quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Opinião do dia – Norberto Bobbio (Sobre o liberal-socialismo)

O interesse de Mill pelas ideias socialistas é comprovado pelo fato de que nos últimos anos ele escreveu um ensaio, que permaneceu incompleto, sobre o socialismo. Nos quatro capítulos concluídos encontram-se uma exposição das doutrinas socialistas de Louis Blanc, Considérant, Owen e Fourier (mas não de Marx), a sua contestação, as dificuldades práticas que a aplicação dos programas socialistas, enfrentariam, e uma discussão sobre a propriedade privada, que é, do ponto de vista teórico, o capítulo mais interessante. Nele sustenta que, embora tendo a propriedade individual um longo futuro diante de si, nada leva a crer que não deva sofrer alguma modificação. Na conclusão, o comunismo não é categoricamente rejeitado. Uma sociedade comunista, contudo, precisaria, segundo Mill, de uma educação superior da qual a sociedade atual está ainda muito distante.

Que fique bem claro, o ensaio de Mill sobre o socialismo não é uma obra socialista. É, antes de tudo, um estudo sobre algumas correntes de pensamento socialista, diferenciadas entre escolas gradualistas, às quais ele destina sua simpatia, e revolucionárias, que são radicalmente refutadas. Nele admite, contudo, que os principais defeitos do sistema vigente podem receber emendas de modo a obter as principais vantagens do comunismo por meio de disposições compatíveis com a propriedade privada e com a concorrência individual. Para a nossa finalidade, interessa-me observar que Perry Anderson, em recente ensaio, sustenta que a ”parábola” de Mill em direção ao socialismo permite refletir sobre o fato de que se “liberalismo e socialismo foram por longo tempo entendidos como antagonistas pelas suas tradições políticas e intelectuais, teve inicio desde então um distinto percurso na história das ideias, ao qual se juntariam outros pensadores, menos autorizados, como Bertrand Russel e John Dewey, nos quais veríamos as duas doutrinas, tradicionalmente antagonistas, convergirem.

*Norberto Bobbio (18/10/1909-9/1/2004), filósofo político, historiador do pensamento político, escritor e foi senador vitalício italiano. “Teoria Geral da Política – A filosofia Política e as Lições dos Clássicos”, p. 358. Editora Campus, Rio de Janeiro, 2000

Rosângela Bittar - Reação química

- Valor Econômico

Bolsonaro em campanha é ventríloquo de si

Muito Bolsonaro para pouco presidente. Enquanto a história a ser contada neste mandato for esta, o governo ficará sujeito a uma avaliação negativa crescente e consequente perda de adesão eleitoral. Está mostrado, nas pesquisas atuais em que se destaca a do Datafolha, a frustração dos brasileiros com a ininterrupta campanha eleitoral, agora para construir a reeleição. E em campanha eleitoral, Bolsonaro é seu ventríloquo.

Boa parte do eleitorado constata que escolheu, em 2018, um candidato, não um presidente. E outra parte, agora já menor do que esteve nas urnas, demonstra que Jair Bolsonaro continua sendo o seu líder, sem restrições, e que seu presidente é seu eterno candidato. É para eles, e por eles, que Bolsonaro trabalha. Aprovam o comportamento, a retórica, o linguajar, as ideias e atitudes. Acham uma graça enorme em Bolsonaro e não devem mudar de opinião, são os 30% de fanáticos pelo ídolo.

O problema é ainda maior para o conjunto da população porque não se está diante de um impasse decorrente de estilo. Um estilo pode ser alterado até por conselho, estratégia, autocrítica, medo das perdas ou toque de um amigo. Bolsonaro é natureza, não estilo, e natureza dificilmente se consegue mudar.

Portanto, Jair, quanto mais veste o Bolsonaro, mais refuga o presidente, e mais agrada ao núcleo homogêneo dos seguidores incondicionais de sua ideologia. Enquanto vai perdendo os outros que lhe foram necessários para dar a maioria de votos.

É o que as pesquisas mostram. Diariamente Jair Bolsonaro demonstra como há razões para os números serem os apontados.

