Tradução: Alberto Aggio
Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil.
Encontrei Gramsci enquanto preparava a tese de conclusão da graduação. Estudava Direito e havia decidido tentar seguir o caminho do “trabalho intelectual como profissão”. Interessavam-me a filosofia e a política. Empenhei-me numa tese sobre a filosofia política de Benedetto Croce. Tinha 20 anos, vivia em Bari, e o meu ponto de referência — penosamente alcançado depois de atravessar todo o arco de posições, da direita à esquerda — era a política cultural do PCI. Para mim, então, no Sul da Itália, tornar-me “um intelectual” significava antes de qualquer outra coisa “acertar as contas” com Benedetto Croce, percebido como o principal obstáculo no caminho para o marxismo. Li Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce [Concepção dialética da história], mas não me tornei gramsciano. Arranjei-me com leituras muito mais esquemáticas e “liquidei” o idealismo a golpes de citações de Materialismo e empirocriticismo de Lenin. Para Croce, julguei conveniente a fórmula com a qual Lukács o rotula em O assalto à razão: uma variante fraca do “irracionalismo” europeu do início do século XX.
Comecei uma leitura mais séria de Gramsci depois da formatura, quando, estudando a genealogia do marxismo italiano, cheguei ao idealismo napolitano. Mais uma vez a minha investigação inspirava-se em Togliatti, e me dediquei a Bertrando Spaventa, que estudei com paixão e grande proveito. Filiei-me ao PCI, unindo o estudo à atividade militante. O magistério intelectual de Togliatti convivia com uma grande impaciência política em razão da moderação do partido, e sentia curiosidade pelas experimentações radicais da esquerda dos anos 60: os Quaderni Rossi, de Panzieri, os Quaderni piacentini, de Bellocchio, o messianismo de Fortini, La sinistra de Colletti.
Mas eu vivia no Sul da Itália, e a insatisfação com a política do PCI — à qual, de qualquer maneira, me sentia vinculado como por uma “escolha de vida” — estava ligada principalmente à sua incapacidade de reelaborar o “meridionalismo”, à sua irrelevância urbana, ao fato de estar instalado no campo e bastante distante da capacidade de conduzir lutas hegemônicas. O meu primeiro escrito apareceu em 1964 nas Cronache meridionali. Estava dedicado à mudança de função e papel dos intelectuais meridionais e era de genuína inspiração gramsciana. Havia aprofundado Alguns temas da questão meridional, Os intelectuais e a organização da cultura e o Risorgimento, e compreendido que o principal mecanismo de reprodução do dualismo italiano estava na destruição da autonomia relativa da intelligentsia meridional e na concentração dos recursos fundamentais do “cérebro nacional” — a indústria cultural, a pesquisa científica e a informação — nas capitais industriais do Norte.
Mas até 1968 estes primeiros núcleos de “gramscismo” continuaram a conviver, contraditoriamente, com outros “marxismos” mais coerentes com meu radicalismo político, que me levava a valorizar teorizações aparentemente mais rigorosas, sobretudo as de Galvano Della Volpe. Bertrando Spaventa, o estudo direto de Marx e a fusão buscada pelo PCI entre lutas de classe e lutas antiautoritárias, assim como as teorizações mais sofisticadas do movimento estudantil — as teses de Trento e do Palazzo Campana — é que dissolveram aquela antinomia. Como pano de fundo, a vitoriosa guerra de libertação no Vietnã, a Primavera de Praga e a repressão que se lhe seguiu. Depois dessas experiências, não esperava mais nada da URSS, do “socialismo real” e da visão dicotômica do mundo, da qual o “campo socialista” era o álibi e a sustentáculo, e, consequentemente, diluíram-se as incongruências do “mix de marxismos” que se abrigara na minha mente na década anterior.
Como deixam evidente as lembranças até aqui evocadas, a minha formação intelectual ocorreu em simbiose com a ação política, e eu a considerava como parte da afirmação de uma determinada orientação da cultura italiana sobre outras. Foi assim que me ensinaram, e este modo de conceber a ação política de um intelectual correspondia perfeitamente à minha moral e também talvez ao meu próprio temperamento. Condenando a invasão soviética à Tcheco-Eslováquia, o PCI começa o seu lento distanciamento de Moscou. Pessoalmente, considerava-o muito tímido. Com os companheiros que animavam o novo projeto da editora De Donato, pensávamos que se deveriam generalizar os fundamentos teóricos e estratégicos da política do PCI, que nos pareciam configurar não apenas uma “variante nacional” do comunismo internacional — um “comunismo democrático” motivado pelas condições históricas e geopolíticas nas quais se enraizava sua ação —, mas uma experiência histórica original, de valor geral e não apenas italiano.
