do partido que pretende construir, como a dizer que trava sua luta através de instrumentos democráticos como um partido político.

Elio Gaspari - A Presidente Vargas de 1984 a 2019

- O Globo | Folha de S. Paulo

O povo não deve ter medo da polícia, nem a polícia deve ter medo do povo

A avenida foi a mesma. Em abril de 1984 ali aconteceu o grande comício das Diretas. Noticiou-se que a multidão passava do milhão de pessoas. Nem chegava a isso, mas deixa pra lá. A festa durou cerca de sete horas, sem um só incidente. No último domingo (24), mais de 1 milhão de cariocas festejaram o Flamengo. A festa terminou com uma pancadaria e 23 feridos nas proximidades do monumento ao Zumbi dos Palmares.

Não se sabe como começou a confusão, mas é elementar que a Polícia Militar não precisava ameaçar o povo com fuzis ou apontando-lhe revólveres. A primeira bomba de gás contra uma multidão parada pode ter sido um exagero. As demais, truculência, sobretudo sabendo-se que na festa havia crianças.

O veículo da Guarda Municipal também não precisava dar marcha a ré em alta velocidade numa pista livre. Acabou atropelando um guarda. Assim como Gabigol fez a alegria dos brasileiros com dois gols em três minutos num final de jogo, a PM do Rio manchou a celebração no fim da festa.

O medo faz mal à alma. O povo não deve ter medo da polícia, nem a polícia deve ter medo do povo. Em 2013, quando o papa Francisco chegou ao Rio, estava protegido por um dispositivo teatral, com soldados e até cães farejadores.

Bernardo Mello Franco - O deboche de Guedes

- O Globo

Ao banalizar ameaça de um “novo AI-5”, Paulo Guedes voltou a mostrar desapreço pela democracia. Antes de virar ministro de Bolsonaro, ele trabalhou para a ditadura de Pinochet

O ministro Paulo Guedes pode ser acusado de muitas coisas, menos de esconder o que pensa. Na segunda-feira, ele voltou a mostrar desapreço pela democracia. Banalizou a ameaça de um novo AI-5, feita pelo deputado Eduardo Bolsonaro.
Em Washington, Guedes falou em medidas de exceção em caso de protestos violentos contra o governo. “Não se assustem se alguém então pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”, disse.

Questionado por uma repórter sobre a gravidade da declaração, ele adotou tom de deboche: “Mesmo que a esquerda pegue as armas, invada tudo, quebre e derrube à força o Palácio do Planalto, jamais apoiaria o AI -5. Isso é inconcebível, não aceitaria jamais isso. Está satisfeita?”.

Guedes se referiu à ameaça do Zero Três como uma resposta a discursos do ex-presidente Lula. Foi um argumento falso, porque o deputado lançou acartado AI-5 dez dias antes de o petista voltar ao palanque.

Míriam Leitão - As ideias políticas de Paulo Guedes

- O Globo

Se houver outro AI-5, investidores fugirão do Brasil. A economia não é uma ilha que possa manter seu equilíbrio sobre escombros da civilização

O que assusta é o quanto o ministro da Economia desconhece sobre a relação entre economia e política, entre democracia e fatores de risco atualmente avaliados pelos fundos de investimento. Se houver um outro AI-5, ou que nome tenha uma violenta repressão policial militar às liberdades democráticas, os investidores fugirão do Brasil. A economia não é uma ilha que possa manter seu equilíbrio sobre escombros da civilização.

O governo Bolsonaro neste momento saiu das palavras autoritárias para as propostas autoritárias. O perigo mudou de patamar. A ideia de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para ação na área rural mais a proposta de que dentro das GLOs haja o “excludente de ilicitude” formam uma mistura perigosa. E intencional, na opinião do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ):

— Isso é um AI-5. Quando a GLO se generaliza e dentro dela está embutida o excludente de ilicitude temos um verdadeiro AI-5.

Em outro momento de sua desastrada e longa fala, Paulo Guedes disse que o presidente não está com medo do ex-presidente Lula. “Ele só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vam’bora.”

É impossível ir embora, tocar adiante com essa leveza que o ministro sugere, porque a expressão “excludente de ilicitude” parece um termo técnico e anódino, mas significa licença para matar. No país em que as forças de segurança matam muito e cada vez mais, em que os militares das Forças Armadas respondem apenas à Justiça Militar e em um governo que jamais escondeu sua profunda admiração pelas ditaduras, esse instrumento não é um detalhe burocrático. Pode ser a porta do horror.

O que a mídia pensa – Editoriais

Guerra imaginária – Editorial | O Estado de S. Paulo

Os brasileiros que querem a manutenção da democracia plena e do Estado de Direito deveriam expressar seu repúdio inequívoco a qualquer tentativa de banalizar medidas como o AI-5

Foi espantosa a facilidade com que o ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou, na segunda-feira passada, a hipótese de adoção de uma medida de exceção nos moldes do Ato Institucional n.º 5 (AI-5) para conter eventuais manifestações violentas de oposição. Como se fosse algo trivial, o principal ministro do presidente Jair Bolsonaro considerou plausível e até natural que, a título de enfrentar uma “quebradeira” nas ruas, haja o clamor para que o governo emule o regime militar, fechando o Congresso e cassando liberdades individuais, pois foi isso o que aconteceu em dezembro de 1968 com a edição do AI-5, ora evocada.

Ao comentar recente discurso do ex-presidente Lula da Silva, que incitou a militância petista a “seguir o exemplo do povo do Chile, do povo da Bolívia” e “atacar, não apenas se defender”, o ministro Paulo Guedes declarou que “é irresponsável chamar alguém para rua para fazer quebradeira, para dizer que tem que tomar o poder”. Acrescentou que “quem acredita numa democracia espera vencer (as eleições) e ser eleito”, isto é, “não chama ninguém pra quebrar nada na rua”. E continuou: “Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”.

Poesia | Bertolt Brecht - Aos que vierem depois de nós

(Tradução de Manuel Bandeira)

Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fonte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo.

Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, - espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

Música | Mônica Salmaso - A volta do malandro