Tomemos dois a três dias da semana, inclusive ontem. No Facebook, em entrevistas na porta do Alvorada, em respostas a jornalistas durante eventos, sempre agressivo, irônico, e jamais em tom normal para uma conversa sobre qualquer assunto de governo. Gosta de confrontar, sobretudo as pessoas, mas também as evidências. Atribui irregularidades sem se dar ao trabalho de apresentar provas. Tal qual um outro inimputável recente.

Na quinta-feira, disse que João Doria (PSDB), governador de São Paulo, mamou nas tetas do PT; fez chacota do apresentador Luciano Huck incluindo-o na caixa preta do BNDES por haver contraído empréstimo.. Antecipou o embate pois ambos podem disputar com ele a eleição de 2022. São ataques palanqueiros todos os que faz: "Eu vejo o Doria falando 'a minha bandeira jamais será vermelha'. É brincadeira né? Quando ele estava mamando a bandeira era vermelha com foice o martelo ali, sem problema nenhum né?" Um retrato do presidente-candidato sem photoshop.

Vera Magalhães –Bolsonaro atira no centro

- O Estado de S.Paulo

Para repetir polarização nos extremos com o PT, presidente fustiga Doria e Huck

O sonho de consumo não escondido por Jair Bolsonaro e seu QG é uma reeleição em 2022 nos mesmos moldes da de 2018, anabolizada, se tudo correr bem, por uma economia crescendo num ritmo entre 2,5% a 3% nos dois últimos anos de governo.

E o que significa repetir o roteiro do ano passado? Manter a militância engajada nas redes sociais, avançar com as pautas caras ao bolsonarismo e, melhor dos mundos, disputar de novo contra o PT.

Há algumas incertezas quanto à possibilidade de se cumprir o script. A performance da economia é a maior delas: não são poucos os economistas que avaliam que, mesmo com o correto receituário de reformas, desestatização e desburocratização sendo colocado em prática, pode faltar tempo para que a economia (e, principalmente, o emprego) volte a girar num ritmo capaz de dar à população a sensação de que a vida melhorou significativamente sob Bolsonaro – condição importante para que haja a disposição de eleger um presidente.

Outra dificuldade para que o plano corra conforme o desenhado é que a polarização nos extremos canse a maioria do eleitorado e ele busque uma opção no centro – compreendido como o espectro que vai da centro-direita à centro-esquerda.

Isso claramente incomoda o bolsonarismo, que tem dedicado as últimas semanas a fustigar eventuais opositores nesse campo. Luciano Huck e João Doria Jr.apareceram na lista dos compradores de jatinhos subsidiados por um programa do BNDES na era petista. A ideia parece ser matar adversários no nascedouro, sem sutileza nem intenção de disfarçar os propósitos.

Merval Pereira - Só pensam naquilo

- O Globo

A vitória do petista Fernando Haddad sobre Bolsonaro num terceiro turno hipotético proposto pela recente pesquisa do Datafolha vem comprovar que o embate entre os extremos da política brasileira é o que mais atende ao anseio dos dois.

O resultado não tem maior importância, pois o momento atual não é favorável ao presidente, como mostram diversas pesquisas. Mas confirma o arrependimento de segmentos de eleitores que escolheram o antipetismo em 2018, e hoje já aceitariam Haddad, diante da situação conturbada que vivemos, graças ao caráter belicoso do presidente, e da estagnação econômica.

Mas colocar apenas essas opções para o eleitor é aceitar que essa disputa continuará permanentemente, quando o objetivo de muitos é justamente sair dessa polarização.

As pesquisas recentes mostram que existem opções para o centro político, embora muitas potenciais alternativas em dificuldades no momento. O ministro da Justiça, Sergio Moro, continua sendo o mais popular ministro em atuação, seguido do ministro da Economia, Paulo Guedes.

Mas, na oposição, Bolsonaro se beneficia da estagnação ou queda de adversários, como o governador de São Paulo, João Doria, até agora visto como a opção mais competitiva da centro direita. Na pesquisa do Atlas Político, Doria teve a imagem negativa elevada a nível recorde: 58,3%, quando em julho era de 42,5%.

Não é à toa que Bolsonaro outro dia fez um comentário sarcástico a respeito de uma eventual candidatura presidencial de Doria: “Esse está morto para 2022”.

