sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

José de Souza Martins* - O energúmeno

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana 

Quando o presidente desqualifica Paulo Freire, só pode ser coisa de um governo que institui aqui o “energumenato”

O presidente definir como energúmeno o educador brasileiro Paulo Freire, mundialmente conhecido pela obra de resgate de milhares de pessoas da escuridão do analfabetismo, só pode ser coisa de um governo que institui aqui o “energumenato”. O que faz do povo um povo sem vontade própria, uma sociedade de ordem unida, desprovida de consciência social e política.

Paulo Freire foi satanizado já antes do golpe e perseguido depois do golpe de 1º de abril de 1964 pelo mero motivo de ter criado um método de alfabetização rápida de adultos, uma necessidade do capitalismo e, é bom que se diga, do protestantismo voltado para o livre exame da Bíblia e para a emancipação republicana que faria de todos os brasileiros, cidadãos.

Freire desenvolveu seu método com apoio da Igreja Católica, que o aplicou no Movimento de Educação de Base, no Nordeste, de 1961. Foi inspirado no personalismo de Emmanuel Mounier, pensador católico, fundador da excelente e erudita revista “Esprit”. Ele pensava numa sociedade centrada na pessoa em oposição à sociedade materialista do indivíduo, fragmentário e alienado. O MEB foi iniciativa de um bispo conservador, Dom Eugênio de Araújo Sales, e da CNBB.

É claro que o método de alfabetização criado por Freire era adaptado à realidade de trabalhadores rurais pobres, já maduros e socializados numa cultura popular e mística que reconhecia na situação social em que viviam e trabalhavam os próprios remanescentes do cativeiro.

Seria ingênua e ineficaz qualquer tentativa de alfabetizá-los com frase de cartilha de criança da cidade, como “Eva viu a uva”.

Merval Pereira - Enxugamento partidário

- O Globo

A reorganização partidária que já está em curso, com a fusão de algumas legendas devido às cláusulas de barreira introduzidas nas recentes eleições gerais, deve ser acelerada este ano, até seis meses antes das eleições municipais, prazo permitido pela legislação eleitoral para mudanças dos candidatos.

Essa intensificação deve-se a outra inovação eleitoral, pois pela primeira vez serão proibidas as coligações proporcionais, atingindo as eleições de vereadores. Haverá um enxugamento do número de partidos políticos, exatamente a intenção da reforma constitucional que impôs também cláusulas de desempenho.

14 dos 35 partidos existentes não cumpriram a cláusula de desempenho exigida pela nova legislação, na eleição de 2018: Patriota, PHS, PC do B, PRP, Rede, PRTB, PMN, PTC, PPL, DC, PMB, PCB, PSTU e PCO. Desses, O PRP foi incorporado ao Patriotas; o PPL se fundiu com o PC do B; o PHS ao Podemos, e Rede e PV estudam uma fusão.

Os demais competirão em desigualdade de condições porque perderam o acesso ao fundo partidário e ao tempo gratuito de rádio e televisão. Nos anos de eleição, todos os partidos recebem um “fundo eleitoral”, mas sem fusões, nem coligações proporcionais, esses partidos dificilmente terão condições de subsistir. O tal fundo eleitoral está provocando a mais recente crise política do governo Bolsonaro. O presidente fez uma bravata populista sugerindo que vetaria o fundo de R$ 2 bilhões, mas está tendo que recuar, pois seria uma afronta política ao Congresso.

Luiz Carlos Azedo - Um pleito multipolar

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Nada indica que a polarização decorrente da disputa entre o presidente Jair Bolsonaro e seus opositores em nível nacional será o fio condutor das eleições municipais”

A Polícia Civil do Rio de Janeiro solicitou à Interpol a prisão do único suspeito do atentado contra a produtora do programa Porta dos Fundos identificado até agora: Eduardo Fauzi, que está em Moscou, na Rússia, onde tem uma namorada. Segundo imagens divulgadas pela TV Globo, ontem, na tarde de 29 de dezembro, ele embarcou para Paris, onde fez escala. Imagens mostraram sua chegada ao Aeroporto Internacional Tom Jobim e o momento em que passou pelo aparelho de Raio X do embarque.

