- O Globo
Afluência do conservadorismo ocorreu em dimensão imprevista nas pesquisas e inesperada para para todos
Uma onda conservadora avançou sobre as urnas no primeiro turno, mudou o mapa político nacional e impôs a vitória expressiva de Jair Bolsonaro sobre Fernando Haddad, o "advogado de Lula" como ele faz questão de se apresentar nos palanques. Bolsonaro ganhou com 17 pontos de vantagem sobre o adversário.
Essa afluência do conservadorismo ocorreu em dimensão imprevista nas pesquisas e inesperada para para todos. É novidade relevante num país onde até pouco tempo atrás parecia ser mais fácil acertar na loteria do que encontrar um político que assumisse pertencer às legiões da "direita".
Desde a noite de ontem, pode-se dizer que o Brasil está alinhado ao fenômeno do conservadorismo que se espraia pelo mundo. É uma reação contundente ao avanço do debate de questões sociais relevantes, como os direitos das minorias.
Pelo avesso, Bolsonaro (PSL) conseguiu cristalizar na campanha presidencial o debate sobre a desigualdade de gênero no país. A resistência feminina encheu as ruas, em manifestações que partidos da esquerda tentaram manipular, sem êxito.
Uma peculiaridade brasileira é o fato de que essa súbita afluência de ideais conservadores ocorre na esteira de década e meia de crispação política, protagonizada pelo PT e partidos satélites.
Da prisão em Curitiba, Lula reafirmou sua força no partido e no segundo maior colégio eleitoral, o Nordeste, conduzindo o seu "advogado" ao segundo turno. No entanto, acabou derrotado pelo maior cabo eleitoral dessa primeira rodada - o antipetismo.
A direita emergente impulsionou Bolsonaro, um ex-militar afastado dos quartéis por indisciplina, explícito na nostalgia de um governo autoritário. Também, alavancou candidatos regionais que, embora de formação liberal, com ele estiveram identificados ou se associaram na campanha, como ocorreu no Rio (Wilson Witzel, do PSC), em São Paulo (João Doria, do PSDB) e em Minas Gerais (Rodrigo Zema, do Partido Novo).
O resultado da disputa presidencial deu relevo ao tamanho da liquefação da legitimidade do sistema político. Ela se tornou visível nas manifestações de rua em 2013 e foi acelerada com a exposição dos envolvidos em corrupção nos contratos públicos nos inquéritos da Operação Lava-Jato.
Dela resultou uma anomalia: na final da disputa pela Presidência da República estarão os dois candidatos mais desprezados pela maioria nas pesquisas realizadas durante toda a campanha. Exemplo: no sábado, véspera da votação, quatro em cada dez eleitores diziam ao Datafolha e ao Ibope que não votariam neles "de jeito nenhum". Bolsonaro e Haddad continuam se apresentando como "solução", sem perceber que são sinônimos eleitorais de uma grave crise de representatividade.
Reverter essa rejeição seria o desafio de ambos nos próximos 21 dias. Sem isso, o futuro presidente se arrisca a sair das urnas no domingo 28 de outubro como refém de uma inédita antipatia eleitoral.
Bolsonaro insiste em se manter enclausurado no antipetismo. Para Haddad, confinado aos limites do PT, sobrou a retórica da união contra o "facismo".
Entre ambos, restam forças de centro absolutamente fracionadas, como é o caso do PSDB de Alckmin e da Rede de Marina Silva, ou agrupamentos partidários tradicionais como o PMDB, DEM e PTB, cujo foco habitualmente está na partilha do orçamento federal.
Qualquer que seja o resultado do segundo turno, logo depois da celebração o vencedor vai descobrir que ganhou o governo, mas não o poder. Nem a direita emergente à volta de Bolsonaro, nem a esquerda dogmática em torno Haddad têm maioria na Câmara e no Senado. Ambos não demonstraram competência em construí-la durante a campanha.
O eleito será obrigado a negociar com um Congresso fragmentado, habitualmente desgastado e empenhado num virtual semi-presidencialismo. Com todas as fragilidades, no último quarto de século esse mesmo Legislativo derrubou dois presidentes eleitos pelo voto direto. Em comum, eles tinham o vício da arrogância, eram devotos do isolamento político e amargavam alta rejeição nas ruas.