O ex-presidente Lula continua com uma imagem negativa superior à positiva: 57,8% e 34%. E o ex-candidato Fernando Haddad tem imagem negativa ainda maior que o seu líder, desaprovado por 58,4%. Justamente por isso a suposta vitória de Haddad hoje é apenas uma curiosidade, não servindo para definir tendências. Que só será essa se a polarização dos extremos não for quebrada.

Todas as pesquisas de opinião mostram que o índice de desaprovação do governo do presidente Bolsonaro está maior do que o de aprovação, o que indica que o eleitorado de centro começa a abandoná-lo. Mas nenhum candidato oposicionista surge como alternativa.

Essa polarização agrada ao PT, que está completamente sem rumo, sem conseguir assumir o controle da oposição como pretendia. A presidente do partido nomeada por Lula, deputada Gleisi Hoffmann, por isso mesmo considera que o centro político não existe. Ou melhor, que quem não está do lado do PT está no lado de Bolsonaro, uma extrema direita que não tem coragem de assumir sua posição e finge ser de centro.

Mauro Paulino* / Alessandro Janoni* - Núcleo duro de Bolsonaro corresponde a 12%

- Folha de S. Paulo

Presidente é repudiado por 30%, que não votaram nele, reprovam atual governo e não confiam em suas declarações

Com o objetivo de melhor compreender o grau de afinidade e rejeição dos brasileiros ao presidente Jair Bolsonaro (PSL) e o impacto das características de seu discurso junto a diferentes estratos sociais, o Datafolha elaborou uma análise de segmentação da última pesquisa nacional.

Por meio da combinação de três variáveis, chega-se a seis grupos distintos numa escala de intensidade que varia do grupo de apoiadores mais fiéis ao de detratores mais críticos do pesselista.

Foram utilizadas na análise o voto declarado no segundo turno da eleição do ano passado, a avaliação que o eleitor faz da atual administração e o grau de confiança nas palavras do presidente.

O núcleo duro de entusiastas de Bolsonaro, isto é, que votou nele no último pleito, classifica sua gestão como ótima ou boa e diz confiar muito nas suas declarações, corresponde a 12% da população brasileira. São bolsonaristas "heavy" (nomenclatura utilizada em pesquisas de opinião para enfatizar a intensidade de um fenômeno).

É o único segmento onde a maioria diz que Bolsonaro se comporta como presidente da República em todas as situações e que seus filhos mais ajudam do que atrapalham o governo.

É o grupo que mais vê melhorias na economia e se mostra otimista quanto ao futuro. Aprovam bem acima da média o desempenho do governo em todas as 18 áreas contempladas pelo estudo, especialmente o setor de comunicações, a política para o meio ambiente, a economia e o combate à corrupção, que na visão do estrato é um dos principais problemas do país.

Como prova da fidelidade a Bolsonaro, a maioria dos que compõem esse subconjunto, ao contrário de todos os outros, concorda majoritariamente com as frases de conteúdo pejorativo proferidas pelo presidente nos últimos meses. A única que não consegue aderência tão expressiva é a que sugere o “cocô dia sim, dia não”para combater a poluição ambiental.

Também relativizam mais a questão do desmatamento da Amazônia e constituem o único estrato onde a maioria não vê prejuízos de investimento em função da crise internacional gerada pelas queimadas. Dão apoio massivo a Bolsonaro no embate contra o presidente da França, Emmanuel Macron.

Bernardo Mello Franco - Populismo em verde e amarelo

- O Globo

Depois de 27 anos, Bolsonaro imita Collor e pede que o povo saia de verde e amarelo. Para recauchutar sua imagem, o governo lançará campanha publicitária em tom patriótico

Em agosto de 1992, Fernando Collor já estava com um pé fora do Planalto. A cada dia, apareciam novas provas de corrupção no governo. Nas ruas,
crescia o movimento a favor do impeachment.

Acuado, Collor resolveu transformar uma solenidade oficial em comício. Ao anunciar benesses para taxistas, ele apelou ao patriotismo e pediu ao povo que saísse de verde e amarelo no domingo.

“Vamos mostrar as cores que balançam o nosso coração”, bradou, entre juras de amor à “nossa pátria querida”. Deu tudo errado. Os brasileiros saíram de preto, em sinal de repúdio ao presidente.