Fauzi é um homem violento, com registros policiais e processos por ameaça, agressão contra mulher, lesão corporal e formação de quadrilha. Em 2013, em frente às câmeras, deu um soco no então secretário municipal de Ordem Pública, Alex Costa, quando era entrevistado por repórteres. Fauzi reagiu à fiscalização da prefeitura no estacionamento irregular no qual trabalhava. Na ocasião, foi preso por lesão corporal, mas respondia ao processo em liberdade. Um cartaz do Disque Denúncia fluminense oferece uma recompensa de R$ 2 mil por informações que levem à prisão dele. Filiado ao PSL desde 3 de outubro de 2001, será expulso da legenda por ter participado do atentado, segundo o deputado Luciano Bivar, que a preside.

O atentado à produtora do Porta dos Fundos, às vésperas do Natal, é um novo degrau da escalada de radicalização política no país. O grupo tem sido criticado nas redes sociais por causa de um especial de Natal exibido pela Netflix, no qual os humoristas sugerem que Jesus teria tido uma experiência homossexual após passar 40 dias no deserto. Antes de viajar, Fauzi postou um vídeo, com sete minutos de duração, em que chama os integrantes do grupo Porta dos Fundos de criminosos, marginais e bandidos.

No domingo anterior ao Natal, havia ocorrido outro episódio preocupante: um homem de 89 anos disparou contra um vizinho em um prédio no centro de São Paulo. Segundo testemunhas, Adel Abdo discutiu com a vítima, Rafael Dias, um dia antes. “Na noite do sábado, a gente fez uma festa no condomínio. Um morador começou a reclamar do som alto, porém a gente estava dentro das regras, de som até as 22h. Ele começou a nos ameaçar. Disse: ‘seu bando de viado, desliga isso, vou descer aí e atirar em vocês’”, relatou Anderson Oliveira, namorado de Rafael.

As eleições
O conservadorismo oficial em relação aos costumes, na contramão das mudanças, parece ter despertado os demônios da homofobia e outras manifestações do gênero, como o racismo e a xenofobia. Como em outras situações, indivíduos reacionários e truculentos se acham no direito de recorrer à força para impor seus padrões de comportamento a quem age ou mesmo pensa de forma diferente. Tais episódios sinalizam um ano eleitoral pautado pela violência política e ideológica.

Míriam Leitão - Na balança os números e os fatos

- Globo

Guerra comercial entre EUA e China foi ruim, mas a paz pode também trazer perdas para o Brasil, com efeitos sobre o agronegócio

O comércio exterior é aquele ponto no qual a ideologia se dissolve, e o pragmatismo é meio inevitável. A balança comercial do ano passado foi ruim porque a Argentina entrou em crise, a China e os Estados Unidos passaram o ano em guerra comercial, e o Brasil cresceu menos do que se esperava. Uma Argentina em crise é um mau negócio para o Brasil, seja de que tendência for o seu governo. A guerra entre Estados Unidos e China foi ruim, mas a paz pode trazer também perda para o Brasil porque um dos compromissos que os chineses assumirão no próximo dia 15 será comprar mais dos agricultores americanos, e isso pode significar menos exportações brasileiras.

O Brasil teve um grande saldo, de US$ 46 bilhões, mas foi o menor desde 2015. Ser menor não significa em si uma má notícia. O problema é que a corrente de comércio caiu também 5,7%. Ou seja, o Brasil vendeu menos e comprou menos. Só a crise argentina tirou do saldo brasileiro US$ 5,2 bilhões.

Enquanto o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, continua no seu delírio, a vida real exige atenção. Ele escreveu na mensagem de fim de ano que é preciso em 2020 “continuar lutando contra o mecanismo esquerdista” e alertou: “não basta fazê-lo dentro do Brasil.” Explicou que “a esquerda é sempre transnacional” e por isso “há que combater na frente externa”.

