Entrevista: Rubens Ricupero
• Para diplomata e ex-ministro da Fazenda, o ex-presidente português, que será enterrado hoje, teve participação na transição democrática de seu país e no Brasil
Renata Tranches | O Estado de S. Paulo
Fiador da social-democracia no Portugal pós-salazarismo, Mário Soares foi o grande político português do fim do século 20, na opinião do diplomata Rubens Ricupero. O ex-ministro da Fazenda conheceu o político português em meados dos anos 80, acompanhado de Tancredo Neves e José Sarney, período em que, segundo ele, Soares dedicou especial atenção à projeção do Brasil na Europa.
Responsável pela entrada de seu país na União Europeia, Soares, segundo Ricupero, sofreu com a dificuldade pela qual atravessa a Europa, entre elas, os debates sobre a saída de seus Estados-membros, como o Reino Unido.
• Como descreveria Mário Soares?
Ele não é um entre vários políticos portugueses ligados ao Brasil. Ele é “o” político português, no fim do século 20, que de fato se caracterizou por ter uma ligação muito profunda com o Brasil e seus líderes.
• Como era essa relação?
Ele foi preso pela polícia política e uma vez foi colocado à força na Ilha de São Tomé. Mas nunca foi propriamente um exilado. Normalmente, ele atuou dentro de Portugal. Por isso mesmo, atingiu uma posição muito forte depois da queda do regime do Marcelo Caetano, em 1975. Nesse momento, os comunistas ameaçaram seriamente tomar o poder e foi a reação capitaneada por ele, a partir do norte, do Porto, que deteve essa onda do Partido Comunista, que em Portugal era muito stalinista. Soares foi, de todos os políticos portugueses dessa época, o que teve muito mais ligação com os principais nomes da oposição no Brasil. Ele era muito ligado ao Fernando Henrique Cardoso, ao Tancredo Neves, ao Ulisses Guimarães, ao José Sarney. Ele desempenhou um papel importante naquele momento da transição aqui no Brasil, do regime militar para o civil.
• Como foi essa contribuição?
Ele tinha, nessa época, uma posição importante. Era primeiro-ministro em Portugal. Quando Tancredo visitou Portugal foi até curioso, porque ele era o premiê e o presidente era conservador, o general Ramalho. Os dois não se bicavam. As homenagens a Tancredo eram sempre feitas ou por um ou por outro. Tancredo ainda não havia tomado posse, era presidente eleito. E havia ainda no Brasil uma linha-dura entre os militares que não se conformavam com a transição. Por isso, Tancredo era extraordinariamente prudente na viagem. Tomava cuidado para não oferecer nenhum pretexto para os militares ficarem contra a posse dele. Nesse episódio, Soares ofereceu um jantar a ele em Sintra. No final, Soares fez um discurso incendiário saudando Tancredo e falando numa ditadura sanguinária no Brasil. Tancredo ficou meio constrangido e, na resposta, maneirou muito. Falando de improviso, disse que todo brasileiro quando levantava de manhã tinha dois pensamentos: “um para Deus e outro a Portugal”. O exagero foi porque ele ficou desequilibrado pelo discurso forte do Soares.
• Qual o impacto da morte dele?
Desaparece esse último vínculo. Os políticos portugueses principais são muito europeístas hoje. Ainda tem um ou outro como o Barroso (José Manuel Durão), mas são poucos. Do lado brasileiro, não tem praticamente ninguém. Esse período foi excepcional porque ajudou muito a reintroduzir o Brasil no circuito internacional.
• Qual a relação dele com a União Europeia?
Quando Portugal pôs fim ao salazarismo, houve uma influência comunista muito forte, contrária à adesão à Comunidade Europeia (anterior à UE). Para Soares e a geração que ele representou, a adesão à União Europeia era uma maneira de viabilizar um Portugal democrático e social-democrático. Isso era meados da década de 70, quando a URSS ainda era uma potência com certo poder de atração. Havia nessa época um comunismo mais de linha dura, fechado, absolutamente hostil à social-democracia. Em primeiro lugar, Soares teve papel fundamental em evitar que a onda comunista tomasse conta do poder. Em segundo, ele sabia que Portugal sozinho não tinha condições de se viabilizar. Com Felipe González na Espanha, ambos se empenharam para que o ingresso de Portugal e Espanha à UE fosse simultâneo, como uma maneira de tornar viáveis os regimes democráticos e social-democráticos nesses países. Foi uma fase de consolidação da democracia graças à integração da União Europeia.
• Entusiasta da união no bloco, como ele via os atuais debates sobre saída da União Europeia, como Brexit?
Em seus últimos artigos, ele expressava muita preocupação com a tendência de saída do Reino Unido, que ele sentiu como um grande golpe. Portugal sempre foi muito ligado à Inglaterra. Tradicionalmente, a aliança mais antiga que existe em vigor no mundo é uma aliança entre Portugal e Inglaterra que vem do século 14. O Brexit era uma preocupação. Soares também olhava com muita preocupação essas tendências xenófobas, anti-imigração.
• Por quê?
Ele sempre foi muito aberto a essas questões de imigração, especialmente africana. Era seu espírito social-democrata progressista. Já no final da vida, ele ficou um pouco ensombrecido pelas dificuldades que hoje a Europa atravessa, como demonstrou nos últimos artigos que li há uns cinco, seis meses. Ele escreveu muito até o fim. Desde o fascismo até hoje, não há nenhuma figura pública portuguesa com essa projeção.