Depois de 27 anos, Jair Bolsonaro repetiu Collor. Ontem ele incentivou a população a sair de verde e amarelo no 7 de setembro. “Eu lembro que lá atrás um presidente falou isso e se deu mal. Mas não é o nosso caso”, apressou-se. Ele reforçou o discurso com chavões como “Aqui é o Brasil” e “A Amazônia é nossa”.

Bolsonaro está com a popularidade em queda, mas ainda não é tão rejeitado quanto Collor em 1992. Mesmo assim, resolveu reciclar o populismo em verde e amarelo de quem dizia ter “aquilo roxo”.

A exemplo do antecessor, o presidente usa o patriotismo como arma de propaganda. Ao se apropriar dos símbolos nacionais, tenta vender a ideia de que seus críticos seriam inimigos do país.

Bruno Boghossian - O tabuleiro da direita

- Folha de S. Paulo

Presidente perde popularidade, mas mantém base fiel em grupos cobiçados por rivais

Além do aumento do índice de reprovação de Jair Bolsonaro, a pesquisa Datafolha mostrou que a versão radical de sua plataforma tem sustentação numa fatia considerável do eleitorado. O presidente parece ocupar terreno firme o suficiente para puxar parte do jogo político para a direita nos próximos anos.

Mesmo sob retórica agressiva, sem concessões à moderação, Bolsonaro construiu apoio relativamente estável em grupos-chave. Um terço dos brasileiros de renda média e quase 40% daqueles com renda mais alta dizem que o governo é ótimo ou bom.

No Sul e no Sudeste, embora índices negativos tenham subido, a avaliação positiva ficou praticamente estável desde abril, acima dos 30%.

Os números não são vistosos, mas indicam que Bolsonaro conta com a fidelidade de parte desses segmentos até quando chega ao ponto de defender torturadores e de desdenhar da preservação do meio ambiente.

Ruy Castro* - Guerra ao parlevu

- Folha de S. Paulo

Se é para brigar com a França, Bolsonaro deveria parar de usar o bidê

Em janeiro, Jair Bolsonaro assinou decreto sobre a posse de armas com uma caneta Bic e disparou enfáticas ameaças de que iria “usar a Bic” para fazer e acontecer. Agora, ao declarar guerra ao presidente francês Emmanuel Macron, anunciou que deixará de usar a Bic por ela ser francesa. Trocou-a pela Compactor, brasileira. Ao abandonar uma marca de caneta por ela representar a cultura de seu inimigo, embora a Bic esteja no Brasil há mais de 60 anos, Bolsonaro deveria estender esse boicote a outros produtos originários da França.

Não deveria, por exemplo, continuar indo ao toalete, ao lavabo e ao bidê. Seu —perdão— menu teria de cortar canapés, patês, baguetes, caviar, bombons, croissants, croquetes, omeletes, filés, suflês, purês, champignons e maioneses. E sua mulher, a bela, jovem, irresistível, incomparável e inútil Michelle, teria de deixar de usar sutiã, lingerie, robe, echarpe, maquiagem, bustiê, pompom, peruca, viseira, maiô, batom e bijuterias.

Bolsonaro teria também de suprimir palavras que simbolizam bem o seu estilo de governar: o deboche, a revanche, a chantagem, o complô. Seus filhos não poderiam mais usar boné, tomar champanhe ou ir a boates. Os desocupados que o aplaudem na porta do palácio —sua claque— seriam dispensados. Seus netos ficam proibidos de ter gripe ou coqueluche. E Bolsonaro deveria se preocupar com o Queiroz —seu ex-chofer. Mas o principal é que, como presidente, ele parasse de cometer gafes.

E é bom que Bolsonaro não brigue com a premiê alemã Angela Merckel. A caneta Compactor, que ele adotou, nasceu na Alemanha, fabricada pela Compaktor Fullhalterfabrik, e veio para o Brasil em 1952, produzindo canetas-tinteiro. Só aderiu às esferográficas —uma invenção da Bic —em 1984.