Fernando Abrucio* - Existe um Brasil para além de Bolsonaro

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além da lógica de guerra

Passado um ano de governo, um aspecto salta à vista: Bolsonaro criou um estilo próprio de liderança presidencial. Obviamente que ele repete certos padrões personalistas anteriores, que se apresentavam em figuras tão distintas como Vargas, Collor e Lula. Descontadas as semelhanças, o que fica é um modelo de presidente que busca a todo momento ser o centro da política brasileira, criando factoides que priorizam as críticas a pessoas, ideias e comportamentos. Trata-se de um modo basicamente negativo de construção de projeto de poder. Bolsonaro sempre precisará de um inimigo para governar o país.

A lógica bolsonarista de liderança é eficaz em vários sentidos. Primeiro, porque marca uma posição perante uma parcela do eleitorado, gerando uma forte identidade entre o líder presidencial e os seus correligionários - é o “eu contra eles”, num tom muito mais radical que o do petismo. A porção da população que vai ficar neste grupo ainda é uma incógnita. De todo modo, na pior das hipóteses, Bolsonaro consegue manter pelo menos de 15% a 20% ao seu lado, o que não garante a reeleição, mas solidifica um nicho de apoiadores que irão até o fim com o presidente, mantendo-o como um governante que tem anteparo para digladiar com outras lideranças políticas.

Selecionando inimigos e os atacando a todo momento, muitas vezes por meio de acusações e temáticas secundárias em relação às políticas governamentais, Bolsonaro obriga os criticados a se defender constantemente. O presidente se torna o dono da bola do jogo e faz com que os outros fiquem correndo atrás da pelota, sem que nunca a tenham por completo. Antigamente, isso tinha um nome: diversionismo, isto é, a capacidade de evitar o que é central na disputa do poder e nas políticas públicas. Essa estratégia dificulta ter um maior foco na crítica ao governo, pois se a cada semana há um assunto novo para se discutir, o que deve ser priorizado no debate com a população?

César Felício* - No meio do caminho

- Valor Econômico

Eleição municipal marca tendências para a nacional

É comum ver as eleições municipais no Brasil como uma espécie de “midterm election”, instrumento pelo qual o parlamento de alguns países se renova parcialmente durante um governo. No caso brasileiro, a eleição municipal é vista como um misto de referendo da gestão presidencial de turno e um presságio para o que deve acontecer a seguir. Há elementos para se pensar assim.

Em 2016, João Doria, Marcelo Crivella, Alexandre Kalil e Marchezan Júnior, entre outros, representaram de certa forma o espírito de uma época. Não ganharam em função da força de seus partidos e não os tornaram mais fortes, eis que servir como bússola partidária para a disputa seguinte é algo para o qual a eleição municipal definitivamente não serve. Os principais vencedores indicaram, contudo, uma tendência, a do voto de protesto. Eles eram contra algo. Seja o esquerdismo, a política tradicional, a degeneração dos costumes. Anteciparam a vibração que soaria na eleição de dois anos depois.

Retrocedendo mais, a eleição municipal de 2012 aparecia muito mais como a consequência do processo eleitoral passado do que sinal preditivo para a eleição seguinte. Assim Fernando Haddad surgia como o segundo candidato de proveta fabricado por Lula (depois de Dilma), e Eduardo Paes e Márcio Lacerda indicavam a força de estruturas políticas regionais muito assentadas então no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Os dois, aliás, reeleitos na ocasião. Lacerda, por sinal, também havia sido um “poste” em sua primeira eleição, quando surgiu do casamento entre o governador Aécio Neves e o prefeito Fernando Pimentel, em 2008.

Eliane Cantanhêde - Incertas e não sabidas

- O Estado de S.Paulo

Eleições municipais de 2020 encontram velhos e novos partidos em maus lençóis

Atenção: vencer ou perder as eleições municipais não significa, pelo menos não necessariamente, vencer ou perder as eleições presidenciais dois anos depois. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. As votações nos municípios confirmam a força ou a fraqueza de partidos e candidatos naquele momento, mas as projeções para as urnas nacionais dependem de vários fatos e fatores atrelados à dinâmica do País e da política.