Para contribuir com a reelaboração da “tradição comunista” italiana, mergulhei no estudo de Gramsci e de Togliatti. Mas, evidentemente, era sobretudo o segundo quem dava a sustentação para a revisão teórico-política desejada, bem como para nossa dura disputa não apenas com os seus críticos e adversários de sempre, mas também com a canonização da sua “herança” operada pelo PCI berlingueriano. O que estava em jogo não era só a relação entre o PCI e o comunismo internacional, mas também a interpretação de 1968 e a estratégia do “compromisso histórico”, que nos iludíamos pudesse se desenvolver como “assédio recíproco” entre DC e PCI, e como experimentação de uma transformação democrática e socialista inédita, de valor europeu. Éramos “giobertianos”, como, de resto, também o era o PCI nos enunciados da sua estratégia, cada vez mais distantes da política que efetivamente praticava. Partilhávamos com o PCI a incompreensão da transição dos anos setenta, que marcavam o fim do “reformismo nacional” na Europa e no mundo.
É nesse contexto que se desenvolveu e se aprofundou o meu encontro com Gramsci. Desde o início dos anos setenta, Franco De Felice, principal historiador e figura intelectual de referência para o grupo da editora De Donato, empreende o estudo diacrônico dos Cadernos do cárcere e, com um breve mas denso ensaio publicado no Contemporaneo [suplemento de Rinascita, n. 42], em 1972 — “Uma chave de leitura de Americanismo e fordismo” —, estabelece as primeiras bases para derrubar as interpretações canônicas de Gramsci. O fato de eu não ter realizado nunca um estudo sistemático dos Cadernos foi para mim uma vantagem. Não estava demasiadamente condicionado pela edição temática de 1948-1951, e iniciei um verdadeiro estudo destes Cadernos com base na edição Gerratana de 1975. Acompanhar sua redação quase dia a dia originava uma real mudança de paradigma. Antes de tudo, ficava evidente que o pensamento de Gramsci tivera uma evolução muito significativa entre 1929 e 1935. Daí se destacavam as inovações em relação à década de 1915-1926 e o entrelaçamento entre os “parágrafos” dos Cadernos e os desenvolvimentos da política mundial. Nada de “pesquisa desinteressada”! Seria preciso reconstruir a biografia política do prisioneiro para nos orientarmos na ingens silva dos Cadernos e delinear sua biografia intelectual. Surgia uma pergunta: qual teria sido o “programa cientifico” de Gramsci na prisão de Turi? Em que medida dava sequência ao que tomou forma entre a Grande Guerra e o advento de Stalin? Ao contrário, em que pontos o reformulava? O grupo de estudiosos que trabalhou na preparação do seminário do Instituto Gramsci, em 1977, intitulado, não por acaso, “Política e história em Gramsci”, compartilhava esta diretriz. Mesmo que, no seu resultado final, o trabalho de preparação tenha sido substancialmente posto de lado, Franco De Felice, Biagio de Giovanni, Marisa Mangoni, eu mesmo e outros produzimos um volume preparatório que projetava uma nova abordagem do pensamento maduro de Gramsci.
A esta abordagem comecei a me dedicar, com certa continuidade e com aprofundamentos progressivos, depois de ter assimilado a crise mundial dos anos setenta, ter construído uma ideia pessoal desta crise e começado a compreender que estávamos frente a um declínio talvez irreversível do sistema político da Itália republicana. Este alargamento do campo de visão e uma significativa revisão dos meus instrumentos de pesquisa me libertaram do “giobertismo” político e cultural do PCI, que havia compartilhado na década anterior. Em Gramsci descobri gradualmente os fundamentos de um pensamento histórico-político útil para compreender o século XX como o século da interdependência e da globalidade, da modernidade completa e da sua crise, mas também os primeiros elementos daquele “novo modo de pensar” que indica as perspectivas para superá-la. É o Gramsci no qual trabalho ainda hoje: são mais de vinte anos, e creio poder dizer que, de fato, finalmente o encontrei e o elegi como guia da minha pesquisa política e intelectual.
Giuseppe Vacca é presidente da Fundação Instituto Gramsci. Entre seus livros publicados no Brasil, Por um novo reformismo (Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2009).