Mas, para que canetas? Para assinar qualquer coisa, basta a Bolsonaro enfiar um dedo na tinta e fazer um xis.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Elio Gaspari* - Weintraub e a 'suspenção' das bolsas

- Folha de S. Paulo / O Globo

Brasil tem que conviver com ministro que assina documento sem ler e suspende auxílio à pesquisa

Num governo que fez a opção preferencial pelo folclore radical, Abraham Weintraub é um personagem inesquecível. É legítimo herdeiro do general Aurélio de Lyra Tavares, que há exatos 50 anos governava o Brasil na junta militar que empalmou o poder diante da incapacidade do presidente Costa e Silva. O doutor Weintraub pediu dinheiro ao ministro Paulo Guedes referindo-se à “suspenção” de pagamentos. Dias depois, explicou-se dizendo que assinou a carta de oito páginas sem lê-la.

Em março de 1964, o general Lyra Tavares escreveu ao seu chefe, Humberto Castello Branco, falando em “acessoramento”, numa carta em que meteu também um “encorage”. Como o general acabou seus dias num fardão da Academia Brasileira de Letras o ministro da Educassão tem pouco a temer (quando a ditadura vivia seu período de abrandamento, era comum que panfletos e documentos militares criticassem a “distenção”).

Com Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), Weintraub compõe o triunvirato folclórico do governo Bolsonaro. Uma cedilha a mais ou a menos não deve ser motivo para condenar uma pessoa. Grave mesmo é que, no dia em que se noticia a suspensão do pagamento de 5.613 bolsas de mestrado e doutorado, o ministro vá para vitrine escrevendo que “tem gente que acredita em Saci Pererê, em Boi Tatá e em Mula sem Cabeça; e tem gente que acredita no Datafolha”. Seu chefe manifestou o mesmo ceticismo em relação a uma pesquisa que mostrou a corrosão de sua popularidade, lembrando que tem gente que acredita em Papai Noel. Tudo bem porque qualquer fantasia é admissível para quem se vê mal numa pesquisa, inclusive a de acreditar no bom velhinho.

Roberto DaMatta - Sobre a má sorte amazonense

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Assumir que ‘índios’ não cabem no mundo moderno porque têm muita terra e não dão lucro torna-se prova de desumanidade

O presidente deveria compreender que “ser presidente” depois de ter sido capitão e parlamentar —num Brasil no qual liberais e patrimonialistas trocam de lugar e todos são legalistas, mandões e familialistas —requer paciência bíblica.

Veja-se o caso amazonense. Falar em queimadas numa área na qual “derrubar e queimar” foi parte de uma milenar agricultura —sem tomar contato com as obras de gente como Artur César Ferreira Reis e, principalmente, com o trabalho de Charles Wagley e de Eduardo Galvão, que estudaram a Amazônia — é um erro, já que — desde a Fordlândia e outros empreendimentos — a floresta não homogênea sempre foi vista como um obstáculo para a ambição dos que confiaram na ignorância, como um meio para domesticá-la ou destruí-la, como estamos testemunhando.

Os livros “Uma comunidade amazônica” e “Santos e visagens” — escritos, respectivamente, por Wagley e Galvão no curso de uma investigação pioneira baseada no método que os antropólogos chamam de “observação participante” — são imprescindíveis. Eles mostram como o estudioso, paradoxalmente, combina o olhar distanciado da observação com a visada íntima da participação. Algo difícil sem cometer os enganos constitutivos de toda ponderação humana, essas apreciações são sujeitas aos erros somente descobertos depois de um certo tempo. O que foi virtude numa etapa ou lugar, torna-se vício quando lido com outras lentes...

Zuenir Ventura - O fim de um sonho

- O Globo

O sonho de Tom Jobim era que o Rio se transformasse numa imensa Ipanema. Ele achava que só haveria democracia completa se houvesse hedonismo para todos. Tempos de utopia. Hoje, em tempos de distopia, é o contrário: o bairro-vitrine que ele e Vinicius fizeram o mundo admirar concentra algumas das piores mazelas da cidade: a violência, a desordem urbana, a sujeira, o desvio como norma, enfim, uma “esculhambação”, como diria o esculhambador-mor.

