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brasileiro e mundial da arquitetura, inventor de uma nova forma de lidar com o
concreto armado que revolucionou a concepção urbana, defensor da luta contra os
excessos da razão, morreu às 21h55m de ontem, a dez dias de completar 105 anos,
Oscar Niemeyer. Criador de Brasília, visitada por estudiosos e amantes da arte
e do urbanismo, deixou sua marca em várias cidades do mundo ao longo do século
XX. Fiel a suas ideias, foi um árduo porta-voz do comunismo, mesmo após a queda
do Muro.
Aos
104, o arquiteto do Brasil
Muito além de ter sido o homem que projetou
Brasília, Oscar Niemeyer tornou-se um ícone mundial da invenção e da luta
contra os excessos da razão na construção do mundo
Arnaldo Bloch
Oscar Niemeyer era conhecido mais
habitualmente como o homem que fez Brasília, e sua figura, por isso, ficou
para sempre muito mais identificada com a capital que projetou (e o transformou
num dos ícones mundiais do século que ele viveu e transpôs), do que com a
cidade onde nasceu e morou a maior parte da vida. Mas o carioca de Laranjeiras,
nascido em 1907 era, em essência, um homem do Rio: descontadas suas andanças
profissionais pelo mundo — que foram muitas —, viveu até seus últimos dias na
cidade, e espelhou, em grande medida, em sua obra, a filiação e a fidelidade
cariocas.
Atestam-no as curvas que o arquiteto recolheu
das linhas litorâneas e dos traços femininos, transferindo-as para a moldagem
do concreto, o material escolhido para fazer a sua revolução estética dentro
da arquitetura.
É comum reconhecer, na leveza de suas
estruturas e na elegância das formas que legou, o espírito da cidade, a
musicalidade de sua fala, e ao mesmo tempo a sua grandeza, os seus horizontes,
a generosidade da natureza.
Mas o "poeta do concreto" — como
era frequentemente chamado — herdou também do Rio a consciência de pertencer a
um universo de contrastes onde impera a injustiça social e de que esse estado
de coisas é uma constante universal: algo deve ser feito para mudá-lo, sendo
essa ação o foco prioritário de todo homem justo.
Tal princípio acabou por levá-lo ao
engajamento político e à filiação ao Partido Comunista Brasileiro (que deixou
no dia em que concluiu que a legenda afastara-se das bases do
marxismo-leninismo).
O pessimista que amava a vida
Embora essa postura tenha lhe custado
críticas, além de inevitáveis choques com as forças da repressão no período da
ditadura militar, ele se manteve fiel a ela no correr da sua longa vida, mesmo
depois da derrocada do regime na URSS e da queda do Muro de Berlim. Um dos
últimos comunistas inexoráveis do Brasil, portanto, Niemeyer, ci- garrilha cubana
em punho, debatia até a exaustão, cada vez que era questionado, temas
espinhosos como as arbitrariedades de Stálin, relativizando a visão ocidental
do líder russo, o que levava à loucura muitos de seus convivas.
Mas, apesar do aparente sectarismo, Niemeyer
era um homem aberto a todas as opiniões e visões, de maneira que, ao final de
uma boa conversa com ele, o interlocutor saía com a sensação de ter conhecido,
acima de qualquer coisa, um humanista, amante da liberdade, da pluralidade, do
entendimento e da moderação na busca de soluções.
Homem que, ao descrever os processos de seu
ofício, desdenhava da técnica e preferia mencionar a leitura de obras
literarias e de filosofia co mo alicerces mais importantes que a própria
formação. "Minha lição para a arquitetura é ler romance, poesia, ficcão,
Si- menon, e nada de livro técnico. A maioria dos meus projetos é resolvida
pelo texto, Ler filósofos como Heidegger que dizia: a razão é inimiga da
imaginação" defendia o arquiteto, que mantinha, semanalmente, em seu
escritório em Copacabana, grupos de estudo sobre filosofia e astronomia. Para
ele, só o conhecimento de humanidades possibilitava um verdadeiro crescimento
pessoal e profissional.