Fonte: L'Unità & Gramsci e o Brasil.
Encontrei Gramsci enquanto preparava a tese de conclusão da graduação. Estudava Direito e havia decidido tentar seguir o caminho do “trabalho intelectual como profissão”. Interessavam-me a filosofia e a política. Empenhei-me numa tese sobre a filosofia política de Benedetto Croce. Tinha 20 anos, vivia em Bari, e o meu ponto de referência — penosamente alcançado depois de atravessar todo o arco de posições, da direita à esquerda — era a política cultural do PCI. Para mim, então, no Sul da Itália, tornar-me “um intelectual” significava antes de qualquer outra coisa “acertar as contas” com Benedetto Croce, percebido como o principal obstáculo no caminho para o marxismo. Li Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce [Concepção dialética da história], mas não me tornei gramsciano. Arranjei-me com leituras muito mais esquemáticas e “liquidei” o idealismo a golpes de citações de Materialismo e empirocriticismo de Lenin. Para Croce, julguei conveniente a fórmula com a qual Lukács o rotula em O assalto à razão: uma variante fraca do “irracionalismo” europeu do início do século XX.
Comecei uma leitura mais séria de Gramsci depois da formatura, quando, estudando a genealogia do marxismo italiano, cheguei ao idealismo napolitano. Mais uma vez a minha investigação inspirava-se em Togliatti, e me dediquei a Bertrando Spaventa, que estudei com paixão e grande proveito. Filiei-me ao PCI, unindo o estudo à atividade militante. O magistério intelectual de Togliatti convivia com uma grande impaciência política em razão da moderação do partido, e sentia curiosidade pelas experimentações radicais da esquerda dos anos 60: os Quaderni Rossi, de Panzieri, os Quaderni piacentini, de Bellocchio, o messianismo de Fortini, La sinistra de Colletti.
Mas eu vivia no Sul da Itália, e a insatisfação com a política do PCI — à qual, de qualquer maneira, me sentia vinculado como por uma “escolha de vida” — estava ligada principalmente à sua incapacidade de reelaborar o “meridionalismo”, à sua irrelevância urbana, ao fato de estar instalado no campo e bastante distante da capacidade de conduzir lutas hegemônicas. O meu primeiro escrito apareceu em 1964 nas Cronache meridionali. Estava dedicado à mudança de função e papel dos intelectuais meridionais e era de genuína inspiração gramsciana. Havia aprofundado Alguns temas da questão meridional, Os intelectuais e a organização da cultura e o Risorgimento, e compreendido que o principal mecanismo de reprodução do dualismo italiano estava na destruição da autonomia relativa da intelligentsia meridional e na concentração dos recursos fundamentais do “cérebro nacional” — a indústria cultural, a pesquisa científica e a informação — nas capitais industriais do Norte.
Mas até 1968 estes primeiros núcleos de “gramscismo” continuaram a conviver, contraditoriamente, com outros “marxismos” mais coerentes com meu radicalismo político, que me levava a valorizar teorizações aparentemente mais rigorosas, sobretudo as de Galvano Della Volpe. Bertrando Spaventa, o estudo direto de Marx e a fusão buscada pelo PCI entre lutas de classe e lutas antiautoritárias, assim como as teorizações mais sofisticadas do movimento estudantil — as teses de Trento e do Palazzo Campana — é que dissolveram aquela antinomia. Como pano de fundo, a vitoriosa guerra de libertação no Vietnã, a Primavera de Praga e a repressão que se lhe seguiu. Depois dessas experiências, não esperava mais nada da URSS, do “socialismo real” e da visão dicotômica do mundo, da qual o “campo socialista” era o álibi e a sustentáculo, e, consequentemente, diluíram-se as incongruências do “mix de marxismos” que se abrigara na minha mente na década anterior.
Como deixam evidente as lembranças até aqui evocadas, a minha formação intelectual ocorreu em simbiose com a ação política, e eu a considerava como parte da afirmação de uma determinada orientação da cultura italiana sobre outras. Foi assim que me ensinaram, e este modo de conceber a ação política de um intelectual correspondia perfeitamente à minha moral e também talvez ao meu próprio temperamento. Condenando a invasão soviética à Tcheco-Eslováquia, o PCI começa o seu lento distanciamento de Moscou. Pessoalmente, considerava-o muito tímido. Com os companheiros que animavam o novo projeto da editora De Donato, pensávamos que se deveriam generalizar os fundamentos teóricos e estratégicos da política do PCI, que nos pareciam configurar não apenas uma “variante nacional” do comunismo internacional — um “comunismo democrático” motivado pelas condições históricas e geopolíticas nas quais se enraizava sua ação —, mas uma experiência histórica original, de valor geral e não apenas italiano.