Um pequeno exemplo: depois de 20 anos caminhando diariamente pelo calçadão, abandonei a saudável prática depois que tropecei e por pouco não me estatelei no chão, como aconteceu com vários outros que levaram perigosas quedas causadas por pedras portuguesas fora do lugar. A vítima mais recente é uma amiga que quase quebrou o nariz ao cair num buraco do calçamento. Outra fraturou o fêmur, sem falar nos pedestres que são atropelados no seu espaço por bicicletas, skates e, agora, patinetes elétricos. São tantos os casos que já se pensa em organizar um movimento para processar a prefeitura.

E há os assaltos —pelas gangues de ciclistas, pelos pivetes que roubam celulares, pelos que invadem apartamentos (dois deles tentaram entrar no meu, dando um golpe: anunciaram que eram da Light e tinham sido chamados para atender a “uma senhora com necessidades especiais, dona Zuenir Ventura”. O porteiro, vivo, não abriu o portão. Assim, o prédio foi salvo porque os bandidos trocaram o sexo de um morador).

Míriam Leitão - A realidade fiscal bate à porta

- O Globo

Depois da PEC do Teto, aprovada em 2016, despesa obrigatória já subiu R$ 200 bilhões. O Orçamento está ficando inviável

O Brasil é um país que gasta quase R$ 1,5 trilhão com suas despesas primárias e vai investir apenas R$ 19 bilhões. Terá em 2020 o sétimo ano de déficit primário, mas aumentou os salários dos funcionários nos últimos quatro anos e o próximo Orçamento veio com uma despesa de R$ 12 bilhões a mais com a folha, sendo R$ 4 bilhões de reajuste dos militares. O Brasil é o país que, depois de aprovar a PEC do teto de gastos, elevou sua despesa obrigatória em R$ 200 bilhões. Agora está diante do seguinte dilema: abandonar o teto, aumentar a carga tributária ou flexibilizar as despesas obrigatórias?

Os últimos dias foram de susto nos ministérios. Todos eles olham para os dados do Orçamento de 2020 e não sabem como atravessarão o ano que vem com tantos cortes. Mesmo os que não tiveram redução da verba estão com dificuldade de atender à demanda de despesas. A pressão cai, claro, sobre o Ministério da Economia, mas até ele está tentando se organizar diante da própria contenção de despesas. O presidente Bolsonaro diz que também está pressionando em favor do ministério dele. Ele diz ter um: “o da Defesa.”

O Brasil aprovou o teto de gastos em 2016 para, em 10 anos, fazer um ajuste de 4% do PIB e chegar a 2% de superávit em 2026. Dessa forma, conseguiria no futuro estabilizar a dívida, que tem crescido muito. O problema é que em 2016 a despesa primária era de 19,9% do PIB. Em 2020, será de 19,4%. Ou seja, levou quatro anos para derrubar meio ponto nas despesas como proporção do PIB. A maior parte, quase 90% do esforço pretendido, está ainda para ser feita entre 2020 e 2026.

Por que se andou tão pouco já que o teto de gastos foi aprovado em 2016? É que a despesa obrigatória cresceu R$ 200 bilhões neste período. E de onde vem esse crescimento? O governo Temer deu aumento salarial parcelado até 2019, isso significa que todos os anos houve reajuste de funcionalismo, apesar da crise. E de 5,5% ao ano, acima da inflação, portanto. Para o ano que vem, começará a entrar o aumento dado na mudança na carreira dos militares para que eles aceitassem a reforma da Previdência deles. Há ainda as progressões naturais nas carreiras do funcionalismo. Outro gasto que cresceu muito foi o previdenciário. Mas não foi feita a reforma? Sim, foi. Ela vai economizar no ano que vem apenas R$ 6 bilhões, e a despesa continua aumentando. A reforma reduz o ritmo de crescimento, e o ganho no começo é pequeno.

Vinicius Torres Freire: Reforma tributária vira bicho estranho

- Folha de S. Paulo

Plano do governo é controverso e não conversa com projetos que andam no Congresso

Quem procurar saber o que é a reforma tributária vai encontrar chifre na cabeça de um cavalo que na verdade é um centauro com rabo de sereia.

Duas propostas tramitam no Congresso, mais ou menos da mesma espécie. No laboratório do governo, rascunha-se um plano que faz parte de outro reino da natureza tributária. Não há como casá-las sem produzir uma aberração, se é que a tentativa não vai produzir um divórcio político paralisante.

