• Mensagem escrita no dia 12 de outubro de 2014
A data de hoje é emblemática para o assunto dessa mensagem. Há vinte e dois anos, Ulisses Guimarães foi abruptamente retirado da cena política por um acidente aéreo. Seu corpo jamais foi encontrado, mas sua alma de político por vocação tem chance agora de deixar de pairar sobre a Serra da Mantiqueira para descer à terra e iluminar eleitores, para que façam bem, como ele fazia, o que precisa ser feito.
Nessas eleições vou de Aécio, depois de ter votado em Marina no primeiro turno. E vou serenamente, acreditando que ele expressa uma aliança liderada pelo PSDB, porém, mais ampla do que esse partido e do que qualquer arco de partidos. Estou convencido de que não haveria outro quadro no PSDB mais capaz do que Aécio de exprimir essa convergência que pode fazer o Brasil ultrapassar a melancolia atual e ter um tratamento melhor da sua economia, uma pauta renovada de políticas sociais e, mais do que tudo, uma visão mais arejada e pluralista da política, que reconecte, ao nosso novo presente, os elos que perdemos com a trajetória nobre da transição democrática dos anos 80.
Isso poderá vir agora (tomara mesmo), ou em 2018, mas penso que virá. Sim, porque creio que é uma convergência vinda para ficar, no governo, ou na oposição, até que a maioria do eleitorado brasileiro se convença sobre suas virtudes. Reconheço que o PT tem gorduras para queimar e por isso ainda pode virar o jogo eleitoral. Essas gorduras provêm, não só da sua condição de governo - que lhe permite manejar recursos materiais e políticos não desprezíveis – mas também do seu enraizamento na sociedade, que não se deve subestimar. Ele torna compreensíveis e legítimas (embora a meu ver equivocadas) justificativas de quem vai votar em Dilma em nome da continuidade e aprofundamento das políticas sociais atuais. Agora, essa história de risco de que Aécio seja retrocesso, por mais que seja um equívoco de boa fé da parte de muitos, a cada dia mostra mais a sua face mistificadora. Como tal deve ser rejeitada e vencida e, por isso, peço a vocês um pouco mais de paciência para apresentar minha opinião sobre esse tema que o governo, seu partido e sua candidata trouxeram à campanha.
A ideia de que votar em Aécio é como optar por um retrocesso ainda paralisa setores da esquerda e uma parte do eleitorado graças a uma persistente propaganda do PT, em seu embate maniqueísta com o PSDB, ao longo de anos. Mas é uma visão que desconhece que governos não se orientam só pelas estratégias dos partidos ou dos líderes que os conduzem, mas também são afetados pelos contextos em que estão inseridos.
Em que contexto Fernando Henrique e os tucanos governaram o Brasil? Num contexto em que a estabilidade econômica e o controle da inflação eram os principais reclamos de uma sociedade exaurida por prolongada crise econômica e pelos desmandos do governo Collor. E mais: contexto de hegemonia forte, no mundo inteiro, daquilo que se passou a chamar de "neoliberalismo". Na esteira da queda do muro de Berlim e do desmanche do chamado "socialismo real" (uma onda que atropelou até Gorbachev, reformador da então União Soviética) firmou-se a ideia de que o capitalismo era o fim da história, o que deslegitimava, de antemão, qualquer estratégia política que não se fincasse radicalmente em reformas "orientadas ao mercado".
Se a disputa eleitoral de hoje não toldar nossa memória, lembraremos que os tucanos brasileiros não foram os únicos socialdemocratas no mundo da época a terem que ceder e adaptar suas políticas à hegemonia desse pensamento. Lembraremos, então, de Tony Blair, Felipe Gonzalez e muitos outros. E ainda poderemos constatar que com tudo isso houve, sim, no Brasil dos anos 90, um avanço dessa lógica de onipotência do mercado, mas que mesmo com as privatizações e tudo o mais que compunha aquela agenda, o tal "desmonte" do Estado no Brasil não ocorreu (vide, por exemplo, as políticas sociais que ali começaram), assim como também não se deu o desmonte do nosso parque industrial. Basta comparar com o que ocorreu ao nosso redor, com os vizinhos da AL, para concluir que os tucanos foram moderados na sua adesão à agenda neoliberal.
A primeira pergunta que devemos fazer a nós mesmos para não nos deixar levar só pela propaganda é: se Lula e o PT houvessem governado o Brasil nos anos 90 teriam resistido mais que os tucanos a essa hegemonia e proclamado a "prioridade ao social"? Ou teriam se adaptado a ela, mantendo a agenda social em plano secundário diante da absoluta prioridade que tinham o combate à inflação e a estabilização econômica? Se em 2002, na sua “Carta aos Brasileiros”, Lula reconheceu isso como premissa de sua política macro econômica, imagine se ele iniciasse seu governo em 1994, como FHC!
