Para Karoline Postel-Vinay, especialista em narrativas nas relações internacionais do Instituto de Estudos Políticos de Paris, a política 'tem horror à zona vaga das incertezas'
Fernando Eichenberg, especial para O Globo
PARIS – Diante das incertezas científicas que cercam a pandemia da Covid-19, multiplicam-se as narrativas políticas que buscam, por necessidade ou oportunidade, conferir coerência ao enfrentamento da crise, observa a cientista política Karoline Postel-Vinay. Especialista no estudo de narrativas nas relações internacionais, tema de seu próximo ensaio, a analista do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po) afirma que a política “tem horror à zona vaga de incertezas”, terreno no qual não sobrevive.
No caos mundial provocado pelo coronavírus, governos nacionais, organismos internacionais e movimentos de opinião criam seus próprios discursos, em uma “batalha de influências” que, segundo prevê, será ainda mais acirrada no período pós-crise.
Qual a diferença entre as narrativas políticas por necessidade e por oportunidade nesta crise pandêmica?
A necessidade ocorre quando há políticas públicas a serem aplicadas, porque a saúde é um setor soberano, e os governos nacionais são os primeiros a terem de agir. As organizações internacionais também, como o Banco Mundial ou a União Europeia (UE), mas não estão linha de frente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) não aplica políticas públicas, envia mensagens e recomendações. Existe a necessidade de uma aplicação de políticas públicas, com coerência, enquanto ainda não se têm todos os dados científicos e há grandes zonas de incertezas.
A oportunidade é quando já existe uma mensagem política que se quer desenvolver ainda mais, e esta situação de crise é uma oportunidade para promover certas narrativas, que não são totalmente novas. Penso que mais nos aproximarmos de um fim da crise, mais estes momentos de oportunidade vão se desenvolver. Já se vê isso nos debates em torno de como será o mundo no pós-crise. Na França, o presidente Emmanuel Macron já abriu a via para isso ao dizer que sairemos transformados desta crise, “eu em primeiro”. E quando se diz que o mundo será diferente, evidentemente se está completamente na mise-en-scène narrativa do pós-crise, não no dado científico.
As narrativas, segundo sua análise, se sustentam menos em uma verdade do que em uma plausibilidade.
A noção de plausibilidade é de Roland Barthes, que a usou para falar de narrativas em um sentido mais filosófico-literário nos anos 1970. O filósofo Paul Ricoeur e outros também desenvolveram toda uma teoria da narrativa. É o meu tema nas relações internacionais, e o utilizo no contexto político. Os teóricos da narrativa disseram que cada indivíduo é confrontado a um conjunto de acontecimentos e dados, e tenta dar um sentido geral a tudo. E a isso se acrescentam as crenças de suas sociedades. Hoje, estamos em uma zona vaga de incertezas, a começar pelos epidemiologistas. E não se faz política com incertezas. A política tem horror deste vazio e desta zona vaga, não sobrevive neste terreno. Então é preciso dar um sentido. Quando se deve administrar um espaço nacional – e também internacional -, se é obrigado a habitar esta zona, preenchê-la. É a própria natureza da política que leva a isso. Qual a verdade do grande debate atual saúde x economia? É preciso organizar uma narrativa que vá produzir algo plausível, que tenha um sentido, seja coerente. Há várias dimensões nesta crise.