Um exemplo recente: o PT foi fragorosamente derrotado nas eleições municipais de 2016, quando perdeu em todas as capitais, exceto uma, Rio Branco, no Acre. Detalhe: com a desincompatibilização do prefeito Marcos Alexandre, para disputar o governo estadual (aliás, sem sucesso), o partido ficou sem nenhuma das 26 capitais e nenhuma das cidades com mais de 200 mil eleitores.

E o que aconteceu com o partido de Lula em 2018, dois anos depois? Ultrapassou todos os demais partidos e empurrou Fernando Haddad para o segundo turno contra Jair Bolsonaro, do até então inexpressivo PSL. Perdeu no final, mas mostrou que está vivo.

Everardo Maciel* - Há perigos à espreita

- O Estado de S. Paulo

Recente decisão do STF, alargando as hipóteses de crimes tributários, é outro perigo à espreita

Em 2019 houve muita agitação no mundo tributário brasileiro. Felizmente, não prosperaram as pérolas da temporada de ideias ruins, especialmente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, autodesignada reforma tributária. Às vezes, não fazer é também uma vitória.

Lentamente, foram sendo desvendadas as agendas ocultas daquela PEC, despertando a consciência dos parlamentares e dos contribuintes.

Não se deve, é claro, interditar o debate tributário. Assim, embora não esteja de acordo, reconheço autenticidade em proposta que pretende punir, entre outros contribuintes, as pequenas escolas e clínicas, os pequenos comerciantes e prestadores de serviços, os produtores de leite, os optantes do Simples e do Lucro Presumido e, concomitantemente, reduzir a tributação das instituições financeiras. Trata-se de opção de fundo ideológico.

Esconder esse propósito dos destinatários da proposta, entretanto, pode ser tido como politicamente desleal.

Dizia Amós Oz, notável escritor israelense: “O fanatismo começa no afã de mudar os outros supostamente ‘para o bem deles’. Utopias degeneram em distopias, paraísos teóricos em infernos práticos”.

José Eduardo Faria* - Economia de mercado e jogo de azar

- O Estado de S.Paulo

Parece que o que a equipe ministerial entende por liberalismo é o chamado libertarismo

Baixadas num período de sete meses, as Medidas Provisórias (MPs) da Liberdade Econômica e do Emprego Verde Amarelo têm como denominador comum o objetivo de afastar os obstáculos que estariam impedindo a retomada do crescimento, mediante a redução da intervenção regulatória do Estado. A diretriz programática dos dois textos foi classificada pelo ministro da Economia e por sua equipe como liberal. Mas que sentido eles dão a esse termo?

Historicamente, o liberalismo que predominou nos séculos 19 e 20 valorizou o livre jogo de mercado. Mas também deu o devido valor à regulação estatal em matéria de institucionalização do direito de propriedade, publicidade dos atos negociais, registro comercial, punição de falência fraudulenta, combate a práticas monopolistas e criação de mecanismos judiciais para assegurar a inalterabilidade e o cumprimento de obrigações contratuais - “a santidade dos contratos”, como dizem os juristas portugueses. Decorre daí a importância de alguns dos mais importantes primados do Estado de Direito, como, por exemplo, a igualdade de todos perante a lei, o acesso aos tribunais, o direito ao devido processo legal, o instituto jurídico da defesa da concorrência e o direito do consumidor.

Doutrinariamente, o liberalismo é avesso ao dirigismo estatal. Ele enfatiza o jogo de mercado, é certo. Contudo destaca as liberdades públicas como marcos normativos desse jogo e da atuação do Estado sobre os cidadãos, segundo regras democraticamente definidas por eles. Não descarta, igualmente, o princípio da responsabilidade social de quem empreende e obtém lucros, enfrentando os inevitáveis riscos de mercado. E, por mais que seja pró-mercado no âmbito da economia, o liberalismo clássico entende que, onde o Estado é reduzido ao mínimo, o contrato social tende a se esgarçar, levando ao risco de o estado civil retroceder ao estado da natureza.