Para contribuir com a reelaboração da “tradição comunista” italiana, mergulhei no estudo de Gramsci e de Togliatti. Mas, evidentemente, era sobretudo o segundo quem dava a sustentação para a revisão teórico-política desejada, bem como para nossa dura disputa não apenas com os seus críticos e adversários de sempre, mas também com a canonização da sua “herança” operada pelo PCI berlingueriano. O que estava em jogo não era só a relação entre o PCI e o comunismo internacional, mas também a interpretação de 1968 e a estratégia do “compromisso histórico”, que nos iludíamos pudesse se desenvolver como “assédio recíproco” entre DC e PCI, e como experimentação de uma transformação democrática e socialista inédita, de valor europeu. Éramos “giobertianos”, como, de resto, também o era o PCI nos enunciados da sua estratégia, cada vez mais distantes da política que efetivamente praticava. Partilhávamos com o PCI a incompreensão da transição dos anos setenta, que marcavam o fim do “reformismo nacional” na Europa e no mundo.
É nesse contexto que se desenvolveu e se aprofundou o meu encontro com Gramsci. Desde o início dos anos setenta, Franco De Felice, principal historiador e figura intelectual de referência para o grupo da editora De Donato, empreende o estudo diacrônico dos Cadernos do cárcere e, com um breve mas denso ensaio publicado no Contemporaneo [suplemento de Rinascita, n. 42], em 1972 — “Uma chave de leitura de Americanismo e fordismo” —, estabelece as primeiras bases para derrubar as interpretações canônicas de Gramsci. O fato de eu não ter realizado nunca um estudo sistemático dos Cadernos foi para mim uma vantagem. Não estava demasiadamente condicionado pela edição temática de 1948-1951, e iniciei um verdadeiro estudo destes Cadernos com base na edição Gerratana de 1975. Acompanhar sua redação quase dia a dia originava uma real mudança de paradigma. Antes de tudo, ficava evidente que o pensamento de Gramsci tivera uma evolução muito significativa entre 1929 e 1935. Daí se destacavam as inovações em relação à década de 1915-1926 e o entrelaçamento entre os “parágrafos” dos Cadernos e os desenvolvimentos da política mundial. Nada de “pesquisa desinteressada”! Seria preciso reconstruir a biografia política do prisioneiro para nos orientarmos na ingens silva dos Cadernos e delinear sua biografia intelectual. Surgia uma pergunta: qual teria sido o “programa cientifico” de Gramsci na prisão de Turi? Em que medida dava sequência ao que tomou forma entre a Grande Guerra e o advento de Stalin? Ao contrário, em que pontos o reformulava? O grupo de estudiosos que trabalhou na preparação do seminário do Instituto Gramsci, em 1977, intitulado, não por acaso, “Política e história em Gramsci”, compartilhava esta diretriz. Mesmo que, no seu resultado final, o trabalho de preparação tenha sido substancialmente posto de lado, Franco De Felice, Biagio de Giovanni, Marisa Mangoni, eu mesmo e outros produzimos um volume preparatório que projetava uma nova abordagem do pensamento maduro de Gramsci.
A esta abordagem comecei a me dedicar, com certa continuidade e com aprofundamentos progressivos, depois de ter assimilado a crise mundial dos anos setenta, ter construído uma ideia pessoal desta crise e começado a compreender que estávamos frente a um declínio talvez irreversível do sistema político da Itália republicana. Este alargamento do campo de visão e uma significativa revisão dos meus instrumentos de pesquisa me libertaram do “giobertismo” político e cultural do PCI, que havia compartilhado na década anterior. Em Gramsci descobri gradualmente os fundamentos de um pensamento histórico-político útil para compreender o século XX como o século da interdependência e da globalidade, da modernidade completa e da sua crise, mas também os primeiros elementos daquele “novo modo de pensar” que indica as perspectivas para superá-la. É o Gramsci no qual trabalho ainda hoje: são mais de vinte anos, e creio poder dizer que, de fato, finalmente o encontrei e o elegi como guia da minha pesquisa política e intelectual.
Giuseppe Vacca é presidente da Fundação Instituto Gramsci. Entre seus livros publicados no Brasil, Por um novo reformismo (Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2009).