Mais do que uma reforma tributária, o governo pretende que a mudança nos impostos seja parte dos seus planos de revolução social. No fim das contas, essa reforma da natureza embutiria uma reforma trabalhista terminal e uma reforma da Previdência radical.

Os economistas de Jair Bolsonaro de fato querem criar uma CPMF, que daria dinheiro bastante, acreditam, para dar cabo da contribuição patronal para a Previdência, para o INSS. A intenção transparece em palavras e números.

Depois de um tempo de transição, a alíquota da Nova CPMF chegaria a 1% (o governo chama o imposto de CST: Contribuição Social sobre Transações). Nos tempos em que se cobrava 0,38% (2002 a 2007, por exemplo), a receita equivalia regularmente a 1,35% do PIB, por ano. Fazendo uma conta no guardanapo, a nova alíquota daria uma receita de uns 3,5% do PIB. É um pouco mais do que a contribuição total das empresas para o INSS, o imposto sobre a folha de salários.

Cristiano Romero - A era da pessoa física

- Valor Econômico

O brasileiro já sabe que terá de poupar por conta própria

No início deste século, cerca de cem milhões de americanos investiam no mercado acionário. Há 20 anos, portanto, um em cada três cidadãos possuía ações de empresas negociadas nas bolsas daquele país. Em 2016, segundo o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), 51,9% das famílias da maior economia do planeta tinham dinheiro aplicado em ações, direta ou indiretamente (por meio de fundos).

Em 2007 e 2008, os EUA foram o epicentro da mais grave crise financeira em escala global desde a Grande Depressão, em 1929. Após o ápice da confusão, em meados de setembro de 2008, quando o centenário banco Lehman Brothers quebrou, o índice Dow Jones caiu mais de 50%. O baque foi forte.

Bancos, seguradoras, corretoras, gestoras, fundos de pensão, empresas de todos os portes e milhões de pessoas, muitos aposentados, perderam fortunas da noite para o dia. Mas nem a crise que parecia anunciar o fim do capitalismo ou de uma das fontes de seu dinamismo - o mercado de capitais - conseguiu afastar os americanos das bolsas por muito tempo.

Pesquisa do Instituto Gallup divulgada em maio de 2018 mostrou, porém, que 2008 tornou os jovens mais cautelosos. A enquete revelou que, nos sete anos anteriores àquela crise, 52% dos entrevistados com menos de 35 anos investiam em ações. Nos últimos dois anos, o percentual recuou para 37%.

Entre os americanos com mais de 35 anos, 66%, em média, aplicavam em ações antes da crise e, agora, 61% ainda fazem isso - como diria Ancelmo Gois, deve ser horrível viver num país assim...

O mercado acionário é uma das fortunas do capitalismo americano. Por meio dele, grandes companhias floresceram, afinal, em qualquer lugar, é muito mais barato financiar um negócio com dinheiro de acionistas anônimos do que com crédito bancário. A cultura do investimento em bolsa sedimentou, nas famílias americanas, a noção de risco, a percepção de que não se constrói riqueza sem trabalho, esforço, sacrifício, suor.

Ricardo Noblat - Bolsonaro reduz Moro a pó de traque

- Blog do Noblat | Veja

E ameaça: “Se eu levantar a borduna, todo mundo vai atrás de mim e eu não fiz isso ainda”.

Como amanheceu, hoje, o ministro Sergio Moro, da Justiça, depois que leu de madrugada a entrevista que o presidente Jair Bolsonaro concedeu à Folha de S. Paulo?

Voltou a dormir depois do que leu? Já pensou no que dirá se jornalistas lhe perguntarem a respeito? Sente-se disposto a enfrentar mais um dia de trabalho estafante?

O diretor-geral da Polícia Federal é homem de confiança de Moro que o escolheu. Bolsonaro disse que está na hora de tirá-lo. Bem como de arejar a PF trocando os superintendentes.

Bolsonaro admitiu que tem um nome para dirigir a PF: o delegado Anderson Gustavo Torres, atual secretário de Segurança do Distrito Federal. E contou o que disse a Moro:

“Ninguém gosta de demitir, mas é mais difícil trocar a esposa. Eu demiti o Santos Cruz, com quem tinha uma amizade de 40 anos”.