Hélio Schwartsman - Garantia de confusão

- Folha de S. Paulo

Juiz que julga não deve ser o mesmo que atua nas apurações

Se me fosse dado criar um sistema penal a partir do zero, eu incluiria algo parecido com o juiz das garantias. Um magistrado que participe das investigações, mesmo que à distância, apenas por trocar ideias com policiais e procuradores, já tende a criar uma má vontade em relação ao réu. O ideal é que o juiz que julga não seja o mesmo que atua nas apurações.

Esse, contudo, não é o único nem o mais poderoso viés humano a conspirar contra o Direito. Um problema bem mais grave, me parece, é grande peso que a figura da testemunha ainda desempenha nos processos.

Sabemos hoje que a memória é absolutamente não confiável. Embora imaginemos nossas reminiscências como um registro preciso e estável do passado, elas são modificadas ao sabor das emoções toda vez que as acessamos. Psicólogos não têm dificuldades para executar experimentos em que implantam memórias falsas na cabeça das pessoas. Policiais também não, mesmo que inconscientemente.

Cristina Serra - Suas Excelências e suas mordomias

- Folha de S. Paulo

Maus exemplos no uso do dinheiro público estimulam descrença na democracia

Volto ao tema de reportagem publicada nesta Folha nos últimos dias de 2019 e que, pela importância, deveria ter tido maior reverberação. Refiro-me à viagem do presidente do STF, Dias Toffoli, à cidade de Ribeirão Claro (PR), em avião da FAB e comitiva de 11 pessoas. Toffoli teve como único compromisso na cidade inaugurar o fórum eleitoral local, que recebeu o nome de seu pai.

Como ninguém é de ferro, esticou o fim de semana em um resort de luxo e só deixou a região na segunda, em avião da FAB. A reportagem (de Camila Mattoso, Ranier Bragon e Ricardo Balthazar) mostra um traço enraizado nos costumes de autoridades no país: o uso de patrimônio público em compromissos privados.

Vinicius Torres Freire - Um mundo de surtos e política malparada

- Folha de S. Paulo

Economia mundial anda lerda em um planeta pontilhado de revoltas populares sérias

No ano que acabou de passar, especulava-se que poderia haver uma baixa feia no crescimento mundial. Que havia risco de recessão nos Estados Unidos e nova desaceleração significativa na China.

Não foi o caso, apesar da lerdeza econômica disseminada, que causou algum estrago por aqui, com a colaboração expressiva da Argentina, que se arrebentou outra vez mais por seus motivos muito próprios ou particulares, como temos feito por aqui desde os anos 10.

Quais previsões erradas podemos então fazer para 2020?

Pelo andar da carruagem, um chute mais ou menos informado e baseado nas estimativas de instituições multilaterais (como o FMI) e da megafinança internacional, parece que não haveria mudança notável no ritmo do PIB do mundo neste 2020.

Mas, como se sabe, o mundo é um lugar perigoso e tem andado especialmente instável pelo menos desde que a megafinança quebrou o planeta, faz pouco mais de uma década.

A situação se tornou política e particularmente mais turbulenta desde a eleição de Donald Trump, que animou o que, por comodidade sarcástica, vai se chamar de corações e mentes dos demagogos autoritários pelo mundo.

Anna Virginia Balloussier - A esquerda e os crentes

- Folha de S. Paulo

Esquerda faz muito pouco para se aproximar do eleitorado evangélico

Falar em autocrítica deixa muita gente mais arredia que gato em casa de banho. Mas, se começo de ano serve para alguma coisa, é para digerir erros e evitar seu replay dali pra frente.

À esquerda não faria mal destrinchar por que se come poeira na corrida pelo eleitorado evangélico. Ela parece chegar sempre atrasada nesse fenômeno agigantado no pleito que premiou a direita bolsonarista.

