Por Hamilton dos Santos; Especial para O Globo
Celebração do autor de 'A riqueza das
nações' é ponto culminante de um revisionismo que inclui resgatar sua crítica
moral da escravidão
Este ano são comemorados os 300 anos do
nascimento de Adam Smith (1723-1790), autor do clássico “A riqueza das nações” (1776).
As celebrações prometem muito barulho, transformando-se no ponto culminante de
um processo revisionista que teve início ainda nos anos 1970, e que pretende
resgatar o “verdadeiro Smith” de sua imagem popular, ainda associada à pregação
de um neoliberalismo selvagem.
No epicentro das principais festividades,
de 5 a 10 de junho, está a Universidade de Glasgow, da qual Smith foi o aluno e
o professor mais célebre. Uma série de colóquios já está em andamento em
diversos países, apresentando a mais recente produção acadêmica e biográfica
sobre o pensador escocês e sua obra.
Quem está à frente da curadoria dos eventos
oficiais e das recuperações históricas é o professor Craig Smith (que, apesar
do sobrenome, não é descendente do filósofo), do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade de Glasgow. Autor de “Adam Smith’s political
philosophy: the invisible hand and the spontaneous order” (“A filosofia
política de Adam Smith: a mão invisível e a ordem espontânea”, em tradução
livre), ele falou ao GLOBO sobre a missão.
O Adam Smith do imaginário popular difere
do que viveu e escreveu no século XVIII?
Adam Smith tem um lugar na cultura popular
muito associado à economia de livre mercado por ser autor de “A riqueza das
nações”, um dos primeiros clássicos modernos da área, em que argumenta em favor
da livre iniciativa. Mas ele é também um filósofo interessado em moral,
ciências naturais, artes, linguagem — sem levar isso em conta, não é possível
ter uma imagem clara do que ele escreveu sobre economia. Por exemplo: muita
gente acredita que Smith era um defensor dos interesses particulares, do
egoísmo, e isso não é verdade. Em sua “Teoria dos sentimentos morais” (1759),
ele descreve e defende motivações diferentes para as ações humanas, inclusive
benevolentes. Em “A riqueza das nações”, Smith fala de situações nas quais o
livre mercado não funciona e os governos deveriam agir. Existe uma imagem
enganosa dele como economista, uma espécie de caricatura. Na celebração de seu
300º aniversário, queremos conscientizar as pessoas de outras coisas que ele
defendeu em sua obra.
Quem deturpou a sua imagem?
Não gosto de atribuir culpa. Livros
recentes afirmam que economistas associados à Universidade de Chicago teriam
sido responsáveis por cultivar essa imagem de Smith e provavelmente existe
alguma verdade nisso. Mas é igualmente verdade que muitas outras pessoas
fizeram essa associação, gente que nunca ouviu falar de Milton Friedman, George
Stigler ou outros nomes dessa escola. Então acredito que a questão da
responsabilidade seja mais profunda. Acho que Smith é uma dessas figuras que
são tão conhecidas que todos acham que sabem o que elas disseram. Ocorre o
mesmo com Karl Marx — poucos leram o original ou mesmo livros sobre ele, mas
muitos pensam entender sua obra quando, na verdade, apenas absorveram uma
versão resumida de seu pensamento via cultura popular.