Nesta linha, abria-se um vão para os
paradoxos de Niemeyer, ura pessimista que nunca perdia a esperança num mundo
melhor, esclarecendo, com conhecirnento de causa, que o pessímlsmo, ao
contrário do niiiismo, não exciui o prazer e a alegria de viver. Um homem que,
de estatura baixa, de aparência frágil revelava-se monumental em sua
personalidade e carisma, e que, mesmo na velhice, punha-se de pé diante da
prancheta. Um ateu decidido, capaz de traduzir a presença divina na força da
luz dentro de uma catedral, e que acreditava na natureza como unia força maior,
Um comunista que gostava de futebol (chegou a jogar como atacante pelo
Fluminense), torcia pelo Brasil, comprava pacotes de pay-per- view e tinha na
sensualidade feminina fonte de inspiração. Um homem cuja mente ia da razâo e da
lógica ao mais desvairado voo poético, e que fugiu das imposições da
funcionalidade radical e das linhas retas, e construiu um novo-mundo de
estruturas e formas. Um arquiteto que, apesar de ter dedicado sua vida ao
trabalho e conquistado sucesso inquestionável (dele, André Malraux dizia ser
"o maior arquiteto da Terra e, das colunas do Palácio Alvorada, que eram
Ho elemento arquitetônico mais importante desde as colunas gregas");
relativizava o peso dos louros da profissão, dizendo, de várias formas, como
variações sobre um mesmo tema: "Importante não é a arquitetura. Importante
é a vida. A arquitetura não pode mudar a vida. Só a vida é que pode mudar a
arquitetura. No dia em que o mundo for mais justo, a arquitetura vai mudar, e
será mais simples, como o mundo. Enquanto isso não acontecer, a gente vai
fazendo o que é possível, embelezando as coisas, tentando surpreender,
espantar, chamar a atenção para algo".
Entretanto, Niemeyer, sempre que encontrou
uma brecha, procurou um caminho que permitisse convergências entre a
preocupação estética e a função social que tanto o preocupava. São exemplos os
projetos do Sambódromo e dos Cieps (no caso, enquadrados num programa político
de educação pública de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola). Mais recentemente, um
conjunto de prédios em Duque de Caxias, no Estado do Rio, com pórticos,
biblioteca e teatro, foi projetado com a intenção de "aplicar" uma
sofisticação de Zona Sul a um município onde a pobreza é dominante,
"Partir do princípio de que a arquitetura dos pobrés tem que ser necessariamente
pobre num ambiente de contrastes é uma forma de discriminá-los, de não
sinalizar para a mudança" disse, sobre o projeto, o arquiteto que projetou
uma casa para o próprio motorista, morador da Rocinha.
A inquietação de Niemeyer com o aspecto
social criou, em outras obras suas, um universo simbólico forte que aparece de
maneira controversa em trabalhos como o Memorial JK, em Brasília (que contém
alusão à foice e ao martelo, símbolo comunista) e na mão aberta de concreto
sobre a qual escorre sangue, no Memorial da América Latina, em São Paulo, que
remete ao sofrimento dos povos da região.
O medo e a coragem de voar alto
Morador um dia da exuberante Casa das Canoas,
em São Conrado, e, até hoje, de um apartamento de Ipanema, Niemeyer nunca
gostou de sair do Rio de Janeiro e, como Tom Jobim, tinha medo de avião.
Viajava, sempre que podia, de automóvel, e percorria distâncias
intercontinentais de navio, até render-se à praticidade das aeronaves. Mas o
mestre das formas acabou se tornando um viajante consumado, por dever do
ofício, pelas solicitações do mundo, tendo espraiado parte de suas mais de 500
obras e outra sentenas de projetos por países como França, Itália, Portugal,
Argélia e Israel.
Apesar do indiscutível reconhecimento
internacional, Niemeyer era criticado por uma forte corrente, que o acusava de
negligenciar a funcionalidade do espaço interno da obra em benefício de
preocupações estéticas. O mestre defendia-se, dizendo que tinha em conta um
conjunto de fatores que começava com a vocação e cada terreno, passava pelas
necessidades de quem vai habitar o prédio (a função da luz na Catedral de
Brasília é um exemplo) e terminava na necessidade de se destacar, de chamar a
atenção, e de transformar. Em relação à casa que construiu para si na Estrada
das Canoas, por exemplo, Walter Gropius disse que era muito bonita mas não
multiplicável. Niemeyer respondeu: "Como tornar multiplicável uma casa que
se adapta tão bem às inclinações irregulares do terreno, a uma situação única,
que não pode ser encontrada em outro lugar?" O enigma, irrespondível, é
expressão clara do gênio de um grande mestre.
Oscar Niemeyer morreu às 21h55m de ontem, a
dez dias de completar 105 anos, de infecção respiratória, no Hospital
Samaritano, no Rio de Janeiro. O velório será realizado hoje no Palácio do
Planalto. O corpo do arquiteto voltará ao Rio, para ser velado também no
Palácio da Cidade, amanhã.
Fonte: O Globo