O que faz para correr atrás? Após quase uma década escrevendo sobre movimentos evangélicos, eu diria: bem pouco. Aqui e acolá despontam meas culpas, aquele papo de "precisamos dialogar com os crentes". O problema é não só o ritmo tartaruga, mas as vias tomadas para tanto.

Exemplo: a dias do segundo turno, Fernando Haddad (PT) se reuniu com pastores. Beleza. Importante. Só que a maioria deles, progressistas carimbados, tem alcance limitado no raio evangélico, em boa parte conservador. Pregar para convertidos, aqui, ganha certa literalidade.

Nelson Motta - O som do Rio

- O Globo

O erro é querer avaliar o funk carioca com critérios estritamente musicais

Quem diria, o funk carioca comemora 30 anos e se espalha pelo mundo levando alegria e dança às pistas, às festas e às ruas. É uma vitória e tanto. Sair das favelas e das periferias, enfrentar o preconceito musical e social e a violência policial, os narizes torcidos e os ouvidos surdos dos que se creem detentores do monopólio da “boa música”, seja lá o que isso ainda possa significar.

“É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado” não é só um grande verso da nossa música popular mas a completa tradução da força e do poder do funk carioca. É uma música que não passa pela razão, vai direto aos sentidos, ao corpo, às pernas, e, sim, à bunda. E por que não? Não é o que fazem o samba? A salsa? O rock? Quem dança seus males espanta.

Flávia Oliveira - Cidade, pega a visão

- O Globo

Favelados têm voz e precisam ser ouvidos. É sobre isso a luta histórica por direitos

Dias antes da virada do ano, a pesquisa DataFavela/Instituto Locomotiva deu o papo sobre sonhos, projetos e reivindicações dos habitantes de 63 comunidades brasileiras para o ano novo. A consulta, mês passado, ouviu 2.006 moradores de favelas dos 26 estados e do Distrito Federal. Foi o maior levantamento já feito sobre percepções subjetivas nas quebradas; nele está nítido que protagonismo e representatividade são agendas que vieram para ficar. A favela sabe quem é, como a veem, o que deseja, quem a sabota. Os sinais estão por toda parte.

Chama atenção o trecho no qual pessoas de dentro e de fora são convidadas a listar palavras que associam aos territórios. Nos dois grupos, pobreza foi o substantivo mais citado, prova de que a insuficiência de renda é real. Mas a coincidência termina aí.

Quando pensam em favela, habitantes do asfalto mencionam violência, tráfico, assalto; favelados imaginam família, alegria, amizade, felicidade. Apresenta-se, sem retoque, o hiato que separa carência e potência, como ensina o geógrafo Jailson Souza e Silva. De um lado, o ambiente reduzido a falta de dinheiro e violência de sobra; de outro, as experiências inestimáveis de convívio social, laços afetivos, redes de solidariedade e relações comunitárias.

Pedro Doria - Ouvir, o verbo do ano novo

- O Globo

Se a regra de ouvir atento e com dedicada empatia for obedecida, vocês vão adorar a conversa

Chegou o ano novo. Posso compartilhar uma aflição? Perguntem e ouçam as respostas. A palavra chave é ouçam.

Sabe aquele seu tio bolsonarista? Por que ele acha que o país está melhor? A resposta será algo de óbvio — petralhas, corrupção, comunismo. Pergunte o mesmo doutra forma. Dificilmente haverá algo novo. Pergunte, pois, uma terceira vez. Os cacoetes, as respostas pré-fabricadas vão embora. Virão suas aflições, valores, preocupações.

Talvez você descubra, na terceira, que há pontos de encontro. Se não nas soluções, talvez no diagnóstico.

Sabe aquele amigo querido Lula livre? De cara falará sobre golpe, fascismo. A segunda resposta vai melhorar um pouco, mas resvalando na repetição fácil. Na terceira, o que causa angústia começará a aparecer. E você concordará em alguns pontos, sabe?

Se a regra de ouvir atento e com dedicada empatia for obedecida, vocês vão adorar a conversa. É seu tio, é seu amigo. O afeto já está lá, basta reencontrar. Somos as mesmas pessoas que éramos dez anos atrás. Perdemos foi a capacidade de tolerar o diferente.

