Duas décadas sem Ulysses.
Nos seus últimos dias de vida, o homem que liderou
a oposição na ditadura se preocupava com o apetite do PMDB por mais cargos e alertava
contra a corrupção
Luiza Damé, Isabel Braga e Cristiane Jungblut
BRASÍLIA "A corrupção é o cupim da República". A frase era
repetida à exaustão pelo deputado Ulysses Guimarães, que desapareceu há exatos
20 anos num acidente de helicóptero no mar de Angra dos Reis. Doutor Ulysses,
como era chamado, dedicou o último dia da sua vida, embora estivesse em momento
de lazer com a esposa, Mora, e amigos, ao que sempre gostou de fazer na vida:
política. Articulou até as últimas horas a formação do governo Itamar Franco,
que acabara de assumir a Presidência após o impeachment de Fernando Collor. Na
costura do novo governo, prometeu que se empenharia para conter o ímpeto do
PMDB por cargos e o orçamento que vem embutido nesse pedido, já sabendo que
essa era a principal moeda de troca nas relações dos partidos com o Executivo.
Segundo amigos, ele já desconfiava das negociatas no submundo do Congresso, que
levaram ao escândalo dos anões do Orçamento em 1993 e, atualmente, o mensalão.
- Ele, às vezes, comentava com alguns amigos, antes de estourar o escândalo
dos anões: "Olha, ninguém discute mais o Brasil, só discutem orçamento. As
pessoas estão mudando o padrão de vida, as pessoas só falam em comprar e vender
apartamento, ninguém fala mais em Brasil, não se discute mais Brasil" -
recorda-se o ex-deputado e ex-senador Heráclito Fortes, amigo próximo.
Sobre o "homem austero que ficava chocado com ostentação",
Heráclito conta outro episódio que o marcou. Estavam em Nova York, perto do
Central Park, e Ulysses quis comer um cachorro-quente, daquelas de rua. Um
deputado, numa limusine branca, os viu e convidou Ulysses para dar uma volta.
- Ulysses reagiu: "Sai daqui com esse carro, não vou me expor a um
ridículo desses". Depois que o deputado foi embora, ele comentou comigo:
"Vê como são as coisas. Esse deputado não tinha condições disso há dois
anos e agora está aqui, com essa limusine, tem algo estranho, deve custar uma
fortuna" - contou Heráclito.
Até seu desaparecimento, Ulysses participou dos principais acontecimentos da
História recente do Brasil. Liderou a resistência à ditadura militar, defendeu
a anistia, comandou o movimento Diretas Já, presidiu a Assembleia Nacional
Constituinte e disputou a primeira eleição direta para presidente após o regime
militar, em 1989.
Saiu massacrado do pleito, com 5% dos votos, ficando em sétimo lugar.
Humilhado, quase não conseguiu se reeleger deputado federal, em 1990, e passou
por um período apagado. Só voltou à cena política na CPI do PC, em 1992, que
resultou no impeachment de Collor.
- Ele era a solução sempre. Quando a situação ficava muito complicada, íamos
ouvir o Ulysses - afirma o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ).
Para Ulysses, o mar era "silêncio e paz"
O hoje senador Luiz Henrique (PMDB-SC) relembrou recentemente, em artigo, um
episódio já conhecido do amigo: escreveu que, em 8 de outubro de 1992, Ulysses
o chamou para ir a seu gabinete. Henrique levou de presente uma coleção de
gravações da Orquestra de Glenn Miller, feitas durante a Segunda Guerra
Mundial. Ao receber o presente, Ulysses afirmou: "Homem feliz, esse Glenn
Miller. Teve uma vida de sucesso. Desapareceu no mar. O mar é silêncio e paz!
Quando eu morrer, se me botarem num caixão, pode dizer que ali vai um homem
contrariado!".
- O diálogo era a arma dele. Só tinha uma arma: a palavra dele. Não tinha
poder, não era governador, era um presidente de partido. No meu combate do
impeachment, ele me orientou várias vezes- diz o senador Pedro Simon (PMDB-RS).
O ex-ministro Nelson Jobim, que foi o braço-direito de Ulysses na elaboração
da Constituição de 1988, resume como ele atuava na Constituinte:
- O doutor Ulysses não se atirava em aventuras, não era de rompantes. Os
rompantes eram todos preparados.
Mozart Viana, que por anos acompanhou os trabalhos no plenário da Câmara,
até hoje se emociona ao lembrar a chuva de papel picado e a imagem de Ulysses
levantando, na última sessão, o texto da "Constituição cidadã":
- Ele era hábil, negociador. Na época tinha que enfrentar dois homens duros,
Mário Covas, do lado da centro-esquerda, e Ricardo Fiúza (líder do PFL, que
comandava o chamado Centrão). Precisava de um algodão no meio de cristais, para
garantir que a Constituição fosse feita. Esse foi doutor Ulysses.
Até hoje, lugar reservado no Piantella
Como lembrança do amigo com o qual teve uma relação de pai e filho, o
empresário e dono do restaurante Piantella, Marco Aurélio Garcia, mantém a mesa
em que Ulysses reuniu amigos e políticos para traçar estratégias e relaxar -
era a famosa "Turma do Poire". O hábito começou em 1976, quando
Ulysses foi pela primeira vez ao restaurante e durou até 1992, pouco antes do
acidente.
O mineiro Marco Aurélio lembra uma das lições que aprendeu com Ulysses: ou
se é político ou empresário - para não se confundir o público com o privado.
Por isso, nunca tentou a política. Ele não lamenta o fato de o corpo nunca ter
sido encontrado:
- Fico bem assim (sem encontrar o corpo). Se achassem, muitos que o traíram
quando foi candidato à Presidência, iriam querer pegar nas alças do caixão,
fazer discurso.
A mesa foi mantida no andar de cima do restaurante, onde funciona hoje a
adega. Além de um quadro com imagem de Ulysses sorrindo, há outros com lições
de política e um painel com fotos, charges e reportagens. A mesa serve, até
hoje, como local reservado para conversas.
Fonte:
O Globo