(O general Santos Cruz foi ministro da Secretaria de Governo. Perdeu o lugar depois de ser atacado por Olavo de Carvalho, o guru da família Bolsonaro, e Carlos, o Zero Dois)

A intervenção de Bolsonaro na PF começou em agosto passado quando ele cobrou a substituição de Ricardo Saadi, superintendente no Rio, que já estava de saída.

Saadi desgostou Bolsonaro ao se recusar a trocar alguns delegados que estariam contrariando interesses da nova família imperial brasileira em pontos estratégicos do Rio.

O episódio enfraqueceu Moro e quase provocou uma demissão em massa de superintendentes. Mas é justamente isso o que Bolsonaro deseja – desmontar a PF para remontá-la a seu gosto.

Bolsonaro já disse e repetiu que quem manda no governo é ele, e que não é e jamais será um “presidente banana”. Ministros que não gostarem disso que peçam as contas.

Tal critério será aplicado à escolha do novo Procurador-Geral da República. Raquel Dodge não ganhará um novo mandato porque é mulher, como Bolsonaro já admitiu.

O escolhido, segundo ele, terá que “tirar nota 7 em tudo e ser alinhado comigo”. Por que nota 7 e não outra qualquer, Bolsonaro não explicou. Por alinhado, entenda-se: submisso.

À Folha, Bolsonaro afirmou a propósito da força política que julga ter: “Se eu levantar a borduna, todo mundo vai atrás de mim e eu não fiz isso ainda”.

Contra Moro, Bolsonaro voltou a levantar o tom de voz. Desta vez sobrou também para o ministro Paulo Guedes, da Economia.

Guedes era “chucro” politicamente ao chegar ao governo, disse Bolsonaro. E Moro, “um ingênuo”. Hoje, a indicação de Moro para ministro do Supremo Tribunal Federal seria recusada pelo Senado, segundo Bolsonaro.

Que voltou a elogiar o ministro da Advocacia-Geral da União, André Mendonça, terrivelmente evangélico, e também cotado para ministro do Supremo na vaga de Celso de Mello.

Às caneladas de Bolsonaro não escapou, sequer, seu obediente ministro das Relações Exteriores, o embaixador Ernesto Araújo, que acompanhou Eduardo, o Zero Três, em recente viagem a Washington.

Comentou Bolsonaro que cabe ao seu filho o mérito do acesso rápido ao presidente Donald Trump que os recebeu em audiência. “Trump está alinhado conosco”, garantiu.

Em tempo: Bom dia, Moro.

Governo da morte e também da dor

O que pensa a mídia – Editoriais

Governo aposta em setembro – Editorial | O Estado de S. Paulo

Setembro deve ser o mês da virada, o retorno do País à trajetória de recuperação, segundo o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida. Os números de julho e agosto “inspiram cuidado”, mas a fase ruim deve ter acabado em agosto, disse ele em Brasília, num seminário sobre Reformas para o Crescimento. Enquanto o secretário discursava, o mercado era informado oficialmente de mais um tombo da indústria. A produção industrial caiu 0,3% de junho para julho, na terceira queda mensal consecutiva, e ficou 2,5% abaixo do nível de um ano antes. Os números da indústria em julho decepcionaram quem esperava uma reação mais forte no começo do segundo semestre. Pior que isso, deram mais um argumento a quem ainda prevê para o setor uma expansão próxima de zero em 2019. Pela última projeção do mercado, publicada pelo Banco Central (BC), a produção industrial crescerá apenas 0,08% neste ano.

A indústria produziu de janeiro a julho 1,7% menos que no período correspondente de 2018. Em 12 meses a produção foi 1,3% menor que a dos 12 meses anteriores, segundo informou na terça-feira passada o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O mesmo tipo de confronto havia indicado um recuo de 0,8% no período encerrado em junho.

Perdas acumuladas em 12 meses têm sido predominantes desde julho do ano passado. A perda de vigor vem sendo observada, portanto, desde o meio de 2018, especialmente nas comparações de desempenho entre períodos anuais.

Poesia | Fernando Pessoa - Ah, onde estou

Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
Ah, a angústia insuportável de gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!
(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu.)

Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,
Estômago da alma alvorotado de eu ser...

Música | Amalia Rodrigues - Fado Portugais