Há razões.

Cidadania: o velho ‘Partidão’ ficou liberal

Herdeiro do PCB e do PPS, a sigla promove uma guinada ideológica em direção ao centro e sonha em abrigar a candidatura de Huck em 2022

Por José Benedito da Silva, André Siqueira – Revista Veja

Chancelado pelo Tribunal Superior Eleitoral há pouco mais de três meses, o partido Cidadania destaca em seu estatuto a “defesa da liberdade, do pluralismo político e do protagonismo da sociedade civil”. Não faz nenhuma referência ao socialismo nem ao comunismo.

O documento, assim, ratifica o divórcio da legenda com seus antepassados: o histórico Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922 — de quem é considerado herdeiro formal pelo TSE —, e o seu sucessor, o Partido Popular Socialista (PPS), nome que passou a ostentar em março de 1992, depois do fim da União Soviética, e que carregava até 2019. A mudança não é só cosmética: a sigla abandonou o marxismo-leninismo dos velhos tempos e o “socialismo democrático” dos anos pós-queda do Muro de Berlim para abraçar uma combinação que une a defesa do liberalismo econômico com um forte discurso progressista na área social.

O movimento não é ocasional. Nos últimos meses, o partido atraiu diversos grupos de renovação política como o RenovaBR, o Agora!, o Livres e o Acredito, todos guiados por certo liberalismo humanista e imbuídos da pretensão de construir uma alternativa à polarização entre a direita, representada pelo bolsonarismo, e a esquerda, ainda capitaneada por Lula e pelo PT. O objetivo final do processo é abrigar em 2022 a candidatura presidencial do apresentador Luciano Huck, hoje sem partido, mas muito ligado a esses movimentos, inclusive financiando alguns, como o RenovaBR e o Agora!. 

A estratégia tem duas frentes. Uma é criar uma relação próxima com esses grupos ao acomodar seus representantes no comando da sigla. No Diretório Nacional estão o senador Alessandro Vieira (SE), do Acredito e do RenovaBR, e os deputados Marcelo Calero (RJ), do Livres e do Agora!, e Daniel Coelho (PE), do Livres, este alçado à condição de líder na Câmara. A outra é deixar os parlamentares ligados a esses movimentos à vontade para votar segundo suas convicções.

O que a mídia pensa – Editoriais

Bolsonaro sofre desgaste político e aposta na economia – Editorial | Valor Econômico

Enquanto implodia o único partido que o apoiava, Bolsonaro restringe cada vez mais sua pregação aos convertidos

Não se deve esperar do segundo ano do governo de Jair Bolsonaro mais do que ele ofereceu no primeiro - testes permanentes da resistência das instituições democráticas, combinado com avanços na agenda econômica. A situação política do governo, porém, pode piorar aos poucos, ao mesmo tempo em que as perspectivas da economia sinalizam melhora.

Bolsonaro desprezou a articulação política como nunca se viu em um antecessor, propiciando um grau de liberdade ao Congresso também incomum. Essa heterodoxa e involuntária divisão de trabalho entre os poderes dificilmente vai perdurar à medida que o calendário eleitoral for se aproximando. A opção por não ter uma base firme no parlamento tem custos. O presidente foi o que mais teve MPs rejeitadas ou reprovadas, assim como mais vetos derrubados pelo Congresso. Faz parte do jogo político no qual Bolsonaro diz não querer entrar.

Por sua carreira, Bolsonaro sempre foi um franco-atirador, avesso a partidos - passou por pelo menos seis, sem ser aborrecido por eles. Chegou à Presidência a bordo do minúsculo PSL, que seu prestígio elevou à segunda maior bancada do Congresso. Não é um instrumento desprezível para quem pretende permanecer no poder e arregimentar o maior apoio possível para uma agenda controversa.

Música | Perfume da Poesia - Frevo de Bloco

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Para a feira do livro

A Ángel Crespo

Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.

Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.