Lula governou depois dessa onda hegemônica. Por isso pôde dar, como deu, visibilidade tão forte à agenda social, que foi sua promessa mais bem cumprida. Por isso pôde promover (às vezes meio desastradamente, aliás) o fortalecimento do papel do Estado em vários âmbitos da vida social. Por isso Dilma e o PT podem apresentar hoje ao País um cabedal de realizações nesses âmbitos. E por isso ainda têm chances de vencer a eleição, mesmo diante da estúpida corrupção que o PT e seus aliados praticaram e estimularam e da incompetente gestão da economia nos últimos quatro ou cinco anos.
Uma segunda pergunta, então, que devemos fazer para não sermos tragados pelos mantras maniqueístas do marketing é a seguinte: num contexto mundial como o de hoje, em que o "neoliberalismo" está, no mínimo, sob uma suspeita (senão sob um fogo cruzado) na América Latina e na Europa e que, nos EUA, o presidente é um Barak Obama; e num contexto brasileiro em que a prioridade ao social ganhou mais consenso junto ao eleitorado até mesmo do que a ideia da estabilidade econômica; é sensato pensar que um governo de Aécio será um "retrocesso neoliberal”? Francamente, esse tipo de fantasma é obra criada pela propaganda e não deve assombrar, nem causar hesitações, em quem já tem a consciência política de que é preciso mudar.
Claro que há pessoas que sabem de tudo isso, não estão solidárias com a política do governo, mas se acham cansadas de acreditar em mudanças porque passaram a crer que todos os políticos e todos os partidos farão sempre mais da mesma coisa, em qualquer situação. Reconheço que é mais difícil livrar pessoas desse desalento do que desmistificar a conversa do retrocesso. Mas, pensemos:
• Valeu a pena, em 1984, depois da não aprovação das Diretas Já, terem feito um acordo para ultrapassar a ditadura com a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral OU seria melhor ter ficado na ditadura até que ela caísse (se caísse) por uma explosão do povo nas ruas?
• Valeu a pena, em 1986, ter dado ao Congresso o poder de fazer a Constituição que hoje temos OU estaríamos vivendo melhor sem ela, como pensavam aqueles para quem uma constituição feita pelo Congresso seria contra os trabalhadores?
• Valeu a pena, em 1992, o Congresso ter removido Collor da Presidência OU teríamos nos dado melhor se ele ficasse mais tempo até que um dia, quem sabe, o povo o derrubasse?
• Valeu a pena, em 1994, os tucanos terem sido eleitos para tocarem o Plano Real OU estaríamos melhor hoje se houvesse prevalecido a posição contrária, que denunciava aquele plano como um engodo?
• Valeu a pena, em 2002, Lula ter assinado a Carta aos Brasileiros, ser eleito Presidente e promovido as políticas sociais que promoveu OU o Brasil estaria melhor hoje se ele tivesse se recusado a “acalmar os mercados” naquela hora?
• Por fim, valeu a pena a maioria dos eleitores ter votado na oposição em 2014 OU teria sido melhor para o Brasil que Dilma tivesse vencido logo no primeiro turno e assegurado a continuidade do que aí está?
Penso que as pessoas que preferirem as primeiras alternativas de resposta a cada uma dessas perguntas não devem se sentir em desalento para votar, nesse segundo turno, por uma mudança política. Estou convencido de que essa é a atitude coerente, capaz de valorizar e, ao mesmo tempo, renovar a trajetória de avanço da democracia no Brasil.
Quem me conhece bem sabe que nunca tive sintonia política com Marina e que votei nela no primeiro turno, embora cercado de sobressaltos, por entender que aquele era um ato determinado por mais uma fatalidade vinda dos ares, similar à que vitimou Ulisses. Mas diante do conteúdo da sua fala, o eleitor desconfiado cedeu de vez o lugar ao cidadão esperançoso.
Por isso quando for à urna no segundo turno não o farei movido por um impulso tucano, nem iludido pela pessoa de Aécio Neves. Ainda assim o farei sem sobressaltos, serenamente, conservando, ao lado das esperanças, incertezas, que naturalmente há, num momento tão delicado. Mas penso, depois de anos na estrada, assistindo a tanta coisa, que quem quer viver de certezas não viverá nada que, de fato, valha a pena.
Paulo Fábio Dantas Neto, cientista político e professor da UFBA